Um Conto de Natal
_____________________
Leia também:
Charles Dickens: Um Conto de Natal 01
Charles Dickens: Um Conto de Natal 02
Charles Dickens: Um Conto de Natal 04
Charles Dickens
03
PRIMEIRA ESTROFE
O espectro de Marley
Contemplar em silêncio estes olhos fixos vítreos era para Scrooge uma provação acima de suas forças. O que lhe parecia igualmente horrível era a atmosfera infernal que envolvia o fantasma. Scrooge não podia senti-la por si próprio, mas reconhecia claramente a sua presença porque, muito embora o espectro se conservasse imóvel, sua cabeleira, as borlas de suas botas e as abas do seu casaco não paravam de agitar-se, como se fossem movidas pelo cá- lido sopro de uma fornalha.
– Está vendo este palito? – disse Scrooge, voltando vivamente à carga, pela mesma razão exposta e para desviar de sobre si, ainda que fosse por apenas um segundo, o olhar vítreo da aparição.
– Vejo, – respondeu o fantasma.
– Mas você não está olhando para ele, – observou Scrooge.
– Mas estou vendo, – disse o fantasma.
– Pois bem! – continuou Scrooge –, basta que eu o engula para ser perseguido, até o fim dos meus dias, por uma legião de espíritos imaginários, todos nascidos do meu estômago. Tolices! Posso afirmar-lhe. Tudo tolices!
A estas palavras, o fantasma soltou um tremendo urro e agitou com tal violência as suas cadeias, fazendo um barulho tão sinistro e pavoroso, que Scrooge foi obrigado a agarrar-se à poltrona para não desmaiar. Mas seu espanto recrudesceu ainda mais quando o fantasma, retirando o lenço que lhe envolvia a cabeça, como se o sufocasse o calor, deixou cair sobre o peito o maxilar inferior.
Scrooge lançou-se de joelhos, escondendo o rosto entre as mãos.
– Misericórdia! – exclamou ele. Ó pavorosa aparição, por que me vem atormentar?
– Miserável criatura, tão apegada aos bens da terra! Acreditas em mim, agora?
– Sim, – balbuciou Scrooge –, creio! Sou obrigado a crer! Mas por que vagam os espíritos sobre a terra, e por que me vêm eles perturbar?
– Deus exige de cada homem, – respondeu o espectro –, que o espírito que o anima se consubstancie com as almas de seus semelhantes no decurso de sua longa viagem pela vida. Assim, pois, aquele que viver só para si durante a existência, é condenado a viver errante pelo espaço após a morte – ó miserável destino! – para assistir, já agora impotente, a todas as coisas em que, durante a vida, poderia ter tomado parte para sua felicidade e a de seu próximo.
Novamente o espectro deu um grito, ao mesmo tempo que agitava as cadeias e retorcia as mãos transparentes.
– Você está acorrentado! – disse Scrooge com voz trêmula. – Diga-me por quê.
– Estou acorrentado com as cadeias que forjei para mim mesmo durante a vida. Forjei-a elo por elo, palmo a palmo. Trago-a agora por minha livre vontade, e é de livre vontade que a tenho usado. Estás estranhando o modelo?
Scrooge tremia cada vez mais.
– Desejas saber, prosseguiu o fantasma, o peso e o comprimento da cadeia que trazes em torno da tua cintura? Há sete anos, precisamente numa noite de Natal, ela era tão comprida e tão pesada quanto esta. Desde então tens trabalhado muito nela. Neste momento, é uma corrente de considerável dimensão.
Scrooge deitou um olhar febril para o soalho, como se já se visse enlaçado por cinqüenta ou sessenta metros de corrente de ferro. Mas nada viu.
– Jacob, – disse ele com voz suplicante, meu velho Jacob Marley! Diga-me ainda alguma coisa! Dê-me um pouco de conforto, um pouco de esperança!
