Ensaio 93B – 2ª edição 1ª reimpressão
na cozinha é outro jeito, o meu jeito. nasci pra isso
quase pedi aos dois pra me deixarem falar, não seria pra aconselhá-los. não sei convencer, não sei recomendar, isso deixo pros espíritos mais velhos, eles devem saber orientar com benevolência; mas, mesmo assim, poderia arriscar uma palavrinha: é preciso acreditar e ter respeito uma no outro e a outra no um. isso eu não disse, fiquei em silêncio pra não ser anotada
gosto deste emprego, mas sinto falta das conversas com as meninas no casarão. aquele tempo passou e não devolve as vidas que foram engolidas, não se dobra nem se reanima, muito menos se arrepende. não é mais nada, só nos resta deste tempo as vidas contadas, as lembranças do que já ouviram contar. não sei onde estarão aquelas meninas, mas sei onde estamos: nas histórias do que contamos umas às outras
quase todas, com a certeza que posso ter da prática de olhar e sobreviver, a villa peneirou e espremeu até que viramos do suco um bagaço de gente. ignoradas e jogadas fora, deixadas pelo caminho. destratadas. desidratadas. antes de nascidas, fazemos das nossas vidas uma aposta: iremos sobreviver, um dia após o outro, superando essa vida desanimada que repetimos todos as manhãs bem cedinho: enganadas, caluniadas, violadas, amordaçadas; as pernas marcadas de mosquitos, somos inevitáveis! mesmo desacreditadas, abandonadas; somos o mistério! inexploradas, somos a terra! esses dois, os grileiros
dona adelaide é bonita, é chique, não é rica, mas faz os seus aparecimentos com fachada de rica. ter aparência não é ser. e o que ela é? é professora da palavra escrita. isso é chique. não gosta de usar das palavras que tem guardadas na cabeça com as crianças piquininas, diz que pra ela dá mais gosto os curupira do meio, com mais pelagem no corpo e tamanho de gente no pé, Não tenho paciência com os pequenos, Milagres. Gosto do silêncio nas minhas aulas. pra boa entendedora a ordem estava dada, fico em silêncio. a moça parece que conversa comigo, mas é só disfarce, ela está se repetindo pra ela mesma na frente do espelho. não espera nenhuma palavra além das palavras dela. esse silêncio me incomoda, mas acostumei, só respondo quando dona adelaide pergunta, sou uma curupira preta. ficar calada virou costume, é fácil aprender isso: pra ficar no emprego é bom manter a boca fechada
na cozinha é outro jeito, o meu jeito. é o meu lugar... dona adelaide repete, A sua gente nasceu pra isso, fiquei curiosa e arrisquei uma pergunta, Pra quê, dona Adelaide, ela me olhou com delicadeza, antes de responder, Para se mostrarem na cozinha. voltei pro silêncio. preciso desse emprego. gosto de cantar, gosto das novelas do rádio, já gostei mais de me mostrar. os homens já gostaram mais de me olhar com gosto. a cozinha é o lugar da minha ocupação, onde faço as coisas acontecerem com o jeito da minha vontade. tem vez que tudo dá certo, outras nem tanto, mas é onde estou no silêncio das coisas pequenas e não preciso das perguntas pra falar
aqui não preciso das coisas grandes, observo nos pequenos sinais se a vida vai continuar amanhã. aprendi: um dia de cada vez. na cozinha é um dia de cada vez. todo mundo precisa de um lugar pra se sentir bem, aceitei que é assim já faz muito tempo. não vivo mais que um dia de cada vez. esperando algum dia muito especial? não. isso ficou pra trás, nos sonhos do tempo do casarão e das meninas. não sabíamos que eram sonhos, chamávamos de planos para o futuro. o futuro é a velhice. tudo passa. todas envelhecemos, algumas espantadas, outras revoltadas, tantas mais conformadas. acho que pra envelhecer é preciso dessa aceitação da convivência com a morte e o adiamento do confronto do fim de tudo. tantas e tão jovens, todas famintas. quase tudo volta, nós não voltamos
longe da cozinha só falo quando me perguntam, não faço as perguntas nem as respostas. e com cuidado pra não desapontar dona adelaide. aprendi as respostas que a moça quer escutar. decorei as perguntas da dona adelaide. essa não é a minha vida, esse é o meu emprego, cuidar calada da dona adelaide. saber ficar com a boca fechada dá mais vantagem que atraso. o lugar do silêncio é imenso, o canto das conversas é piquinino
O chimarrão, Milagres!
