terça-feira, 27 de dezembro de 2016

Charles Dickens: Um Conto de Natal 05

Um Conto de Natal


Charles Dickens

05



SEGUNDA ESTROFE 
O primeiro dos três espíritos 


O espírito e Scrooge dirigiram-se para uma porta ao fundo do vestíbulo. A porta abriu-se diante deles, mostrando uma vasta sala, triste e deserta, a que uma longa fila de bancos e carteiras dava ainda um aspecto mais austero. 

Sentado num destes bancos, um estudante solitário lia junto de um lume quase apagado. Reconhecendo o pobre menino abandonado, que era ele próprio, Scrooge sentou-se e pôs-se a chorar. Os mais insignificantes ecos desta mansão, a algazarra dos ratos atrás do madeiramento, os gemidos do vento através da galhada seca de um choupo melancólico, o ranger preguiçoso de uma porta emperrada, tudo isso eram outros tantos ecos que penetravam no coração de Scrooge e lhe enchiam a alma de uma doce emoção. 

Tocando-lhe o braço, o espírito mostrou-lhe o menino engolfado em sua leitura. Subitamente, um homem, vestido com um costume exótico, apareceu atrás da janela, com um machado preso à cintura e puxando pela brida um burro carregado de madeiras. 

– Meu Deus! Mas é Ali-Babá! – exclamou Scrooge no auge da alegria. – É o meu querido e honrado Ali-Babá! Sim, sim! Bem me lembro. Foi mesmo num dia de Natal que ele apareceu pela primeira vez, vestido exatamente desta forma, a este pequeno estudante que ficara ali sozinho. Pobre criança... E Valentino, e Orson, seu irmão mais velho... Também estou a vê-los. E como se chama, mesmo, este rapagote, que foi raptado durante o sono e deixado semi-vestido às portas de Damasco? Não o vedes? E o palafreneiro do sultão, que os deuses derrubaram por ter desposado a princesa? Lá está ele de cabeça para baixo! Pois foi muito bem feito! Quem lhe mandou querer casar com a princesa?... 

Que espanto para seus colegas de negócios se pudessem ouvir Scrooge a discorrer com tanto entusiasmo sobre tais coisas, com voz estranha, onde se misturavam o riso e as lágrimas, e se pudessem ver seu rosto incendiado e seu ar excitado! 

– Olha! – exclamou ele –, lá está o papagaio, com o corpo verde, a cauda amarela e a espécie de alface que tem na cabeça, como uma poupa. “Pobre Robinson Crusoé!”, repetia ele quando seu amo voltou, depois de inutilmente ter dado volta à ilha. “Pobre Robinson Crusoé! Onde estiveste, Robinson Crusoé?” O homem não acreditava no que via, e, entretanto, era mesmo o papagaio que falava. Agora é o Sexta-Feira, que corre desabaladamente para abrigar-se na pequena enseada. .Coragem, Sexta-Feira! Vamos! Aí, valente!. 

– Eu bem quisera... – murmurou ele pondo as mãos nos bolsos e olhando em redor de si, depois de enxugar os olhos com a manga do casaco. – Eu bem quisera, mas já não é mais tempo... 

– Que há? – perguntou o fantasma. 

– Nada, – disse Scrooge –, nada. Eu estava pensando num garoto, que ontem à noite cantava uma ária de Natal diante de minha porta. Eu desejaria ter-lhe dado alguma coisa. 

O espírito sorriu pensativamente e ergueu a mão, dizendo: 

– Passemos a outro Natal. 

A estas palavras, a sombra do Scrooge de outros tempos cresceu e a sala tomou um aspecto ainda mais sombrio e descuidado. As finas tábuas que forravam as paredes da sala racharam-se, os vidros quebraram-se, e os fragmentos, que caíram do teto, deixaram ver as vigas nuas. Como se operou esta transformação, nem Scrooge nem ninguém poderia explicar. O certo é que tudo o que via era a representação da realidade, que tudo se tinha passado exatamente assim, e que só ele lá ficara ainda uma vez, quando todos os seus colegas haviam partido festivamente para as férias em seus lares. 

