Um Conto de Natal
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Charles Dickens
02
PRIMEIRA ESTROFE
O espectro de Marley
Durante este tempo, o nevoeiro e a escuridão fizeram-se tão espessos, que muitas pessoas percorriam as ruas com tochas acesas na mão, oferecendo-se aos cocheiros para irem adiante dos cavalos iluminando o caminho. A antiga torre de uma igreja, cujo velho sino bimbalhante parecia espiar Scrooge continuamente através de sua janelinha gótica, tornara-se invisível e pôs-se a tocar as horas e os quartos de hora entre nuvens, com vibrações prolongadas e trêmulas, como se estivesse a bater os dentes lá no alto, no ar gelado.
O frio tornava-se intenso. Na rua principal, sobre a qual desembocava a viela, alguns operários, que reparavam o encanamento do gás, haviam acendido uma fogueira, em torno da qual se haviam aglomerado homens e mulheres, todos andrajosos, que aqueciam as mãos e olhavam o fogo com ar maravilhado. O bebedouro público, vendo-se abandonado, resolveu congelar-se. Os luminosos dos magazines, onde as bagas e as folhas de azevinho estavam sob o calor das lâmpadas nas vitrinas, imprimiam rubros reflexos nos rostos pálidos dos transeuntes.
As vitrinas dos restaurantes e dos bares ofereciam aos olhos uma apresentação esplêndida, um espetáculo deslumbrante, com o qual parecia impossível que os vulgares princípios da compra e da venda pudessem ter a menor relação. O prefeito, repimpado no majestoso edifício da Câmara, dava ordens a seus cinqüenta cozinheiros e despenseiros para que o Natal fosse comemorado como se deve comemorar na casa de um prefeito. E mesmo o pobre alfaiate, que fora condenado na segunda-feira anterior a cinco xelins de multa por embriaguez e arruaça noturna, fazia seus preparativos dentro de sua miserável mansarda, batendo a massa do bolo do dia seguinte, enquanto sua esposa saía apressadamente, com o bebê ao colo, para comprar um pedaço de carne de vaca.
O nevoeiro adensava-se cada vez mais, e o frio se tornava cada vez mais áspero e penetrante. Um rapazinho de nariz arrebitado, roído pelo vento, glacial e voraz, como um osso por um cão, aproximou-se da porta para saudar Scrooge com uma cantiga de Natal. Mas, desde as primeiras palavras de Deus vos salve, bom amigo, vos dê coração alegre, Scrooge apanhou uma régua com um gesto tão enérgico, que o cantor fugiu espavorido, perdendo-se no nevoeiro e no frio.
Finalmente, chegou a hora de fechar o escritório.
Scrooge admitiu o fato, mas deixou seu tamborete bastante penalizado. O empregado, que em seu cubículo só aguardava este sinal, apressou-se em apagar o candeeiro e pôr o chapéu.
– Você há de certamente querer ficar livre todo o dia de amanhã? – disse-lhe Scrooge.
– Se isso não o aborrecer, senhor.
– Naturalmente que isso me atrapalha, – replicou Scrooge; e o que é mais, isso não é justo. Se eu descontasse meia coroa de seu ordenado, aposto que se sentiria prejudicado.
O empregado teve um sorriso pálido.
– E entretanto, – tornou Scrooge, você acha que não me prejudica, a mim, quando estou lhe pagando um dia para não fazer nada. O empregado observou humildemente que isso acontecia apenas uma vez por ano.
– Bela desculpa para meter as unhas no bolso do seu patrão a cada 25 de dezembro! – disse Scrooge, abotoando o sobretudo até ao queixo. – Espero que seja mais pontual no dia seguinte pela manhã.
O empregado prometeu-o, e Scrooge saiu resmungando.
O escritório foi fechado num abrir e fechar de olhos, e o empregado também saiu, todo enrolado em seu cachecol branco, cujas extremidades pendiam para além da jaqueta, pois que ele desconhecia o luxo de um sobretudo. Em honra do Natal, desceu Cornhill fazendo escorregadelas, em companhia de um bando de rapazes; depois, rumou a toda velocidade para Camden, a fim de entrar em casa e começar a brincar de cabra-cega.