Chegou, dona Adelaide.
cheguei da cozinha com a cuia, a erva e a bomba, numa das mãos. arrastava os pés descalços. tudo pronto, o topete bem verdinho, a fumacinha da água subindo ao lado da bomba. a chaleira na outra mão. as minhas pegadas estão acostumadas com minhas pisadas lentas e ásperas. ficar descalça é um cacoete que não sei de onde vem, mas sei que é muito antigo. dona adelaide já fez até comentário, Milagres, caminhar descalça deve te dar uma sensação de liberdade. Vou experimentar, não respondi. não era pergunta
os dois continuavam embrulhados no presente, e parte de mim estava de volta ao presente
Para mim?
Sim... é para você, Sèzar.
Onde posso me sentar?
Sente-se onde achar melhor.
ele passou por mim como se eu não existisse, poderia pedir, Com licença, Milagres, não pediu. foi até a cozinha e voltou com um banco sem encosto, um mocho descascando. e me atravessou, novamente
não entendi o que estava acontecendo: uma camiseta vermelha sobre a cadeira de balanço e dois ingressos na mão da dona adelaide
colocou o mocho no chão, mas não sentou. estava agitado. atravessou o quarto biblioteca e abriu a janela. estranho que não havia reparado que a janela estava fechada, esteve por toda manhã fechada. a luz entrou por inteiro e nos cegava. dava pra sentir a brisa morna agarrada nos assopros que chegavam do rio. examinava lá fora a vida apressada e nervosa
Veja isso, Adelaide.
Por favor, Sèzar.
o que ele poderia mostrar pra mocinha que ela e eu já não tivéssemos visto, quase perguntei
Venha aqui, preguiçosa.
a moça foi. eu também
Observe as pessoas...
Por que?
Elas não sabem e não se importam. Como dar importância para aquilo que não sabemos?
eu estava perdendo minha imensa paciência, crescida por anos de silêncios
Com o quê, Sèzar?
Olhe para sua direita, quase na frente do quartel...
E daí?
Está vendo?
O quê? Homem de Deus!
ele demorava pra tirar as palavras da boca, vagavam em pequenas voltas sem perder o controle do mistério. gostava de manter-se no controle como criança mimada
Ali ficava o pelourinho da Villa, bem na frente da Igreja das Torres.
ficamos curiosas. depois fiquei assustada: a jovem branca não saber, eu posso entender: a escola não conta o que não tem permissão pra dizer, mas e eu? como posso não saber? a vergonha da villa tem medo da história ou da verdade
Nunca ouvi falar, repetimos. eu retruquei em silêncio, claro
o moço ergueu o braço e apontou pra dar precisão da localização, Pois ficava bem ali. E lá na praça, apontou para o outro lado, as autoridades da Villa mandavam colocar a corda em uma das árvores para fazer cumprir a ordem do enforcamento. Esse canto da Villa já teve os seus encantos macabros: os divertimentos do domingo.
a justiça dos ricos. aposto que nunca enforcou nenhum rico. isso prova que os pobres são degenerados? não, isso apenas comprova que a justiça dos ricos é degenerada
voltamos os olhos pro lugar sem marcas do pelourinho. o moço estava excitado. deu um passo atrás, como se na sombra da janela quisesse observar o castigo no pelourinho sem ser observado, a moça estava pesarosa, Imagine quantas tristes lembranças açoitam essa janela...
voltei a olhar pro vazio do lugar, sem a pedra da infâmia. um lugar assim, com tantas infâmias escondidas, não quer ser diferente do que sempre foi: propriedade dos ricos, controlado pelos ricos, conduzido pros ricos
olhei pra outra parte de mim, que não saiu da biblioteca e não veio até a janela, queria explicações. o que está acontecendo, me perguntei. o outro pedaço respondeu
o moço cutucou a onça com a sua varinha curta e parece que vai ser devorado. quer ganhar tempo
recolhi e estiquei os ombros, e daí, retruquei, o que aconteceu enquanto fui preparar o chimarrão, voltei a perguntar-me. o seu sèzar quis fazer uma brincadeira com o azedume da villa, misturando azul com vermelho. mas isso da janela foi diferente, ele fez uma pequena delação
voltamos ao nosso silêncio das escutas sem perguntas, esperando as explicações. recordando as palavras. recomecei o relato da parte na biblioteca: depois que você saiu, dona adelaide continuou encarando o moço, já tinha rasgado o pacote amassado de sovado
Mas é vermelha, ela disse, num piquinino muxoxo. ele encolheu os ombros e arregalou os olhos. senti vontade de correr atrás de você até a cozinha. dona adelaide tava desencantada. não disse mais nada
Abra a camisa, insistiu
quando ela abriu caiu o resto do presente. ela abaixou as mãos e se juntou do chão
Dois ingressos?