Desta feita, não estava engolfado na leitura, mas passeava pela sala de um lado para outro, com ar sombrio. Scrooge olhou para o espírito, e depois, abanando tristemente a cabeça, lançou um ansioso olhar para a porta. Esta abriu-se, e uma garotinha, muito mais nova que o estudante, apareceu na sala, enlaçou-lhe o pescoço com os braços e estreitou-o repetidas vezes, chamando-lhe “meu querido”, ‘querido irmãozinho’. 

Venho chamar-te para levar-te para casa, meu adorado! – disse ela, batendo palmas e rindo-se alegremente. Sim, levar-te para casa, para casa, para casa! 

Para casa? Será possível, querida Fani? 

Mas é claro! – disse a criança, radiosa. – Para casa, sim senhor! Papai ficou tão bom, que agora nossa casa é um verdadeiro paraíso. Uma destas noites, quando eu ia deitar-me, ele falou-me com tamanha ternura, que me atrevi a perguntar-lhe se irias regressar breve. Ele respondeu que sim, e mandou-me que viesse buscar-te com o nosso carro. Agora estás quase um homem, prosseguiu a criança, e nunca mais virás para cá. Mas, para começar, vamos festejar juntos o Natal, o mais alegremente que pudermos. 

E tu? Estás já uma verdadeira mulherzinha, Fani! – exclamou o rapazinho. 

A garota bateu palmas novamente, rindo-se, e ia acariciar-lhe a cabeça, mas, pequenina como era, teve de pôr-se na ponta dos pés, o que a fez rir. Depois, com pueril impaciência, puxou-o para a porta, e ele não se fez de rogado para acompanhá-la. 

No vestíbulo, ouviu-se uma voz terrível: 

Tragam a mala do menino Scrooge! 

E na mesma hora, no vestíbulo, apareceu o próprio dono da pensão, que envolveu Scrooge com um olhar de feroz condescendência, e lhe causou uma confusão extrema ao lhe dar um aperto de mão. Depois, levando-os para um horrível cubículo gelado, que servia de salão, onde as cartas geográficas suspensas às paredes, e os mapas múndi das vitrinas estavam recobertos de uma barrela viscosa, apresentou-lhes um frasco de um vidro singularmente pesado, ao mesmo tempo que mandava perguntar ao cocheiro, por uma criada extremamente magra, se era servido de tomar um cálice de “qualquer coisa”, ao que este respondeu que agradecia a gentileza, e que só aceitaria se não fosse a zurrapa ordinária da última vez. 

Colocada a mala do aluno Scrooge, os dois irmãos despediram-se do dono da pensão e tomaram assento alegremente no carro, que logo se pôs a rodar pela pequena avenida do jardim, fazendo voar, à sua passagem, estilhaços de neve, que cobriam os arbustos de azevinho como branca espuma. 

– Era uma delicada criatura, sensível à mais leve carícia, e dona de um grande coração, – disse o espírito. 

– Sim, um grande coração, – exclamou Scrooge. 

– Tendes razão, Espírito. Não serei eu quem vos dirá o contrário. 

– Morreu casadinha de novo, – disse o espírito, e deixou filhos, parece-me. 

– Um filho, – retificou Scrooge. 

– Ou isso, – disse o espírito. Teu sobrinho. 

Scrooge aquiesceu, com ar desajeitado. 


**** 



Mal deixaram o pensionato, logo se encontraram nas ruas movimentadas de uma grande cidade, por onde os transeuntes iam e vinham sobre os passeios, enquanto os carros disputavam a passagem e o tumulto e a agitação dos grandes centros faziam lembrar um campo de batalha. 


O aspecto das lojas indicava claramente que se estava de novo na época do Natal. Era noite, e as ruas estavam iluminadas. 

O espírito deteve-se diante da porta de uma loja e perguntou a Scrooge se a reconhecia. 

– Oh, se a reconheço! Não foi aqui que comecei o meu aprendizado? 

Ambos entraram. 

Um ancião, com uma peruca na cabeça, estava sentado em uma carteira tão alta, que mais umas polegadas e sua cabeça teria tocado o teto. 

