terça-feira, 6 de dezembro de 2016

Gente Pobre - 02. Ainda acabo por me zangar consigo, sabe? - Dostoiévski

Fiódor Dostoiévski


02.




8 de abril



Prezado Makar Alexeievitch:


Ainda acabo por me zangar consigo, sabe? É verdade, Makar Alexeievitch, juro-lhe que me custa imenso aceitar os seus presentes; sei pelo preço que lhe devem ficar e que para mos oferecer se vê obrigado a impor-se grandes sacrifícios e a privar-se mesmo do necessário. Quantas vezes lhe disse já que não preciso de nada, absolutamente nada, e que não me encontro em condições de corresponder às atenções com que me cumula? Por exemplo, para que me mandou os gerânios? Lá que me tivesse enviado um vasinho de balsamina, ainda vá; mas os gerânios! Basta então que eu deixe, distraidamente, escapar uma palavra — como sucedeu com os gerânios —, para que o senhor vá imediatamente comprar um vaso? Deve ter sido muito cara esta planta! E que flores maravilhosas! São tão vermelhas e dá tantas! Mas diga-me: onde foi descobrir tão belo exemplar? Pu-lo à janela, no sítio mais visível. No banquito que há do lado de dentro hei de colocar também outras flores, mas isso será quando for rica. Fédora não se cansa de gabar o nosso quartinho. Está tão limpo, claro e acolhedor, que é um verdadeiro paraíso. Mas porque me mandou os bombons? 

Ao ler a sua carta, pareceu-me compreender que o senhor não estava lá muito fixe da cabeça; falava muito em paraíso, em primavera, em doces perfumes, em pipilar de passarinhos. Pensei comigo própria, confesso, que o senhor me ia dedicar uma poesia. É que só faltavam versos à sua carta, Makar Alexeievitch. Os sentimentos nela expressos são muito ternos e as ideias cor-de-rosa... Todavia, quanto à cortina, nem nela pensei. Naturalmente, essa pontinha de que fala ficou presa a algum ramo quando andei a mudar os vasos. Não deve ter sido outra coisa. 

Ah, Makar Alexeievitch! Bem sei que fala e enumera os seus ganhos e despesas só para me tranquilizar e fazer crer que esses gastos extraordinários os faz por prazer. Mas não me conseguirá enganar. Tenho a certeza de que se priva do necessário por minha causa... Por exemplo, porque alugou esse quarto, onde o incomodam e distraem e não dispôs de largueza nem comodidade, quando gosta da solidão e do silêncio? Com o seu ordenado, creio que podia arranjar um aposento noutras condições. Até a Fédora me contou que o senhor dantes vivia muito melhor do que agora. Quer, porventura, convencer-me de que tem passado toda a vida cheio de privações, sem alegria, sem uma palavra carinhosa, sempre em quartos de aluguer, entre estranhos? Ah! Se soubesse a pena que tenho de si, meu pobre amigo! Ao menos não despreze a sua saúde, Makar Alexeievitch. Diz-me, por exemplo, que os seus olhos enfraquecem cada vez mais devido a escrever à luz artificial. E porque escreve? Os seus superiores não precisam disso para saberem como é zeloso no serviço. 

Mais uma vez lhe peço que não gaste tanto dinheiro comigo. Bem sei que gosta de mim, mas também não ignoro que não é rico... Hoje de manhã acordei tão bem-disposta como você. Que satisfação a minha! Fédora já trabalhava havia muito e eram horas de me agarrar à minha tarefa. Esta simples ideia dava-me uma alegria indescritível. Saí apenas para comprar seda e entreguei-me logo ao trabalho. Passei o dia, desde manhã à noite, tão contente! Mas agora... surgem de novo as ideias escuras e tristes a atormentar-me o coração. 

Ah, que será de mim? Que destino será o meu? O que deveras confrange é não se saber nada, absolutamente nada, do que a sorte nos reserva; não nos pertence o futuro e nem podemos vislumbrar o que há de ser de nós! Quando penso nisto, sinto tal dor e tanta pena que o coração parece querer saltar-me do peito. hei de queixar-me toda a vida, de lágrimas nos olhos, dos que fizeram a minha desgraça. Que abomináveis criaturas! 

São horas de me agarrar outra vez ao trabalho, que já está escuro. Bem queria escrever-lhe mais coisas, mas por hoje fico por aqui; tenho de adiantar o serviço, a fim de o ter pronto no prazo que me foi marcado. Na verdade, é com muito prazer que lhe escrevo isso, representa mesmo, para mim, um passatempo agradável. Mas porque não vem pessoalmente visitar-me? Porque não, Makar Alexeievitch? Mora tão perto de mim e deve ter tanto tempo livre! há de vir cá, suplico-lhe. Ainda há momentos vi a Teresa. Pareceu-me de aspeto doentio e tive tanta pena dela que lhe dei vinte kopeks. 

Estou mesmo a cair de sono. Em resposta a esta, descreva-me minuciosamente o gênero de vida que leva, as características das pessoas que habitam nessa casa, e diga-me se se dá bem com elas. Não se esqueça de me dar todos estes pormenores. Esta noite deixarei, de propósito, a ponta da cortina levantada. Vá-se deitar mais cedo, porque, ontem, vi a luz acesa no seu quarto por volta da meia-noite. E com isto, adeus! 

Estou outra vez triste e aborrecida. Sempre foi um dia! Mais uma vez, adeus! Sua



Bárbara Dobroselof





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Esse é o tipo de livro que modifica algo na gente. “Pobre gente” foi o primeiro romance de Dostoievski, começou a escrever em 1844 e terminou no ano seguinte. O personagem Makar Dévushkin, um auxiliar administrativo que leva trinta anos copiando documentos, mora numa pensão humilde, seu pequeno quarto fica ao lado da cozinha, é o que pode pagar com o seu salário também minúsculo. O frio e a frieza de uma sociedade que ignora os pobres. Crítica social contundente, comendo pelas beiradas narrativas. Segundo alguns historiadores, uma das obras que mandou o autor para a cadeia siberiana. Eram os 25 anos de um gênio então já se apurando na escrita, despertando assim, para sentir seu tempo e as humilhações da época, desesperos; um olhar sobre todas as coisas da sofrida gente. Triste narrativa pungente da condição humana em torno desses dois personagens, como vítimas de fatalidades da vida numa sociedade onde poucos conseguem realmente sair do ramerão, e onde muitos se movem numa crueldade austera entre si, forçada pelas inóspitas condições em que vivem. Makar e Varenka vivem um amor idílico ensombrado pelo que os circunda (Makar é muito mais velho que Varenka), agravando as suas próprias condições a um nível desesperador e quase doentio, mas sempre com alguma perspectiva de esperança fundadas em ilusões muitas das vezes patéticas, algo falsamente ingênuas, ilustrativas, no entanto, ao alcance do coração humano que tudo pode sonhar, sem se importar com as verdadeiras condições em que se encontra, principalmente nessas condições por assim dizer desprezíveis.


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Fiódor Dostoiévski
GENTE POBRE
Título original: Bednye Lyudi (1846)
Tradução anônima 2014 © Centaur Editions
centaur.editions@gmail.com


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