Eduardo Galeano
27. O Livro dos Abraços
A máquina de retroceder
Nos princípios do século vinte, o Uruguai era um país do século vinte e um. No final do século vinte, o Uruguai é um país do século dezenove. No reino da chatice, os bons modos proíbem tudo aquilo que não é imposto pela rotina. Os homens sonham com aposentar-se e as mulheres com casar-se. Os jovens, culpados do delito de ser jovens, sofrem a pena da solidão ou do desterro, a menos que possam provar que são velhos.
A pálida
No café da manhã, minhas certezas servem-se de dúvidas. E têm dias em que me sinto estrangeiro em Montevidéu e em qualquer outra parte. Nesses dias, dias sem sol, noites sem lua, nenhum lugar é o meu lugar e não consigo me reconhecer em nada, em ninguém. As palavras não se parecem àquilo que dão nome, e não se parecem nem mesmo ao seu próprio som. Então não estou onde estou. Deixo meu corpo e saio, para longe, para lugar nenhum, e não quero estar com ninguém, nem mesmo comigo, e não tenho, nem quero ter, nome algum: então perco a vontade de me chamar ou de ser chamado.
O baixo astral
Enquanto dura o baixo astral, perco tudo. As coisas caem dos meus bolsos e da minha memória: perco chaves, canetas, dinheiro, documentos, nomes, caras, palavras. Eu não sei se será mal olhado. Pura casualidade, mas às vezes a depressão demora em ir embora e eu ando de perda em perda, perco o que encontro, não encontro o que busco, e sinto medo de que numa dessas distrações acabe deixando a vida cair.
Onetti
Eu não tinha nem vinte anos e ainda brincava de cabra-cega nas noites do mundo. Queria pintar, e não podia. Queria escrever, e não sabia. Às vezes escrevia um conto, e às vezes levava esse conto para Juan Carlos Onetti.
Ele estava sempre de cama, de preguiça, de tristeza, rodeado por pirâmides de tocos de cigarros, atrás de uma muralha de garrafas vazias. Eu me sentia na obrigação de emitir frases inteligentíssimas. Mestre Onetti olhava o teto e não abria a boca a não ser para bocejar, fumar e beber, lenta sonolência, tragadas lentas, goles demorados, e talvez murmurasse algum fruto de suas prolongadas meditações sobre a situação nacional e internacional:
— A merda toda aconteceu — dizia — no dia em que os milicos e as mulheres aprenderam a ler.
Sentado na beira da cama, eu esperava que ele me dissesse que aqueles meus continhos eram sem nenhuma sombra de dúvida geniais, mas ele se calava e na melhor das hipóteses resmungava ou me estimulava assim:
— Olha aqui, garoto. Se Beethoven tivesse nascido em Tacuarembó, seria no máximo chefe da banda do coreto.
Arguedas
Eu estava regressando a Montevidéu, depois de uma viagem. Não lembro de onde vinha, mas sim lembro que no avião tinha lido El zorro de arriba y el zorro de abajo, o romance final de José Maria Arguedas. Arguedas tinha começado a escrever esse adeus à vida no dia em que decidiu se matar, e o romance era seu longo e desesperado testamento. Eu li o livro e acreditei no livro, a partir da
primeira página: embora não conhecesse aquele homem, acreditei nele como se fosse meu sempre amigo.
Em El zorro, Arguedas tinha dedicado a Onetti o mais alto elogio que um escritor pode oferecer a outro escritor: tinha escrito que estava em Santiago do Chile, mas que na realidade queria estar em Montevidéu, para encontrar Onetti e apertar a mão com a qual escreve.
Na casa de Onetti, comentei com ele. Onetti não saia. O romance, recém publicado, ainda não tinha chegado a Montevidéu. Comentei com ele, e Onetti ficou calado. Fazia pouco tempo, muito pouco, que Arguedas tinha arrebentado a cabeça com um tiro.
Ficamos os dois muito tempo, minutos ou anos, em silêncio. Depois eu disse algo, perguntei algo, e Onetti não respondeu. Então ergui os olhos e vi aquele talho de umidade que atravessava a sua cara.
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Titulo original: El libro de los abrazos Primeira edição em junho 1991. Tradução: Eric Nepomuceno Revisão: Ana Teresa Cirne Lima, Ester Mambrini e Valmir R. Cassol Produção: Jó Saldanha e Lúcia Bohrer ISBN: 85.254.0306-0 G151L Galeano, Eduardo O livro dos abraços / Eduardo Galeano; tradução de Eric Nepomuceno. - 9. ed. - Porto Alegre: L&PM, 2002. 270p.:il.;21cm 1. Ficção uruguaia. I.Título. CDD U863 CDU 860(895)-3 Catalogação elaborada por Izabel A. Merlo, CRB 10/329. Texto e projeto gráfico de Eduardo Galeano © Eduardo Galeano, 1989
27. O Livro dos Abraços
A máquina de retroceder
Nos princípios do século vinte, o Uruguai era um país do século vinte e um. No final do século vinte, o Uruguai é um país do século dezenove. No reino da chatice, os bons modos proíbem tudo aquilo que não é imposto pela rotina. Os homens sonham com aposentar-se e as mulheres com casar-se. Os jovens, culpados do delito de ser jovens, sofrem a pena da solidão ou do desterro, a menos que possam provar que são velhos.
