terça-feira, 6 de dezembro de 2016

O Brasil nação - v1: § 14 – Os marqueses e o respectivo senado - Manoel Bomfim

Manoel Bomfim



O Brasil nação volume 1





PRIMEIRA PARTE
SEQUÊNCIAS HISTÓRICAS



capítulo 2
a reação da nacionalidade




§ 14 – Os marqueses e o respectivo senado




É bem de ver que não poderia haver, nestas páginas, sequência cronológica, mas o simples debulhar de consequências lógicas. Por isso mesmo, muita coisa, bastante interessante, como a incapacidade militar de Barbacena, a alcovitice de ministros, não são notadas. Mas fora impossível não destacar a imoralidade do Império nascente, a pagar polpudas percentagens aos Barbacenas e Gameiros, que as dividem com o próprio imperante, ou o absolutismo do português Vieira de Carvalho (Marquês de Lages), repetidamente ministro. São fatos característicos, prenúncios tristemente expressivos do que será a futura política no Brasil, mesmo nos dias da República. Não menos expressiva é a tendência de corrupção que vem de cima, notada desde os dias de D. João VI, e de que resulta a ridícula fidalguia enxertada pela monarquia no Brasil, necessariamente democrata, essencialmente americana; fidalguia tantas vezes grotesca, não raro pintada de mistura. A constituição não reconhecia corpo de nobreza. Mas, sempre coisa morta, por fora dela, contra ela, antes dela, Pedro I fez para o Brasil uma camada de espúrios aristocratas, tão abundante, como nunca conheceu nenhum país da Europa saído do feudalismo.77  O espírito popular, para bastante prova de quanto a coisa contrariava a tradição nacional, glosou a derramada fidalguia, na versalhada, em torno do estribilho: Condes são, posto que vis... deliciosa redondilha, bem na índole das nossas gentes. Os ministérios se sucediam assim cotados: “Marquês de Maceió, Marquês de Queluz, Marquês de Paranaguá, Marquês de Lages, Marquês de Cairu, Marquês de Nazareth... Marquês de Maceió, Conde de São Leopoldo, Visconde de...” A constituição, em proveito do moderador, e com que se embaíra o Brasil de 1824, foi obra de dez cérebros em comissão – os dez do futuro Conselho de Estado: oito marqueses, um conde e um visconde, entre os quais os indefectíveis Paranaguá e Caravelas, o inefável Maricá e o esquecido Fanado... No curso da obra, morreram três dos divinos, substituídos por outros igualmente aristocratizados.78  Armitage diz

77 Um bem humorado da época, comenta o fato nestas linhas: “A monarquia portuguesa, fundada há 736 anos, tinha em 1803, época em que foi reformado o quadro, 16 marqueses, 26 condes, 8 viscondes e 4 barões. O Brasil, que tem oito anos apenas como potência, conta já no seu seio, 28 marqueses, 8 condes, 16 viscondes e 21 barões. Ora, progredindo assim as coisas, como é de esperar, teremos no ano de 2551, quando o Brasil atingir a atualidade de Portugal, nada menos que 2385 marqueses, 710 condes, 1421 viscondes e 1863 barões, desprezando quebrados. E como não há nobreza sem riqueza, serão os nossos descendentes mais ricos que o Grão-Mogol” (Aurora, de 1829).

78 Os outros sete eram: o Marquês de Queluz, o Marquês de Cachoeira, o Marquês de Nazareth, o Marquês de Santo Amaro, o Marquês de Baependi, o Marquês de Inhabumpe. Mortos, Cachoeira, Queluz e Nazareth foram substituídos pelos: Conde de Valença, Visconde de São Leopoldo e Marquês de São João da Palma... 


que um dos mais notáveis, na companhia, Ferreira França, “Era, talvez, o mais abjeto e servil de todo o conselho”. Imediatamente depois, porém, o inglês corrige o conceito, com o comentário tirado do próprio Ferreira França: “Meus colegas não hesitaram em taxar-me de servil... Eu não sou um átomo mais servil do que eles; mas o fato é que sou menos hipócrita”. A crônica aí está para dar razão ao Marquês de Nazareth. Onde ela não lhe nega primazia é na crueldade covarde: foi o ignóbil ajudante de carrasco dos heróis de 1824; Lima e Silva e próprio Niemayer intercederam pelas vítimas, após o julgamento militar, mas Ferreira França não deu tempo a que se pronunciasse a imperial clemência, e fez executar imediatamente os prisioneiros. Não era, talvez, por ferocidade própria, senão para completar a crueza do amo. 