À vista dele, Scrooge exclamou emocionado: 

– Meu Deus! Mas é o velho Fezziwig! Louvado seja Deus! É o velho Fezziwig ressuscitado! 

O velho Fezziwig pousou a caneta e olhou para o relógio, que marcava sete horas. Depois, esfregando as mãos, reajustou o largo colete, deu uma gargalhada que o sacudiu da cabeça aos pés, e berrou com voz sonora, plena, rica, grossa e jovial: 

– Olá, Ebenezer! Dick! 

O velho Scrooge, tornado agora um jovem, correu apressadamente, como o seu colega de aprendizado: 

– Ora esta! É Dick Williams! – disse Scrooge ao espírito. – É fato! É realmente ele, que foi sempre muito agarrado comigo, o bom rapaz! Pobre Dick! Meu Deus! Meu Deus! 

– Olá, rapazes! – exclamou Fezziwig –, o dia terminou. – Amanhã é Natal, Dick! É Natal, Ebenezer! – Fechem a loja, – gritou Fezziwig batendo palmas, e que os ferrolhos sejam ajustados imediatamente, antes que eu tenha tempo de dizer: Jack Robinson

Ninguém poderia imaginar a rapidez com que estes bravos rapazes cumpriram a ordem. Ambos se precipitaram para a rua com os ferrolhos... um... dois... três... ajustaram; quatro... cinco... seis... puseram as barras e as cunhas; sete... oito... nove... tornaram a entrar, resfolegando como cavalos de corrida, antes que tivessem tempo de contar até doze. 

– Vamos, adiante! – berrou o velho Fezziwig, pulando de sua escrivaninha com surpreendente agilidade. – Vamos, criançada! Desocupem tudo, arranjem o maior espaço possível! 

Arranjar espaço? Mas eles seriam capazes de desmontar tudo sob as ordens animadoras do velho Fezziwig! 

Em menos de um minuto, tudo estava pronto. Tudo que podia ser transportado foi tirado e levado para outras partes como se para desaparecer de uma vez da face da terra. O soalho foi varrido e encerado, os candelabros espanados, a lareira reabastecida. 

Dentro em breve, o armazém estava transformado em um belo salão de baile, tão confortável e bem iluminado quanto se poderia desejar numa noite de inverno. 

Neste instante, chegou o rabequista com um caderno de música. Empoleirando-se no alto de um estrado, e sob pretexto de afinar o instrumento, acabou por tirar dele apenas insuportáveis chiados. 

A seguir, entrou a senhora Fezziwig, cuja pessoa era inteirinha um vasto sorriso. Entraram, depois, as três meninas Fezziwig, radiantes e adoráveis, seguidas de seis rapagotes, cujos corações elas pisavam. Vieram, a seguir, todas as moças e moços que trabalhavam na loja, e mais a criada com seu primo e mais o padeiro. Vieram, depois, a cozinheira com o amigo íntimo de seu irmão, o leiteiro, o pequeno aprendiz da loja fronteira, que parecia passar fome em casa de seu patrão, e que procurava esconder-se por detrás da criadinha. 

Uns após outros, todos entraram, uns timidamente, outros afoitamente, estes com graça, aqueles desajeitados; uns empurrando os companheiros, outros puxando-os. Finalmente, de um modo ou de outro, todos entraram. 

Começada a festa, todos se puseram a dançar – vinte pares a um tempo – executando passos vários, avançando, recuando, rodopiando, voltando e recomeçando. O par da dianteira não sabia mais onde se meter, uma vez terminado o seu número, e o par seguinte saía sem esperar sua vez, de tal maneira que em breve só havia pares de dianteira e nenhum na traseira para substituí-los. 

Obtido este resultado, o velho Fezziwig exclamou: “Está ótimo!” e bateu palmas para fazer parar a dança. O músico mergulhou a cara congestionada num copázio de cerveja, enchido especialmente para ele. Logo, porém, que voltou, tratou de recomeçar a música com mais vivo entusiasmo, antes mesmo que os presentes estivessem prontos para dançar. Queria, talvez, que todos imaginassem que o primeiro músico, indo tomar cerveja, tinha ficado por lá e em lugar dele surgiu outro rabequista, novo em folha, disposto a ultrapassar o rival ou então morrer. 