– Já não posso confortar ninguém, – respondeu o fantasma. O consolo e a esperança vêm de outra fonte, Ebenezer Scrooge. São trazidos por outros mensageiros e para outros homens, não para ti. Além do mais, não posso conversar tanto quanto eu desejara. O que me é permitido dizer-te ainda é pouca coisa, pois não tenho permissão para descansar, nem para deter-me, nem para demorar-me onde quer que seja. Noutros tempos, meu espírito não saía jamais do nosso escritório, estás me compreendendo? Nunca, durante minha vida, meu espírito se resolveu a afastar-se dos estreitos limites do nosso covil de negociatas. Eis por que tenho diante de mim tantas e tão penosas viagens.
Scrooge tinha o hábito de meter as mãos nos bolsos, quando refletia; e foi assim que, enquanto meditava sobre as últimas palavras do fantasma, dirigiu-lhe a palavra, mas sem erguer os olhos e sempre ajoelhado.
– É preciso que você tenha sido bem lento, Jacob! – observou ele com voz onde transparecia o homem de negócios ao mesmo tempo humilde e obsequioso.
– Bem lento! – repetiu o espectro.
– Você morreu há sete anos, – disse Scrooge pensativo, e todo esse tempo perambulando?
– Todo o tempo, – disse o espectro; sem repouso e sem trégua, com a eterna tortura do remorso.
– Viaja com rapidez? – perguntou Scrooge.
– Nas asas do vento.
– Você deve ter percorrido muitos países durante estes sete anos, – disse Scrooge.
A estas palavras, o espectro deu ainda um grito e sacudiu as suas correntes com um tal fragor, que cortou ruidosamente o profundo e gélido silêncio da noite.
– Oh, um desgraçado prisioneiro, acorrentado e carregado de ferros! – exclamou o fantasma –, por ter olvidado que todo homem deve associar-se à grande obra da humanidade, prescrita pelo Onipotente, e perpetuar o progresso. Por não saber que uma alma verdadeiramente cristã, que trabalha generosamente dentro de sua esfera, por muito pequena que seja, sempre achará que sua vida mortal é demasiado breve para realizar todo o bem que ela vê por fazer-se em redor de si. Por não saber que uma eternidade de lágrimas não pode reparar uma vida mal vivida!... Pois bem, era assim que eu vivia, era assim que eu vivia!
– Entretanto, Jacob, – balbuciou Scrooge, que começava a tomar para si mesmo as palavras do espectro –, você foi sempre um excelente homem de negócios.
– Os negócios! – gemeu o fantasma retorcendo as mãos. – A humanidade, o bem comum, a indulgência, a caridade, a misericórdia, a benevolência, esses deviam ter sido os meus negócios!
O espectro ergueu suas cadeias com a extremidade do braço, como se visse nelas a causa do seu inútil desespero, deixando-a em seguida cair pesadamente ao chão.
– Quando chega esta época do ano, – prosseguiu ele –, meus sofrimentos redobram. Por que fui eu tão insensato para ter passado no meio da multidão dos meus semelhantes, sempre com os olhos voltados para o chão, sem jamais erguê-los para aquela bendita estrela, que um dia conduziu os magos para uma pobre choupana? Não haveria outras pobres choupanas, aonde a luz me pudesse ter guiado a mim também?
Scrooge tremia como vara verde, ouvindo o espectro falar daquele modo.
– Ouve-me, – gritou o fantasma. Meus minutos são contados.
– Estou ouvindo! – disse Scrooge –, mas tenha pena de mim. Eu lhe peço Jacob, não faça muitos rodeios!
– Seria difícil dizer por que é que estou aparecendo diante de ti sob forma visível. Aliás, por mais de uma vez já me sentei a teu lado, invisivelmente.
Esta revelação foi assustadora. Scrooge, estremecendo, enxugou a testa banhada de suor.
– Mas não é esse o meu maior suplício, – continuou o espectro. – Vim esta noite para avisar-te de que ainda te resta uma esperança, uma oportunidade de escapar a um destino semelhante ao meu. É uma esperança, uma oportunidade que eu venho trazer-te, Ebenezer.
– Oh, mil vezes obrigado! – exclamou Scrooge. – Você foi sempre um bom amigo para mim.