Na marquesada com que Pedro I fez o seu Império, destaca-se desde logo Carneiro de Campos, que teria sido o autor dos liberalismos inúteis, salpicados na Constituição de 24. No entanto, Drumond, depois de notar que Carneiro de Campos se negara a dissolver a Constituinte, e que sempre fizera a política para com Portugal de acordo com José Bonifácio, afirma, documentadamente, que os Carneiros de Campos eram, literalmente, criaturas de D. João VI, e, que, na Bahia, haviam sido contra a Independência. Apesar dessas relações pessoais, Antonio Carlos, quando se refere ao governo de Carneiro de Campos, é para taxá-lo de “o mais corrompido...”79  Em mais realce, com legítima primazia, assinala-se o lusitaníssimo Vilela-Paranaguá, com a nota de oficial do exército português até depois de ministro do Brasil. Foi quem referendou, para o filho de D. João VI, a primeira ostensiva vitória contra a nacionalidade brasileira – com a dissolução 


79 Anotações, págs. 30, 33 e 61; Varnhagem, Hist. da Indep., pág. 267.


da Constituinte.80  Estava o Brasil em guerra com Portugal, e Vilela Barbosa, ministro beleguim do imperador, apresenta-se perante a Assembleia, na sua farda de militar português. Depois, foi o mais constante nos conselhos do imperador estrangeiro, e em constante engrandecimento – visconde, marquês, conselheiro de Estado, senador, dignatário e gran-cruz do Cruzeiro... Esteve seguidamente ministro, de 1823 a 27, e só saiu por algum tempo porque desagradou a Domitila. Assim, na importantíssima pasta da marinha, presidiu a todos os tristes fracassos das armas brasileiras no Prata, e teve como digno executante da sua estratégia ao mesmo Rodrigo Lobo – que arrotara para os pernambucanos a bravura de entrar no Recife de espada desembainhada, para executar os brasileiros patriotas; Na regeneração constitucional de 1829, foi de novo ministro, com o gabinete parlamentar de Barbacena e Calmon. Quando, poucos meses depois, aquele se demitiu, ficou Paranaguá presidindo a política imperial. Foi isso o que acordou definitivamente os brios da nacionalidade, e os concertou, para o desfecho de 7 de abril. Eis o seu verdadeiro serviço ao Brasil. E foi inestimável. Ainda tentou evitar a abdicação, já escrita; mas Frias não lhe deu ouvidos. Então, considerando finda a sua missão no Brasil, foi para bordo da “Warspite”, empenhando-se para acompanhar o ex-imperante. 

Intelectual e lusitanófilo, como Vilela Barbosa, era Cairu, o redator do decreto de abertura dos portos, como o tinha decidido


80 Deputado suplente às cortes como brasileiro, Vilela Barbosa opôs-se, no entanto, ao proceder de Feijó, Antonio Carlos, Barata... que se negaram a assinar a constituição que nos deprimia. Vilela não a assinou, mas antes, aceitara a medida dos cortistas antibrasileiros, retalhando o Brasil em juntas governativas, medida que ele agravou propondo que os governadores militares ficassem sujeitos às supraditas juntas. E porque se tratava de um conceito passado em julgado, Saldanha Marinho, ao lembrar a dissolução da Constituinte, apresenta-a “escarnecida pelo retrógrado mais ousado da época, o brasileiro desnaturado, Vilela Barbosa, que nas cortes portuguesas se opusera à independência de sua pátria (A Política do Rei, pág. 98).


o inglês. Foi um dos mais ativos contra as tradições brasileiras. Charlatão idoso, como o trata José Bonifácio, ele fez ao Brasil o mal constante dos charlatães. Teve como maior mérito ser um magistrado pobre, “quando pudera ter enriquecido”, aponta um seu biógrafo, à falta de maior valor. Vivia na carapaça de ideias atrasadas de um século, isto é, num absolutismo irritante e violento. Combateu a liberdade de imprensa, contra Bernardo de Vasconcelos, e afirmava, na sua veemência de decrépito – a imprensa faz mais mal do que bem... Os oitenta anos pesavam-lhe, sobretudo, nas ideias; era já um irresponsável, e, no entanto, arvorara-se sobre o Senado como um dos línguas mais acatados. Apesar disto, deve ser colocado acima de Maciel da Costa, também marquês – de Queluz. Foi o abjeto presidente da Constituinte, na hora da dissolução; só teve voz para responder ao sargentão comandante da força: “– Pode assegurar à sua majestade que a Assembleia se dissolveu”.81  Afirma Drumond que o marquesado veio por haver feito a prisão de um patriota, naqueles mesmos dias. Com estas provas, mereceu fazer parte dos dez, genitores da Constituição de 1824, o que lhe foi fácil porque nem tinha ideias, nem se embaraçava com elas. Ministro, absolutista na prática, “teve o desinteresse”, diz o humorismo de Armitage, de afirmar no Senado – que “o regime constitucional não era próprio para países onde as comunicações eram difíceis...”