A pálida
No café da manhã, minhas certezas servem-se de dúvidas. E têm dias em que me sinto estrangeiro em Montevidéu e em qualquer outra parte. Nesses dias, dias sem sol, noites sem lua, nenhum lugar é o meu lugar e não consigo me reconhecer em nada, em ninguém. As palavras não se parecem àquilo que dão nome, e não se parecem nem mesmo ao seu próprio som. Então não estou onde estou. Deixo meu corpo e saio, para longe, para lugar nenhum, e não quero estar com ninguém, nem mesmo comigo, e não tenho, nem quero ter, nome algum: então perco a vontade de me chamar ou de ser chamado.
O baixo astral
Enquanto dura o baixo astral, perco tudo. As coisas caem dos meus bolsos e da minha memória: perco chaves, canetas, dinheiro, documentos, nomes, caras, palavras. Eu não sei se será mal olhado. Pura casualidade, mas às vezes a depressão demora em ir embora e eu ando de perda em perda, perco o que encontro, não encontro o que busco, e sinto medo de que numa dessas distrações acabe deixando a vida cair.
Onetti
Eu não tinha nem vinte anos e ainda brincava de cabra-cega nas noites do mundo. Queria pintar, e não podia. Queria escrever, e não sabia. Às vezes escrevia um conto, e às vezes levava esse conto para Juan Carlos Onetti.
Ele estava sempre de cama, de preguiça, de tristeza, rodeado por pirâmides de tocos de cigarros, atrás de uma muralha de garrafas vazias. Eu me sentia na obrigação de emitir frases inteligentíssimas. Mestre Onetti olhava o teto e não abria a boca a não ser para bocejar, fumar e beber, lenta sonolência, tragadas lentas, goles demorados, e talvez murmurasse algum fruto de suas prolongadas meditações sobre a situação nacional e internacional:
— A merda toda aconteceu — dizia — no dia em que os milicos e as mulheres aprenderam a ler.
Sentado na beira da cama, eu esperava que ele me dissesse que aqueles meus continhos eram sem nenhuma sombra de dúvida geniais, mas ele se calava e na melhor das hipóteses resmungava ou me estimulava assim:
— Olha aqui, garoto. Se Beethoven tivesse nascido em Tacuarembó, seria no máximo chefe da banda do coreto.
Arguedas
Eu estava regressando a Montevidéu, depois de uma viagem. Não lembro de onde vinha, mas sim lembro que no avião tinha lido El zorro de arriba y el zorro de abajo, o romance final de José Maria Arguedas. Arguedas tinha começado a escrever esse adeus à vida no dia em que decidiu se matar, e o romance era seu longo e desesperado testamento. Eu li o livro e acreditei no livro, a partir da
primeira página: embora não conhecesse aquele homem, acreditei nele como se fosse meu sempre amigo.
Em El zorro, Arguedas tinha dedicado a Onetti o mais alto elogio que um escritor pode oferecer a outro escritor: tinha escrito que estava em Santiago do Chile, mas que na realidade queria estar em Montevidéu, para encontrar Onetti e apertar a mão com a qual escreve.
Na casa de Onetti, comentei com ele. Onetti não saia. O romance, recém publicado, ainda não tinha chegado a Montevidéu. Comentei com ele, e Onetti ficou calado. Fazia pouco tempo, muito pouco, que Arguedas tinha arrebentado a cabeça com um tiro.
Ficamos os dois muito tempo, minutos ou anos, em silêncio. Depois eu disse algo, perguntei algo, e Onetti não respondeu. Então ergui os olhos e vi aquele talho de umidade que atravessava a sua cara.
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Titulo original: El libro de los abrazos Primeira edição em junho 1991. Tradução: Eric Nepomuceno Revisão: Ana Teresa Cirne Lima, Ester Mambrini e Valmir R. Cassol Produção: Jó Saldanha e Lúcia Bohrer ISBN: 85.254.0306-0 G151L Galeano, Eduardo O livro dos abraços / Eduardo Galeano; tradução de Eric Nepomuceno. - 9. ed. - Porto Alegre: L&PM, 2002. 270p.:il.;21cm 1. Ficção uruguaia. I.Título. CDD U863 CDU 860(895)-3 Catalogação elaborada por Izabel A. Merlo, CRB 10/329. Texto e projeto gráfico de Eduardo Galeano © Eduardo Galeano, 1989
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