segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

21.O Livro dos Abraços - Os índios/3 - Eduardo Galeano

Eduardo Galeano


21. O Livro dos Abraços



Os índios/3   



Jean-Marie Simon soube na Guatemala. Aconteceu no final de 1983, numa aldeia chamada Tabil, no sul de Quichê. 

Os militares vinham em sua campanha de aniquilamento das comunidades indígenas. Tinham apagado do mapa quatrocentas aldeias em menos de três anos. Queimavam plantações, matavam índios: queimavam até a raiz, matavam até as crianças. Vamos deixá-los sem nenhuma semente, anunciava o coronel Horacio Maldonado Shadd. E assim chegaram, na tarde de certo dia, na aldeia de Tabil. 

Vinham arrastando cinco prisioneiros, amarrados pelos pés e pelas mãos e desfigurados pelos golpes. Os cinco eram da aldeia, nascidos ali, vividos ali, ali multiplicados, mas o oficial disse que eram cubanos inimigos da pátria: a comunidade devia resolver que castigo mereciam, e executar o castigo. No caso de resolverem fuzilá-los, deixava as armas carregadas. E disse que lhes dava prazo até o meio-dia do dia seguinte. 

Em assembléia, os índios discutiram: 

Esses homens são nossos irmãos. Esses homens são inocentes. Senão os matarmos os soldados nos matam. 

Passaram a noite inteira discutindo. Os prisioneiros, no centro da reunião, escutavam. 

Chegou o amanhecer e todos estavam como no começo. Não tinham chegado a nenhuma decisão e sentiam-se cada vez mais confusos. 

Então pediram ajuda aos deuses: aos deuses maias, e ao deus dos cristãos. 

Esperaram em vão pela resposta. Nenhum deus disse nada. Todos os deuses estavam mudos. 

Enquanto isso, os soldados esperavam, numa colina vizinha. 

As pessoas de Tabil viam como o sol ia se erguendo, implacável, na direção do alto céu. Os prisioneiros, em pé, calavam. 

Pouco antes do meio-dia, os soldados escutaram os tiros. 



Os índios/4


Na ilha de Vancouver, conta Ruth Benedict, os índios celebravam torneios para medir a grandeza dos príncipes. Os rivais competiam destruindo seus bens. Atiravam ao fogo suas canoas, seu azeite de peixe e suas ovas de salmão; e do alto de um promontório jogavam no mar suas mantas e vasilhas. Vencia o que se despojava de tudo.



A cultura do terror/1


A Sociedade Antropológica de Paris os classificava como se fossem insetos: a cor da pele dos índios huitotos correspondia aos números 29 e 30 de ma escala cromática. 


A Peruvian Amazon Company os caçava como se fossem feras: os índios huitotos eram a mão-de-obra escrava que dava borracha ao mercado mundial. Quando os índios fugiam das plantações e a empresa os agarrava, eram envolvidos numa bandeira do Peru empapada em querosene e queimados vivos. 

Michael Taussig estudou a cultura do terror que a civilização capitalista aplicava na selva amazônica no começo do século vinte. A tortura não era um método para arrancar informações, mas uma cerimônia de confirmação do poder. Num longo e solene ritual, os índios rebeldes tinham suas línguas cortadas e depois eram torturados, para que falassem.



A cultura do terror/2 


A extorsão o insulto, a ameaça 
o cascudo, 
a bofetada, 
a surra, 
o açoite, 
o quarto escuro, 
a ducha gelada, 
o jejum obrigatório, 
a comida obrigatória, 
a proibição de sair, 
a proibição de se dizer o que se pensa, 
a proibição de fazer o que se sente, 
e a humilhação pública 
são alguns dos métodos de penitência e tortura tradicionais na vida da família. Para castigo à desobediência e exemplo de liberdade, a tradição familiar perpetua uma cultura do terror que humilha a mulher, ensina os filhos a mentir e contagia tudo com a peste do medo. 

Os direitos humanos deveriam começar em casa — comenta comigo, no Chile, Andrés Domínguez.






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Titulo original: El libro de los abrazos Primeira edição em junho 1991. Tradução: Eric Nepomuceno Revisão: Ana Teresa Cirne Lima, Ester Mambrini e Valmir R. Cassol Produção: Jó Saldanha e Lúcia Bohrer ISBN: 85.254.0306-0 G151L Galeano, Eduardo O livro dos abraços / Eduardo Galeano; tradução de Eric Nepomuceno. - 9. ed. - Porto Alegre: L&PM, 2002. 270p.:il.;21cm 1. Ficção uruguaia. I.Título. CDD U863 CDU 860(895)-3 Catalogação elaborada por Izabel A. Merlo, CRB 10/329. Texto e projeto gráfico de Eduardo Galeano © Eduardo Galeano, 1989


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22.O Livro dos Abraços - A cultura do terror/3 - Eduardo Galeano


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