e você não vinha com o chimarrão, ficava por lá, escutando a sua novela do rádio. detesto essas bobices das novelas, esses chavões idiotas: a vida que imita a arte. aqui, tava mais interessante. o moço conseguiu ser um autêntico idiota e a moça cansou. deu para perceber que faltou pouquinho para dizer, pena que não disse, Não há nada para você aqui, Sèzar.
ela vai aos jogos. não tem medo dos palavrões, xingamentos e os elogios abusados e deselegantes dos machões. é uma das poucas mulheres que se atrevem em um estádio da villa. o mocinho sabe que essa camiseta do time rival foi demais
homens... existem bons homens no mundo, mas parecem tão cansados pra aprenderem gentilezas. acho que falta inspiração pra eles. não sou vingativa, mas sinto vontade de derramar umas gotinhas dessa água quente no colo desse asno
calma, milagres! nem é tão importante o jogo, mas as histórias são tantas. sei que foi uma provocação desnecessária. dona adelaide parecia ensopada daquela ressaca sem gosto de vinho, sem roupa, e na cama um colorado chato, inoportuno e maçante. eu, no lugar dessa moça, dava um chute na bunda do cretino!
calma, milagres! nem é tão importante esse jogo, mas e as histórias, milagres. eu empurrava da minha cama com os dois pés esse corpo estranho, depois tomava um banho bem demorado pra tirar da pele as marcas desse malandro agulha. e o que ela fez? ela repetiu com incredulidade, Mas é vermelha...
E daí, Adelaide? Às vezes, é preciso ousar. Mudar a perspectiva... e para vocês, mulheres, o futebol nem é futebol, aliás, nem sabem o que é o futebol. Tanto faz uma coisa, tanto faz outra coisa, deixe essas preocupações para os homens.
milagres, não escutei mais nada. fiquei muito furiosa, fiz o sinal da cruz e rezei mandinga: deus atendei ao meu pedido, vinde em socorro da moça. confundido seja e envergonhado esse que busca a alma da dona adelaide, refiz o sinal da cruz. ficamos em silêncio. diz alguma coisa, deus. nada. somos pedaços costurados da mesma raiz na mesma terra. diz alguma coisa. silêncio. você tá emburrado? não fica nesta mudez de segredo, remexendo as ideias e as palavras como se fosse um naco inteiro, apartado, desobediente e mais esperto
milagres, eu acho que isso não foi um erro, esse moço tem um propósito, um plano... hum... e com qual intenção? ora, milagres. não sei. e quem sabe? e quem se importa? como somos tão próximas e você tão ingênua. é tão óbvio o plano: casar! ser dono da moça, ela ser a dona da cozinha e ficamos sem uso e sem ganho de sustento. desempregadas
Você acha?
eu não acho, eu sei. pensa comigo: quem dá uma camiseta que fede a sovaco? e dois ingressos de futebol! isso mesmo, quem já se acha dono e só falta casar
e o que ela fez?
agradeceu
Obrigada...
Viu o número?
... que número?
O número na camiseta é a identidade do jogador.
É?
Fica nas costas...
Ah... é o dois... já sei...
Isso.
Lateral direito...
E...
Acertei?
O número da camiseta? Sim. Gostou do presente?