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Scrooge fez uma magra refeição na sombria espelunca em que costumava comer. Quando acabou de percorrer os jornais e de tornar a observar sua caderneta do banco, entrou em casa para deitar-se.
O apartamento em que residia era o mesmo em que vivera seu falecido sócio. Composto de vários compartimentos lúgubres e mal-iluminados, fazia parte de um prédio estranho, situado no fundo de um pátio, onde estava tão mal colocado, que se poderia pensar que ele viera parar ali em sua juventude, brincando de esconde-esconde com outras casas, e depois não encontrou mais seu caminho. Além de tudo isso, era velho e infundia o medo que inspiram as casas abandonadas, pois que ninguém, a não ser Scrooge, ali residia, estando ocupados os outros compartimentos com escritórios comerciais.
O pátio era de tal modo escuro, que Scrooge, não obstante conhecer de cor todos os seus pormenores, foi obrigado a atravessá-lo às apalpadelas. O nevoeiro e o granizo envolviam de tal modo o arcaico e sombrio alpendre, que parecia estivesse o gênio do inverno sentado no seu portal, engolfado em lúgubres meditações.
Agora, se existe um fato comprovado, é que a aldrava de ferro da porta não apresentava absolutamente nada de particular, a não ser que era bastante grossa. Outro fato indiscutível é que Scrooge estava acostumado a vê-la de manhã e de tarde, desde que morava naquela casa. Cumpre notar igualmente que Scrooge era tão destituído de imaginação como qualquer habitante de Londres, inclusive os membros da municipalidade e os aldermen. É necessário notar, também, que Scrooge não havia pensado um só instante em Marley desde a alusão que havia feito, naquela mesma tarde, à morte de seu antigo sócio, verificada sete anos antes. Isto posto, expliquem-me, se puderem, como pôde acontecer que Scrooge, ao meter a chave na fechadura, viu subitamente diante dele, e sem prévia transformação, não uma argola de aldrava, mas o rosto de Marley!
Sim, o rosto de Marley. Aquele rosto não estava, como o resto do pátio, mergulhado nas trevas impenetráveis, mas aureolado de um estranho clarão fosforescente. Sua expressão não era nem ameaçadora nem bravia, e olhava para Scrooge como Marley costumava olhá-lo, com os óculos sobre a testa de espectro. Os cabelos se lhe agitavam de modo estranho, levantados, parecia, por um sopro ou uma corrente de ar quente; e seus olhos, embora bem abertos, estavam perfeitamente imóveis.
A aparição, com aquela tez lívida e aquele olhar fixo, era horrível de se ver; entretanto, o horror que ela inspirava não procedia propriamente da expressão dos seus traços, mas de uma influência exterior, que se exercia de fora e como que a despeito dela mesma.
Mas quando, vencida a primeira perturbação, Scrooge examinou fixamente o estranho fenômeno, já não viu, de repente, nada mais que o simples anel da aldrava.
Dizer que ele não se amedrontou e não sentiu interiormente uma impressão extraordinária jamais experimentada até então, seria falso. Não obstante, deitou a mão sobre a chave, que havia deixado cair, fê-la voltar-se com decisão na fechadura, penetrou no vestíbulo e acendeu a vela.
Para dizer verdade, Scrooge teve um momento de hesitação antes de fechar a porta, e começou por examiná-la prudentemente pela parte de trás, como se receasse ver surgir no vestíbulo a ponta da cabeleira de Marley. Mas não havia nada naquele lado, exceto os parafusos e as porcas que fixavam a aldrava. Depois de tal vistoria, Scrooge murmurou: “Ora! Tolices!” e tornou a fechar a porta bruscamente.
Aquele ruído propagou-se por toda a casa como o rolar de um trovão. Todos os cômodos do pavimento superior, todas as pipas do negociante de vinho, na adega, embaixo, repetiram aqueles ruídos com sonoridades várias. Mas Scrooge não era homem que se deixasse amedrontar com ecos. Trancou a porta, atravessou o vestíbulo e subiu a escada calmamente, protegendo a vela.