81 Drumond não hesita em repetir o conceito, geral na sua época – de que o imperador fora sócio nas comissões de Barbacena. E conta, ao mesmo tempo, documentadamente, que Caldeira, seu amigo e correligionário, lhe negou hospedagem no momento crítico da fuga, em 1823 (Anotações 87, 95). Varnhagem, todo bragantista e imperialista, é peremptório contra Barbacena: “... só aceitava a pasta da fazenda, para seus fins particulares... Caldeira Brand já começara a enriquecer-se à custa da nação” (311-341). A definitiva consagração do fato, ditou-a o próprio Pedro I, quando, a despedir o lamuriante Vilela Barbosa, cuspiu-lhe a essência da sua bragantitina: “É pobre? Por que não roubou? Roubasse! Por que não roubou como o Barbacena?” (Carta do Ministro Deyser).


Tal é a hora em que a marquesada fermenta e alastra, sem que se distingam estes, que são brasileiros, dos portugueses: José Maria de Almeida, guardado para ser almirante ao lado de Rodrigues Lobo, que mesquinhará no Prata, e Barbuda, marquês analfabeto, e Mascarenhas, Conde-Marquês de Palmas, condestável no ridículo da corte bragantina, eleito senador por quatro províncias... Aos destes, casam-se os longos e perniciosos serviços dos Inhambupes e Fanados, já conhecidos ou nulos para tudo, até que chegamos a Barbacena – guerreiro, diplomata, financeiro, estadista, casamenteiro... do império de Pedro I. É brasileiro de tradição, mas, destaca-se, definitivamente, em 1817, secundando a diabólica atividade de dos Arcos, a esmagar o movimento dos pernambucanos. Reassinala-se em 1821, adversário dos liberais, por ocasião da revolução constitucional da Bahia, aonde se achava, ainda. Por isso mesmo, grato, D. João VI o ajuda a fugir para a Inglaterra. 82 Mereceu o título histórico de Barbacena, atendendo-se a que o anterior fora o próprio que ajudara a oferecer Portugal a Junot. Guerreiro, estava abaixo de Lecor-Laguna, e tem como prova definitiva o desastre de Ituzaingo. Lino Coutinho, que o conhecia muito, explicou a derrota: “... generalíssimo, que não saberia comandar uma divisão...” Vindo da Inglaterra quando a Independência estava proclamada, verificando a força dos patriotas brasileiros em face da política imperial, tratou de convencê-los de que era também patriota brasileiro: deu-se a dissolução, e o neto do contratador se passa, todo inteiro, para o imperador português, para ser agente e sócio nos escandalosos empréstimos de 1824. Tinha topete: de volta ao Brasil, com as algibeiras fortes, farejou a vitória da nacionalidade e passou a ser liberal. Os patriotas condescenderam, e consideraram o seu ministério – liberal e parlamentar. Pedro I se irritou de tais veleidades e demitiu-o,


82 Varn. Hist. da Indep. pág. 354.


a bem do serviço público... Mas, apesar de tudo, Barbacena era um homem, que bem conhecia a qualidade da coragem imperial: replicou em voz forte ao decreto de demissão, tanto mais quanto tinha um grande saco de coisas a dizer a respeito do sócio... Ficou tudo nisto mesmo, e Pedro I refugou da luta. O público é que não se iludiu mais com o antigo diplomata, que, com Gameiro, concertara o tratado de reconhecimento, comentado com os escandalosos empréstimos, onerosos para o Brasil, e que lhe deixaram, como ao companheiro, polpudas e confessadas comissões. Foi tão escandaloso o caso que a Assembleia pediu contas ao governo. Armitage, que o conheceu no fastígio da glória, moteja britanicamente dos seus talentos “... gênio universal... ignorância e má direção como general... cortesão sagaz”... Brasileiro de sangue, Barbacena era o nítido oposto dos Vidal, Barbalho, Dessa... Já tinha voltado muito atrás do famoso contratador de diamantes... 