Obrigada.
agradeceu, novamente. acho que tava chocada. ela precisa de uma reviravolta. milagres, isso não é uma das histórias das suas novelas do rádio. bobice, essa moça precisa de uma reviravolta
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Leia também:
Ensaio 92B – 2ª edição 1ª reimpressão
Histórias de avoinha: a sombra predileta
Ensaio 94B – 2ª edição 1ª reimpressão
na cozinha é outro jeito, o meu jeito. nasci pra isso
baitasar
quase pedi aos dois pra me deixarem falar, não seria pra aconselhá-los. não sei convencer, não sei recomendar, isso deixo pros espíritos mais velhos, eles devem saber orientar com benevolência; mas, mesmo assim, poderia arriscar uma palavrinha: é preciso acreditar e ter respeito uma no outro e a outra no um. isso eu não disse, fiquei em silêncio pra não ser anotada
tempestade é tempestade
Iansã é majestade
Iansã é majestade
gosto deste emprego, mas sinto falta das conversas com as meninas no casarão. aquele tempo passou e não devolve as vidas que foram engolidas, não se dobra nem se reanima, muito menos se arrepende. não é mais nada, só nos resta deste tempo as vidas contadas, as lembranças do que já ouviram contar. não sei onde estarão aquelas meninas, mas sei onde estamos: nas histórias do que contamos umas às outras
quase todas, com a certeza que posso ter da prática de olhar e sobreviver, a villa peneirou e espremeu até que viramos do suco um bagaço de gente. ignoradas e jogadas fora, deixadas pelo caminho. destratadas. desidratadas. antes de nascidas, fazemos das nossas vidas uma aposta: iremos sobreviver, um dia após o outro, superando essa vida desanimada que repetimos todos as manhãs bem cedinho: enganadas, caluniadas, violadas, amordaçadas; as pernas marcadas de mosquitos, somos inevitáveis! mesmo desacreditadas, abandonadas; somos o mistério! inexploradas, somos a terra! esses dois, os grileiros
Venta, venta Iansã
Eparrey Oyá!
Eparrey Oyá!
dona adelaide é bonita, é chique, não é rica, mas faz os seus aparecimentos com fachada de rica. ter aparência não é ser. e o que ela é? é professora da palavra escrita. isso é chique. não gosta de usar das palavras que tem guardadas na cabeça com as crianças piquininas, diz que pra ela dá mais gosto os curupira do meio, com mais pelagem no corpo e tamanho de gente no pé, Não tenho paciência com os pequenos, Milagres. Gosto do silêncio nas minhas aulas. pra boa entendedora a ordem estava dada, fico em silêncio. a moça parece que conversa comigo, mas é só disfarce, ela está se repetindo pra ela mesma na frente do espelho. não espera nenhuma palavra além das palavras dela. esse silêncio me incomoda, mas acostumei, só respondo quando dona adelaide pergunta, sou uma curupira preta. ficar calada virou costume, é fácil aprender isso: pra ficar no emprego é bom manter a boca fechada
cabocla Jupira é quem me guia
na luz da noite, no raio do dia
na luz da noite, no raio do dia
na cozinha é outro jeito, o meu jeito. é o meu lugar... dona adelaide repete, A sua gente nasceu pra isso, fiquei curiosa e arrisquei uma pergunta, Pra quê, dona Adelaide, ela me olhou com delicadeza, antes de responder, Para se mostrarem na cozinha. voltei pro silêncio. preciso desse emprego. gosto de cantar, gosto das novelas do rádio, já gostei mais de me mostrar. os homens já gostaram mais de me olhar com gosto. a cozinha é o lugar da minha ocupação, onde faço as coisas acontecerem com o jeito da minha vontade. tem vez que tudo dá certo, outras nem tanto, mas é onde estou no silêncio das coisas pequenas e não preciso das perguntas pra falar
aqui não preciso das coisas grandes, observo nos pequenos sinais se a vida vai continuar amanhã. aprendi: um dia de cada vez. na cozinha é um dia de cada vez. todo mundo precisa de um lugar pra se sentir bem, aceitei que é assim já faz muito tempo. não vivo mais que um dia de cada vez. esperando algum dia muito especial? não. isso ficou pra trás, nos sonhos do tempo do casarão e das meninas. não sabíamos que eram sonhos, chamávamos de planos para o futuro. o futuro é a velhice. tudo passa. todas envelhecemos, algumas espantadas, outras revoltadas, tantas mais conformadas. acho que pra envelhecer é preciso dessa aceitação da convivência com a morte e o adiamento do confronto do fim de tudo. tantas e tão jovens, todas famintas. quase tudo volta, nós não voltamos
era seu Pena Branca sozinho
ele veio abrindo caminho
ele veio abrindo caminho
longe da cozinha só falo quando me perguntam, não faço as perguntas nem as respostas. e com cuidado pra não desapontar dona adelaide. aprendi as respostas que a moça quer escutar. decorei as perguntas da dona adelaide. essa não é a minha vida, esse é o meu emprego, cuidar calada da dona adelaide. saber ficar com a boca fechada dá mais vantagem que atraso. o lugar do silêncio é imenso, o canto das conversas é piquinino
O chimarrão, Milagres!
