terça-feira, 20 de dezembro de 2016

Gente Pobre - 03. Pensar, meu amor, que um dia - Dostoiévski

Fiódor Dostoiévski


03.




8 de abril



Minha querida Bárbara Alexeievna:


Pensar, meu amor, que um dia como este me reservava tão triste sorte! Divertiu-se à custa deste pobre velho, não há dúvida... Mas a culpa é só minha e de mais ninguém. Com esta idade e o cabelo que tenho na cabeça, quem me manda meter em aventuras amorosas? O homem é por natureza incompreensível, um ser raro, devo confessar. Santo Deus! Deita às vezes tais coisas pela boca fora... E não pensa nas consequências. Suceda o que suceder, isso não lhe importa; diz tais loucuras, que Deus nos livre delas! Não, minha querida, eu não me zango; apenas me sinto vexado ao pensar que tive a leviandade de lhe escrever numa fraseologia tão estúpida e floreada. 

Hoje fui para a repartição bem-disposto e a pular de contente, porque o meu coração estava sob a sua influência e a minha alma encontrava-se em festa, por assim dizer. Sim, tudo me parecia correr bem. Votei-me ao trabalho, e que sucedeu? Circunvagando o olhar pelos objetos que de há muito me eram familiares, notei que eles se apresentavam cinzentos e escuros como sempre, tinham a mesma aparência dos outros dias. Eram ainda as mesmas manchas de tinte, as mesmas mesas e cadeiras que sempre conheci. Sim, era tudo exatamente o mesmo, nada havia mudado. Por que motivo, pois, eu montara o Pégaso? A que era devida a minha boa disposição? Filiava-se no facto de certo sol me ter sorrido e o céu haver-se tornado mais claro? Mas apenas nisso? De que valem os aromas primaveris, quando se olha para um pátio em que se pode encontrar toda a imundície do inundo? Todas estas coisas são devidas à minha estúpida imaginação, porque o homem pode perder-se nos seus próprios sentimentos de modo a esquecer o que o cerca, e entregar-se a uma paixão louca que lhe ataca o coração. 

O regresso a casa, fi-lo com grande dificuldade, quase arrastando-me, pois doía-me muito a cabeça, o que de resto me costuma suceder. Certamente apanhei frio nas costas. Sou muito imbecil! Alegrei-me tanto com a chegada da primavera, que saí de casa com um agasalho demasiado ligeiro. 

Quanto aos meus sentimentos, porém, está enganada, querida. As minhas palavras foram inspiradas unicamente por um afeto paternal, o mais puro dos afetos, Bárbara Alexeievna, mas interpretou-as mal. De facto, ocupo ao seu lado o lugar de um pai, na triste orfandade em que se encontra. Digo-lhe isto do fundo da minha alma, com toda a sinceridade. Mas, seja como for, prendem-nos laços de parentesco, embora muito afastado. Sou seu parente. Posso mesmo acrescentar que agora sou o seu melhor parente, o seu único protetor, pois onde seria natural que encontrasse auxílio e proteção, apenas se lhe deparam a perfídia e o insulto. 

Em referência à poesia, devo dizer-lhe, meu amor, que com a idade que tenho, já me não fica bem dedicar-me a ela. A poesia é rematado disparate. Atualmente, nas escolas, quando apanham os alunos a fazer versos, castigam-nos. 

Porque me fala, na sua carta, de comodidade, descanso e não sei que mais, Bárbara Alexeievna? Não sou exigente e nunca vivi tão bem como presentemente; porque havia, pois, de me lamentar agora? Tenho que comer, que vestir e que calçar... distraio-me... que mais hei de querer? Não devemos meter-nos em altas cavalarias. Não corre nas minhas veias sangue azul! Meu pai não era nenhum aristocrata; mantinha toda a família com um ordenado igual ao meu. Nem eu sou nenhum sibarita. Não obstante, para lhe falar com toda a franqueza, devo dizer-lhe que estava muito melhor na outra casa. Gozava ali de mais liberdade e independência, minha querida. Mas o aposento que agora ocupo também é bom e, sob certos aspetos, oferece algumas vantagens: leva-se aqui uma vida mais alegre, se se quiser, e há mais variedade e distração, não o nego. Apesar de tudo, sinto pena de haver deixado o antigo. Nós, os velhos, ou melhor, os que estamos a entrar na velhice, olhamos para as coisas velhas a que esta» mos habituados, como se elas fizessem parte da nossa família. O meu antigo quarto era um cantinho tão sossegado e bonito! E era só meu! As paredes eram como as de qualquer outro; porém, não é delas que quero falar, mas sim das recordações que em mim despertam e me entristecem... Essas recordações são me dolorosas, é certo; contudo, proporcionam-me também alegria, porque me fazem pensar com prazer no passado. Até o que aquela casa tinha de desagradável e às vezes me irritava, deixou de ser mau na minha recordação, aparecendo-me purificado de todo o mal e, em espírito, vejo tudo como uma coisa familiar e boa. Vivíamos felizes e sossegados, querida Bárbara, eu e a minha patroa, e agora não posso lembrar-me daquela boa velhota sem experimentar um sentimento de tristeza. Era uma excelente mulher e não me levava caro. Passava o tempo a fazer colchas de retalhos velhos, que cortava em tiras, e usava no seu lavor umas agulhas muito compridas. Não se ocupava em mais coisa alguma. Como à noite trabalhávamos à mesma mesa, uma luz chegava para ambos. Vivia com ela uma sobrinhita de nome Macha, então uma criança de dez anos. Agora deve ter uns treze; é quase uma mulherzinha. Era uma pequenita tão desajeitada e indolente que nos fazia rir. Constituíamos um trio absolutamente feliz. Nas longas noites de inverno, sentávamo-nos em volta da mesa redonda, tomávamos chá e depois continuávamos o nosso trabalho. Para que a menina se não aborrecesse, e também para a instruir, às vezes a tia punha-se a contar-nos histórias. E que bem ela as contava! Podiam interessar a uma criança e mesmo a um adulto inteligente. Quantas vezes eu próprio me deliciava a escutar com a maior atenção aquelas histórias, enquanto tirava umas fumaças do meu cachimbo! Chegava, por vezes, a esquecer-me por completo do meu trabalho. A pequena, a nossa menina, com ar pensativo, uns olhos muito grandes, e a bochechinha cor-de-rosa apoiada na mãozita, abria a linda boquinha e punha-se a ouvir a velha atentamente; e se o conto era de meter medo, era vê-la toda medrosa, a chegar-se devagarinho para a velha, até se lhe agarrar à saia. Olhar para ela constituía para nós um prazer, de modo que, com umas coisas e outras, estávamos sentados à mesa até altas horas da noite; não dávamos fé do tempo passar e esquecíamo-nos até de que lá fora nevava. E foi assim, levando uma vida feliz, que decorreram quase vinte anos da minha existência, querida Bárbara! 