Costuma-se falar algumas vezes das escadas antigas, pelas quais poderia passar facilmente um carro puxado por seis cavalos. Pois bem: eu posso afirmar que na escada de Scrooge se teria podido fazer passar um carro grande, e até mesmo pô-lo atravessado, com os varais para a parede e a traseira para o lado da balaustrada: haveria todo o espaço necessário, e mais ainda.
Foi talvez por esta razão que Scrooge pareceu ver um carro fúnebre subir diante dele, na escuridão. Meia dúzia de lampiões teriam sido insuficientes para aclarar os enormes baixos da escada: imaginem agora o que poderia fazer aquela simples velinha de Scrooge.
Completamente despreocupado, Scrooge continuava a subir. A escuridão não custa dinheiro, e era por isso que Scrooge gostava da escuridão. Do mesmo modo, antes de fechar a pesada porta do seu apartamento, percorreu todas as dependências, para certificar-se de que nada havia de anormal. Ele havia guardado da aparição uma impressão forte o suficiente para justificar esta medida.
A sala, o quarto de dormir, o quarto de despejo, tudo conservava seu aspecto habitual. Não havia ninguém debaixo da mesa, ninguém debaixo do sofá. Um resquício de lume no fogão, uma xícara e uma colher preparadas sobre a grade da lareira, uma canequinha de remédio (Scrooge sofria de enxaqueca). Ninguém debaixo da cama, ninguém no armário embutido, ninguém no robe de chambre, que pendia encostado à parede, numa atitude suspeita. No quarto de despejo, não havia senão, como habitualmente, um velho guarda-fogo, sapatos usados, duas cestas, um penteador cambaio e uma pá de carvão.
Completamente tranquilizado, Scrooge fechou a porta, dando a primeira volta à chave, depois a segunda volta, o que não costumava fazer. Posto assim ao abrigo de surpresas, tirou a gravata, enfiou o roupão, calçou as chinelas, pôs o boné de noite e sentou-se diante do fogo para beber sua xícara de remédio.
O fogo era bastante fraco e de todo insuficiente para uma noite tão fria. Scrooge foi obrigado a sentar-se bem encostado e a inclinar-se sobre ele para conseguir obter deste insignificante punhado de combustível uma leve sensação de calor.
A lareira era antiga. Construída, outrora, por algum antigo comerciante holandês, era inteiramente revestida de azulejos de faiança, representando cenas da Bíblia. Havia Cains e Abéis, filhas de Faraós e rainhas de Sabá, angélicos mensageiros que desciam do céu sobre nuvens de arminho; Abraãos e Baltasares, apóstolos que se aventuravam no tenebroso oceano em pequeninos batéis... Assim, lá estavam centenas de personagens para ocupar e distrair o pensamento de Scrooge.
Entretanto, como a antiga vara do profeta, o rosto de Marley, morto havia sete anos, vinha sobrepor-se a tudo isto. Se a superfície destes azulejos fosse totalmente branca e dotada da propriedade de representar um fragmento que fosse o pensamento de Scrooge, sobre todos eles estaria estampada uma cópia da cabeça de Marley.
– Idiotices!... – disse Scrooge, levantando-se e pondo-se a passear de um lado para outro.
Depois de ter percorrido o aposento muitas vezes seguidas, voltou a sentar-se. Como inclinasse a cabeça para trás, seus olhos pousaram, casualmente, sobre uma campainha já fora de uso, que pendia da parede e que se comunicava, não se sabe por quê, com uma das mansardas da casa.
Scrooge ficou tomado do mais vivo espanto, e ao mesmo tempo de um indescritível e inexplicável pavor, quando viu mover-se o cordão da campainha, que começou a balançar-se primeiro vagarosamente, quase imperceptível, e, em seguida, violentamente, ao mesmo tempo em que todas as campainhas da casa entraram a soar ruidosamente.
Este tumulto durou aproximadamente meio minuto, quando muito um minuto, mas que pareceu interminável a Scrooge. E as campainhas, do mesmo modo como começaram, também silenciaram ao mesmo tempo.