Chegou, dona Adelaide.
cheguei da cozinha com a cuia, a erva e a bomba, numa das mãos. arrastava os pés descalços. tudo pronto, o topete bem verdinho, a fumacinha da água subindo ao lado da bomba. a chaleira na outra mão. as minhas pegadas estão acostumadas com minhas pisadas lentas e ásperas. ficar descalça é um cacoete que não sei de onde vem, mas sei que é muito antigo. dona adelaide já fez até comentário, Milagres, caminhar descalça deve te dar uma sensação de liberdade. Vou experimentar, não respondi. não era pergunta
os dois continuavam embrulhados no presente, e parte de mim estava de volta ao presente
Para mim?
Sim... é para você, Sèzar.
Onde posso me sentar?
Sente-se onde achar melhor.
ele passou por mim como se eu não existisse, poderia pedir, Com licença, Milagres, não pediu. foi até a cozinha e voltou com um banco sem encosto, um mocho descascando. e me atravessou, novamente
não entendi o que estava acontecendo: uma camiseta vermelha sobre a cadeira de balanço e dois ingressos na mão da dona adelaide
colocou o mocho no chão, mas não sentou. estava agitado. atravessou o quarto biblioteca e abriu a janela. estranho que não havia reparado que a janela estava fechada, esteve por toda manhã fechada. a luz entrou por inteiro e nos cegava. dava pra sentir a brisa morna agarrada nos assopros que chegavam do rio. examinava lá fora a vida apressada e nervosa
Veja isso, Adelaide.
Por favor, Sèzar.
o que ele poderia mostrar pra mocinha que ela e eu já não tivéssemos visto, quase perguntei
Venha aqui, preguiçosa.
a moça foi. eu também
Observe as pessoas...
Por que?
Elas não sabem e não se importam. Como dar importância para aquilo que não sabemos?
eu estava perdendo minha imensa paciência, crescida por anos de silêncios
Com o quê, Sèzar?
Olhe para sua direita, quase na frente do quartel...
E daí?
Está vendo?
O quê? Homem de Deus!
ele demorava pra tirar as palavras da boca, vagavam em pequenas voltas sem perder o controle do mistério. gostava de manter-se no controle como criança mimada
Ali ficava o pelourinho da Villa, bem na frente da Igreja das Torres.
ficamos curiosas. depois fiquei assustada: a jovem branca não saber, eu posso entender: a escola não conta o que não tem permissão pra dizer, mas e eu? como posso não saber? a vergonha da villa tem medo da história ou da verdade
Nunca ouvi falar, repetimos. eu retruquei em silêncio, claro
o moço ergueu o braço e apontou pra dar precisão da localização, Pois ficava bem ali. E lá na praça, apontou para o outro lado, as autoridades da Villa mandavam colocar a corda em uma das árvores para fazer cumprir a ordem do enforcamento. Esse canto da Villa já teve os seus encantos macabros: os divertimentos do domingo.
a justiça dos ricos. aposto que nunca enforcou nenhum rico. isso prova que os pobres são degenerados? não, isso apenas comprova que a justiça dos ricos é degenerada
voltamos os olhos pro lugar sem marcas do pelourinho. o moço estava excitado. deu um passo atrás, como se na sombra da janela quisesse observar o castigo no pelourinho sem ser observado, a moça estava pesarosa, Imagine quantas tristes lembranças açoitam essa janela...
voltei a olhar pro vazio do lugar, sem a pedra da infâmia. um lugar assim, com tantas infâmias escondidas, não quer ser diferente do que sempre foi: propriedade dos ricos, controlado pelos ricos, conduzido pros ricos
olhei pra outra parte de mim, que não saiu da biblioteca e não veio até a janela, queria explicações. o que está acontecendo, me perguntei. o outro pedaço respondeu
o moço cutucou a onça com a sua varinha curta e parece que vai ser devorado. quer ganhar tempo
recolhi e estiquei os ombros, e daí, retruquei, o que aconteceu enquanto fui preparar o chimarrão, voltei a perguntar-me. o seu sèzar quis fazer uma brincadeira com o azedume da villa, misturando azul com vermelho. mas isso da janela foi diferente, ele fez uma pequena delação
voltamos ao nosso silêncio das escutas sem perguntas, esperando as explicações. recordando as palavras. recomecei o relato da parte na biblioteca: depois que você saiu, dona adelaide continuou encarando o moço, já tinha rasgado o pacote amassado de sovado
Mas é vermelha, ela disse, num piquinino muxoxo. ele encolheu os ombros e arregalou os olhos. senti vontade de correr atrás de você até a cozinha. dona adelaide tava desencantada. não disse mais nada
Abra a camisa, insistiu
quando ela abriu caiu o resto do presente. ela abaixou as mãos e se juntou do chão
Dois ingressos?