– Vais ser visitado por mais três espíritos, – continuou o fantasma.
O semblante de Scrooge tornou-se tão lívido como o do próprio espectro.
– É essa, então, a esperança ou a oportunidade de que você me falou, Jacob? – perguntou ele com a voz débil.
– Exatamente.
– Eu... Eu preferia que isso não acontecesse.
– Se não receberes a visita deles, podes perder a esperança de escapar a um destino igual ao meu. Aguarda a visita do primeiro espírito amanhã ao bater da uma hora.
– Não seria melhor que viessem todos juntos, para acabar mais depressa com isso? – sugeriu Scrooge.
– O segundo aparecerá na noite seguinte, à mesma hora, e o terceiro na outra noite, ao bater a última badalada da meia-noite. Não esperes tornar a ver-me, e não te esqueças, no teu próprio interesse, de conservar a lembrança de tudo que se passou entre nós.
Dito isto, o espectro apanhou seu lenço sobre a mesa e o amarrou, como antes, em torno da cabeça. Scrooge só o notou, quando ouviu o seco estalido que produziram os dois maxilares ao se encontrarem. Arriscando um olho, viu seu visitante sobrenatural em pé diante dele, ereto, as cadeias enroladas no braço. A aparição afastou-se, de costas, e, à medida que se distanciava, a janela abria-se progressivamente até que, quando o espectro a alcançou, ela estava completamente aberta.
O espectro fez sinal a Scrooge que se aproximasse.
Quando estiveram apenas a dois passos um do outro, o espectro ergueu o braço. Scrooge deteve-se.
Deteve-se, menos para obedecer ao fantasma do que por um sentimento de surpresa e de medo, pois que, simultaneamente ao gesto do fantasma, começava a ouvir estranhos e confusos ruídos por toda a casa, vozes plangentes que se misturavam umas às outras, onde se confundiam remorsos e desesperos.
Após ter escutado um instante, o espectro passou pela janela, juntou-se ao fúnebre cortejo e desapareceu na gé- lida escuridão. Scrooge, tomado de incoercível curiosidade, chegou à janela e, então, presenciou um estranho espetáculo.
****
O ar estava povoado de almas perdidas, que perambulavam e rodopiavam interminavelmente, soltando gemidos, e cada uma delas trazia uma corrente, como o espectro de Marley. Alguns destes fantasmas, talvez os membros de algum mau governo, estavam amarrados juntos. Nenhum estava livre.
Scrooge notou entre eles alguns de seus antigos conhecidos, entre os quais um velho fantasma de colete branco, com quem tivera freqüentes relações.
Em seu tornozelo, estava amarrado um cofre-forte descomunal, e Scrooge notou que a visão de uma mendiga acocorada ao pé de uma sacada, com seu bebê ao colo, lhe arrancava tristes lamentações de pena por não poder socorrê-la.
Percebia-se, claramente, que o maior tormento destes infelizes era o ardente desejo de praticar o bem sobre a terra, justamente agora que essa possibilidade lhes havia escapado para sempre.
Scrooge não poderia dizer se todos aqueles fantasmas se dissiparam no intenso nevoeiro, ou se foi o nevoeiro que os envolveu. O certo é que todos desapareceram ao mesmo tempo dentro da noite, e o espaço ficou silencioso e ermo, como no momento em que ele voltara para casa.
Fechada novamente a janela, Scrooge examinou cuidadosamente a porta por onde o fantasma havia entrado. Estava fechada com dupla volta, e os ferrolhos estavam intactos.
Scrooge ia dizer: Tolices, mas não foi além da primeira sílaba. Apoderara-se dele uma incoercível necessidade de repouso, fosse, talvez, devido às fadigas e às emoções do dia, fosse pela sua fuga ao mundo dos espíritos e pela sinistra conversa que tivera com o espectro, ou talvez mesmo pelo adiantado da hora.
_____________________
Leia também:
Charles Dickens: Um Conto de Natal 01
Charles Dickens: Um Conto de Natal 02
Charles Dickens: Um Conto de Natal 04
Nenhum comentário:
Postar um comentário