A este alarido infernal, sucedeu um barulho metálico, oriundo das profundezas da casa, como se alguém, no interior da adega, arrastasse pesadas correntes. Então, Scrooge lembrou-se de ter ouvido dizer que, nas casas mal-assombradas, os duendes arrastam sempre grossas cadeias atrás de si.
A porta da adega abriu-se violentamente, e o estrépito fez-se ouvir mais vivo no rés-do-chão, depois na escada, e, aproximando-se cada vez mais, dirigiu-se em linha reta para a porta do apartamento.
– Idiotices!... – disse Scrooge. Não acredito nisso, não!
Mas imediatamente mudou de cor, quando, sem deter-se um só instante, o misterioso visitante atravessou a porta maciça e apresentou-se diante dele.
A sua entrada, o fogo bruxuleante lançou uma derradeira labareda, que pareceu gritar: “Eu o reconheço: é o espectro de Marley! E apagou-se.
Era a mesma fisionomia, absolutamente a mesma. Marley, tendo na cabeça a mesma peruca, vestindo o mesmo colete, as calças justas e as botinas que usava habitualmente. O couro das botas, o topete e o rabicho da peruca arrepiavam-se, e as abas de sua casaca balançavam. Cingia-lhe o corpo a longa corrente que trazia, e que serpenteava atrás dele como uma cauda. Scrooge, que a examinava atentamente, viu que era formada de cofres-fortes, de chaves, de cadeados, de registros e de pesadas bolsas de aço.
Como o corpo do espectro era transparente, Scrooge pôde observar, através do seu colete, os dois botões pregados no corpo do casaco pela parte de trás.
Scrooge ouvira dizer, por mais de uma vez, que Marley não tinha entranhas, mas até então ele jamais pudera acreditar.
Não! Mesmo agora Scrooge não podia acreditar em semelhante coisa. Não lhe importava ver diante de si aquele fantasma, que seu olhar atravessava como se fora de vidro; não lhe importava sentir o olhar glacial dos seus olhos mortos, nem reparar no próprio tecido de que era feito o lenço que lhe envolvia a cabeça e o queixo – minúcia que não lhe havia chamado a atenção nos primeiros momentos.
Não, Scrooge continuava incrédulo e lutava contra os próprios sentidos.
–Pois bem! – disse Scrooge, frio e mordaz como de costume. –Que quer de mim?
– Muita coisa.
Já não podia haver a menor dúvida: era exatamente a voz de Marley.
– Quem é você? – perguntou Scrooge.
– Pergunte, antes, quem eu era ...
– Então, quem era você? – tornou a perguntar Scrooge elevando a voz. – Para ser um espectro acho-o muito real.
– Em vida, fui Jacob Marley, teu sócio.
– Pode... sim... pode sentar-se? – perguntou Scrooge, olhando-o com ar de dúvida.
– Posso.
– Então, sente-se.
Scrooge havia feito esta pergunta porque duvidava que um ser assim tão transparente pudesse acaso tomar um assento, o que obrigaria seu visitante, no caso de impossibilidade, a uma explicação bastante embaraçosa.
O fantasma, porém, sentou-se do outro lado da lareira, com a maior naturalidade deste mundo.
– Não acreditas em mim? – perguntou ele.
– É claro que não, – respondeu Scrooge.
– Que provas desejas da realidade da minha presença, fora do testemunho dos teus sentidos?
– Nem sei.
– Por que duvidas dos teus sentidos?
– Pela simples razão, – respondeu Scrooge –, de que não precisa muita coisa para perturbá-los. Não precisa mais que uma ligeira indisposição de estômago. Quem pode provar que, afinal de contas, tudo isto não passe de uma bisteca mal digerida, uma colher de mostarda, um naco de queijo ou uma batata mal cozida. Quem quer que seja, você cheira mais a cerveja que a defunto.
Scrooge não costumava de modo algum fazer gracejos, e especialmente neste momento não lhe apeteciam pilhérias. Para dizer a verdade, se se mostrava espirituoso, era mais para enganar a si próprio e dissipar o seu pavor, pois a voz do espectro o apavorava até o mais íntimo recesso do seu ser.
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