e você não vinha com o chimarrão, ficava por lá, escutando a sua novela do rádio. detesto essas bobices das novelas, esses chavões idiotas: a vida que imita a arte. aqui, tava mais interessante. o moço conseguiu ser um autêntico idiota e a moça cansou. deu para perceber que faltou pouquinho para dizer, pena que não disse, Não há nada para você aqui, Sèzar.
ela vai aos jogos. não tem medo dos palavrões, xingamentos e os elogios abusados e deselegantes dos machões. é uma das poucas mulheres que se atrevem em um estádio da villa. o mocinho sabe que essa camiseta do time rival foi demais
homens... existem bons homens no mundo, mas parecem tão cansados pra aprenderem gentilezas. acho que falta inspiração pra eles. não sou vingativa, mas sinto vontade de derramar umas gotinhas dessa água quente no colo desse asno
calma, milagres! nem é tão importante o jogo, mas as histórias são tantas. sei que foi uma provocação desnecessária. dona adelaide parecia ensopada daquela ressaca sem gosto de vinho, sem roupa, e na cama um colorado chato, inoportuno e maçante. eu, no lugar dessa moça, dava um chute na bunda do cretino!
calma, milagres! nem é tão importante esse jogo, mas e as histórias, milagres. eu empurrava da minha cama com os dois pés esse corpo estranho, depois tomava um banho bem demorado pra tirar da pele as marcas desse malandro agulha. e o que ela fez? ela repetiu com incredulidade, Mas é vermelha...
E daí, Adelaide? Às vezes, é preciso ousar. Mudar a perspectiva... e para vocês, mulheres, o futebol nem é futebol, aliás, nem sabem o que é o futebol. Tanto faz uma coisa, tanto faz outra coisa, deixe essas preocupações para os homens.
milagres, não escutei mais nada. fiquei muito furiosa, fiz o sinal da cruz e rezei mandinga: deus atendei ao meu pedido, vinde em socorro da moça. confundido seja e envergonhado esse que busca a alma da dona adelaide, refiz o sinal da cruz. ficamos em silêncio. diz alguma coisa, deus. nada. somos pedaços costurados da mesma raiz na mesma terra. diz alguma coisa. silêncio. você tá emburrado? não fica nesta mudez de segredo, remexendo as ideias e as palavras como se fosse um naco inteiro, apartado, desobediente e mais esperto
milagres, eu acho que isso não foi um erro, esse moço tem um propósito, um plano... hum... e com qual intenção? ora, milagres. não sei. e quem sabe? e quem se importa? como somos tão próximas e você tão ingênua. é tão óbvio o plano: casar! ser dono da moça, ela ser a dona da cozinha e ficamos sem uso e sem ganho de sustento. desempregadas
Senhora dos ventos
o teu fogo flamejou
Rainha do tempo
poderosa guerreira encantou
Você acha?
eu não acho, eu sei. pensa comigo: quem dá uma camiseta que fede a sovaco? e dois ingressos de futebol! isso mesmo, quem já se acha dono e só falta casar
ô meu caboclo
não assusta essa arara
ela é mensageira
dessa macaia
e o que ela fez?
agradeceu
Obrigada...
Viu o número?
... que número?
O número na camiseta é a identidade do jogador.
É?
Fica nas costas...
Ah... é o dois... já sei...
Isso.
Lateral direito...
E...
Acertei?
O número da camiseta? Sim. Gostou do presente?
Obrigada.
agradeceu, novamente. acho que tava chocada. ela precisa de uma reviravolta. milagres, isso não é uma das histórias das suas novelas do rádio. bobice, essa moça precisa de uma reviravolta
ecoa, ecoa Omulú
bate estaca, pra encaminhar
Iansão de Balé tá bailando
trovejando pra se levantar
Ensaio 94B – 2ª edição 1ª reimpressão
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