Seguiram-se outras danças, depois alegres diversões, e depois ainda outras danças. Houve, em seguida, uma mesa de bolos, vinho quente, enormes pedaços de carne assada e cerveja à vontade. Mas o mais belo momento da noitada foi depois da ceia, quando o músico – aliás um guapo rapagão, podem acreditar –, como bom conhecedor de seu papel, atacou a ária de Sir Roger de Coverly. 

Foi então que o velho Fezziwig e esposa começaram pessoalmente a conduzir o baile: e posso afirmar que não era fácil dirigir vinte e três ou vinte e quatro pares de bailadores, e que bailadores! Era gente que sabia dançar de fato e não simplesmente arrastar os pés. Mas, mesmo que fossem duas, três ou mesmo quatro vezes mais, o velho Fezziwig seria capaz de aguentar a parada, do mesmo modo que a senhora Fezziwig, sua digna companheira em toda a extensão da palavra. 

Os pés de Fezziwig pareciam irradiar um brilho todo particular, fulgurando como meteoros em todos os pontos da dança ao mesmo tempo. Seria impossível prever onde iriam eles aparecer no momento seguinte. 

Quando o senhor e a senhora Fezziwig executaram todos os passos da contradança, Fezziwig terminou com um magnífico entrechat, depois do qual se pôs novamente em pé, firme e ereto como um I. 

Esta noitada familiar terminou exatamente quando o relógio bateu as onze horas. Então, o senhor e a senhora Fezziwig colocaram-se de cada lado da porta, apertando a mão a cada um dos convidados e desejando a cada um deles um feliz Natal. Quando todos se retiraram, com exceção dos dois aprendizes, os Fezziwig trocaram com estes os mesmos votos; em seguida, as alegres vozes calaram-se e os dois rapazes voltaram para seus leitos, arrumados num cômodo atrás da loja. 

Enquanto o baile durou, Scrooge comportou-se como um homem que tivesse sido transportado para a sua mocidade. Tomava parte de alma e coração na cena, com o Scrooge de outros tempos. Ele tudo reconhecia, lembrava-se de tudo, divertia-se com tudo e manifestava a mais estranha emoção. Foi somente quando os rostos alegres de Dick e do outro Scrooge se desviaram deles, que ele se lembrou da presença do espírito. Notou, então, que este o observava com atenção e que a claridade do ápice de sua cabeça brilhava com viva intensidade. 

– Não vejo nada de extraordinário para inspirar a estes idiotas tanto reconhecimento, – disse o espírito. 

– De fato, – disse Scrooge. 

O espírito fez-lhe sinal com o dedo para escutar os dois aprendizes que cantavam os louvores de Feziwig. Depois, continuou 

– Como? Aí está uma coisa engraçada! Este homem não despendeu senão algumas libras do seu dinheiro terrestre. Isso é razão para tanto elogio? 

– Não se trata disso, – protestou Scrooge já esquentado por esta observação e falando, sem que o percebesse, como teria falado o Scrooge de outrora. Não se trata disso, Espírito. Fezziwig tem o poder de nos fazer felizes ou infelizes; pode fazer que o nosso trabalho seja um prazer ou uma insuportável tarefa. Que este poder se manifeste por palavras, por gestos ou olhares, pouco importa; a felicidade que espalha em torno dele é tão grande como se custasse uma fortuna. 

Scrooge sentiu pesar sobre ele o olhar do espírito, e calou-se. 

– Que é que há? – perguntou este. 

– Nada de mais, – respondeu Scrooge. 

– Alguma coisa te preocupa, – insistiu o espírito. 

– Nada, mesmo, – disse Scrooge. – Eu gostaria de dizer duas ou três palavras a meu empregado, que aí está. 

Expresso este desejo, o antigo Scrooge apagou as velas, e Scrooge e o fantasma acharam-se novamente na rua, lado a lado. 

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