Mas já estou a alongar-me demasiado. É possível que estas histórias lhe não agradem, e a mim, recordar estas coisas faz-me mal, especialmente a esta hora do crepúsculo. 

A Teresa está para ali a fazer barulho com os cacos... Sinto dores na cabeça e nas costas, e ocorrem-me uns pensamentos tão estranhos, que parecem doer-me também. Sim, estou triste até mais não, querida! 

Que me diz na sua carta? Que a vá visitar? Mas como posso eu ir a sua casa? Que diriam as outras pessoas, minha querida? Para isso, teria de atravessar o pátio; os vizinhos notá-lo-iam e certamente punham-se de atalaia. Levantava-se então semelhante borborinho e as mexeriqueiras inventavam tais histórias, deturpando por completo as coisas! Não, meu anjo; acho preferível vê-la amanhã de tarde, na igreja; assim será melhor e menos comprometedor para nós dois. 

Não se zangue, querida, por lhe escrever uma carta tão disparatada. Ao relê-la, vejo bem as incoerências do seu conteúdo. Sou um homem sem cultura, preza-la Bárbara; em novo pouco aprendi e nesta idade seria rematada loucura querer recomeçar os estudos. Devo, na verdade, confessar-lhe que não sou lá muito hábil na escrita, e não preciso de indicações alheias nem de observações sarcásticas para saber que não digo senão disparates quando pretendo dizer qualquer coisa engraçada. 

Vi-a hoje à janela, precisamente no momento em que baixava a cortina. Adeus, querida Bárbara, e que Deus a guarde! 

Seu desinteressado amigo



Makar Dievuchkin



P. S. — Não me julgue capaz de lhe escrever em tom satírico, meu amor. Já sou muito velho para me permitir brincadeiras com o simples propósito de passar o tempo. Se assim procedesse, daria azo a que os outros se rissem de mim, podendo aplicar-se-me o provérbio russo que diz: «Quem para outro abre a cova... nela cai!»





__________________________




Esse é o tipo de livro que modifica algo na gente. “Pobre gente” foi o primeiro romance de Dostoievski, começou a escrever em 1844 e terminou no ano seguinte. O personagem Makar Dévushkin, um auxiliar administrativo que leva trinta anos copiando documentos, mora numa pensão humilde, seu pequeno quarto fica ao lado da cozinha, é o que pode pagar com o seu salário também minúsculo. O frio e a frieza de uma sociedade que ignora os pobres. Crítica social contundente, comendo pelas beiradas narrativas. Segundo alguns historiadores, uma das obras que mandou o autor para a cadeia siberiana. Eram os 25 anos de um gênio então já se apurando na escrita, despertando assim, para sentir seu tempo e as humilhações da época, desesperos; um olhar sobre todas as coisas da sofrida gente. Triste narrativa pungente da condição humana em torno desses dois personagens, como vítimas de fatalidades da vida numa sociedade onde poucos conseguem realmente sair do ramerão, e onde muitos se movem numa crueldade austera entre si, forçada pelas inóspitas condições em que vivem. Makar e Varenka vivem um amor idílico ensombrado pelo que os circunda (Makar é muito mais velho que Varenka), agravando as suas próprias condições a um nível desesperador e quase doentio, mas sempre com alguma perspectiva de esperança fundadas em ilusões muitas das vezes patéticas, algo falsamente ingênuas, ilustrativas, no entanto, ao alcance do coração humano que tudo pode sonhar, sem se importar com as verdadeiras condições em que se encontra, principalmente nessas condições por assim dizer desprezíveis.


__________________________

Fiódor Dostoiévski
GENTE POBRE
Título original: Bednye Lyudi (1846)
Tradução anônima 2014 © Centaur Editions
centaur.editions@gmail.com


__________________________

Leia também:

Gente Pobre - 02. Ainda acabo por me zangar consigo, sabe? - Dostoiévski

Gente Pobre - 04. Não tem vergonha - Dostoiévski


Nenhum comentário:

Postar um comentário