Outro brasileiro amarquesado, e de destaque, é Maricá. Foi do ministério Vilela Barbosa, que dissolveu a Constituinte. E bem o merecia. Os portugueses consideraram-no pessoa de confiança, tanto que, nas dificuldades de 1822, em agosto, o nomearam para o ministério que, em junta geral, ficaria governando o Brasil quando o Príncipe da Beira partisse.83  Era natural que o imperador, o Príncipe da Beira, fizesse sua a confiança dos políticos de Lisboa. Foi companheiro de Maricá, no tal ministério fracassado de 1822, o português, governante brasileiro, Vieira de Carvalho; fez parte, logo, do primeiro ministério em substituição aos Andradas; depois, em 1826, foi de novo ministro. Antigo militar do exército português, teve o marechalato brasileiro em 1827, e foi também nomeado senador. Era ostensivamente absolutista, muito do peito de Pedro I, que, em prova definitiva, o nomeou para o famoso ministério dos marqueses, em 5 de abril de 1831.


83 Varnhagen, Hist. da Independência, págs. 182, 203.


Com isto, compreende-se bem que tinha de ser ministro em 1839, com Araújo Lima, e maioridadista em 1840. O seu marquesado – de Lages, foi-lhe dado pelo segundo Império: teve duplicata de serviços. 

Foi também liberal, maioridadista, o assinalado Marquês Ribeiro de Rezende. Era da Constituinte de 1823 e serviu de beleguim contra os seus pares, por ocasião da dissolução. Muito merecidamente, foi ministro em 1824. 

No seio da marquesada, no mesmo valor, sob o nome de batismo, outras criaturas de Pedro I se elevaram na triste celebridade dos titulados. Um Oliveira Alvares, português, ministro da guerra em 1829, tivera a coragem de repetir-se em comissão militar para tiranizar os pernambucanos. Fez-lhe companhia na façanha o célebre Teixeira de Gouveia. Foram ambos acusados na Assembleia, onde se propôs fossem processados. Pedro I, servindo-se do seu Ledo, tudo fez em defesa desses servidores. Era o ministério de José Clemente,84  já conhecido como o ministério liberticida. A nação brasileira, que naquela época existia em manifestações evidentes, julgou o caso não reelegendo o mesmo Teixeira de Gouveia. A propósito desse ministério, Pereira da Silva tem a fórmula: “Quem se aproximava do governo, tornava-se suspeito à nação”. Oliveira Alvares era um qualificado: havia sido ministro do Príncipe Real antes de José Bonifácio. Imposto pelo governo, em 1829, para deputado pelo Rio Grande do Sul, a Assembleia quase o elimina – por indigno. Salvou-se, de par com José Clemente. Quando viu as coisas mal paradas, em 1830, safou-se para o seu Portugal. Ao despedir-se, do patrão imperador, teria refletido com ele que o caso estava perdido, e mais valia uma retirada a tempo. Foi, então, que se decidiu a abdicação. Em 1832, foi o escolhido, pelos restauradores, para vir comandar o exército do Duque de


84 Seria Conde da Piedade; estava marcado; quando a morte...


Alcântara contra a nação brasileira. Cite-se, ainda, o Bispo Silva Coutinho, português, capelão-mor de Pedro I, feito senador por São Paulo. 

Nessa época, o Senado já era o absolutismo organizado para a vitória do portuguesismo, e, assim, impor-se ostensivamente à Assembleia Nacional, anulando-a afrontosamente. Foi o lance resolvido na célebre sessão de quatro dias. Na perspectiva de uma luta decisiva, mais uma vez, amorteceu a coragem de Pedro I: fora o insuflador da contenda entre as duas câmaras, mas, à última hora, recuou, enviando ao seu senado uma mensagem aconselhando que se realizasse o regime da lei, como o reclamava a Assembleia. O Senado obedeceu. O Senado era a marquesada, sobre o qual reinavam, incontestados, numa corte de bobagem, Pedro I e o seu Chalaça. José Bonifácio não tem cerimônias, e os abrange, a todos, na definição: “... os maiores alcoviteiros, bandalhos e ladrões...”.85  Não era muito diferente o conceito do próprio Pedro I, que os possuía. Historiando a época da dissolução da Constituinte, o bragantista Varnhagem registra: “... Lamenta-se o imperador do espírito geral de intriga e de inveja, que dominava entre quase todos os que o serviam...”


85 Cartas Andradinas.





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"Morreu no Rio aos 64 anos, em 1932, deixando-nos como legado frases, que infelizmente, ainda ecoam como válidas: 'Somos uma nação ineducada, conduzida por um Estado pervertido. Ineducada, a nação se anula; representada por um Estado pervertido, a nação se degrada'. As lições que nos são ministradas em O Brasil nação ainda se fazem eternas. Torcemos para que um dia caduquem. E que o novo Brasil sonhado por Bomfim se torne realidade."

Cecília Costa Junqueira



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O Brasil nação: vol. I / Manoel Bomfim. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Fundação Darcy Ribeiro, 2013. 332 p.; 21 cm. – (Coleção biblioteca básica brasileira; 35).


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