quarta-feira, 15 de março de 2017

Charles Dickens: Um Conto de Natal 12

Um Conto de Natal


Charles Dickens

12



QUARTA ESTROFE  
O último dos três espíritos 


Para começar, Scrooge achou esquisito que o espírito desse tanta importância a umas conversações aparentemente banais. Naturalmente, deviam elas ter uma significação oculta, mas qual seria? Elas não podiam referir-se à morte de Jacob, seu antigo sócio, porque a morte dele pertencia ao passado, e o domínio deste fantasma era o futuro. 

Entre as pessoas que ele conhecia, Scrooge não via nenhuma a quem pudesse aplicar o assunto daquelas palavras, mas, persuadido de que de um modo ou de outro elas encerravam uma lição destinada ao seu aperfeiçoamento, resolveu guardar com cuidado tudo que visse e ouvisse, e observar particularmente sua própria imagem quando ela lhe aparecesse, pois a atitude de seu próprio futuro lhe daria provavelmente o fio condutor que lhe faltava e lhe tornaria fácil a solução de todos estes enigmas. 

Assim, pois, procurou-se a si mesmo entre os corretores da Bolsa, e, ainda que o relógio estivesse marcando a hora que ele habitualmente lá se encontrava, não viu ninguém que se parecesse com ele no meio da multidão que se precipitava sob o peristilo. 

Isso, entretanto, não lhe causou maior surpresa.

Não havia ele decidido mudar de vida? Sem dúvida alguma, sua ausência da Bolsa devia ser uma consequência das suas novas resoluções. 


Mudo e sombrio, o fantasma conservava-se calado ao pé dele, sempre com a mão estendida. De acordo com a atitude do espectro, Scrooge imaginou que os olhos invisíveis do fantasma estavam fixados nele, e esta ideia deu-lhe calafrios. 

Deixaram a Bolsa, com a sua agitação, e dirigiram-se para um bairro de Londres, onde Scrooge nunca tinha estado, mas cuja reputação ele bem conhecia. 

As ruas eram estreitas e sujas, as casas residenciais e comerciais de aspecto sórdido; viam-se pessoas embriagadas, em andrajos, mal calçadas e repulsivas. As vielas e os becos, como outros tantos canos de esgoto, desembocavam em ruas tortuosas, com seus odores pestilentos e mal cheirosos, sua sujeira e sua população formigante. 

Todo este bairro respirava a imundície, miséria e crime. 

Ao fundo deste covil asqueroso, numa cabana colocada sob ampla coberta, fazia-se o comércio de ferragens, de garrafas, de retalhos, de ossos e de gorduras. 

No chão, montões de chaves enferrujadas, de pregos, de correntes, de gonzos, de ferramentas, de velhas balanças e de ferragens de toda espécie. 

Escondiam-se nestes montes de trastes velhos, nestes sepulcros de ossos e gorduras rançosas, muitos segredos que poucas pessoas gostariam de aprofundar.

**** 


Sentado no meio dos objetos, que constituíam o seu comércio, junto de um fogão feito de velhos tijolos, um septuagenário abrigava-se do frio que vinha de fora, por meio de uma cortina feita de disparatados retalhos presa a um fio, e fumava o seu cachimbo, gozando o conforto do seu tranquilo recanto. 


No momento preciso em que Scrooge e o espírito se achavam na presença deste homem, uma mulher carregada com um pesado volume entrou furtivamente na loja. Apenas ela entrou, outra mulher apareceu, igualmente carregada, seguida de perto por um homem vestido de preto, o qual, ao vê-las, ficou tão surpreendido quanto elas próprias ao reconhecê-lo. 

Após alguns segundos de surpresa, partilhada pelo homem do cachimbo, todos três desataram a rir. 

– Que a dona da casa passe primeiro, para começar, – declarou a mulher que fora a primeira a entrar; a lavadeira passará depois, e em seguida o “gato-pingado” 

... Olá! diga-me então, meu velho Joe, aqui não está um belo acaso? Até parece que todos três combinamos uma senha para nos encontrarmos aqui! 

– Não podia haver melhor lugar para um encontro, – disse o velho Joe, tirando da boca o cachimbo. Há muito que esta casa é sua, e os outros dois também não são desconhecidos. Esperem apenas que eu vá fechar a porta. Olha como range! Não creio que haja aqui coisa mais enferrujada que os seus gonzos, como também não creio que haja ossos mais velhos que os meus. Ah! ah! Estamos mesmo bem talhados para este serviço... mas bem talhados mesmo. Vamos ao salão, vamos. 

O salão era o espaço oculto pela cortina de farrapos. 

O velho espertou o fogo com uma acha de escada, depois, arranjou a lamparina fumarenta com o cabo do cachimbo – porque a noite já tinha caído – e tornou a pô-lo na boca. 

Durante este tempo, a mulher que já havia falado depositou seu volume no chão, e ato contínuo sentou-se calmamente num tamborete; então, com os cotovelos nos joelhos, encarou os dois outros com ar desconfiado. 

– E então, como é, madame Dilber? – disse ela. Será que não temos o direito de cuidar dos nossos interesses? Está muito bem o que “ele” sempre tem feito. 

– Lá isso é verdade, – disse a lavadeira, e melhor que qualquer outra pessoa. 

– Então, bela, porque fazer semelhante papel, como se estivesse com medo? Quem o saberá? Parece-me que não nos vamos vender mutuamente? 

– Naturalmente que não! – disseram ao mesmo tempo o homem e a senhora Dilber. – Isso está fora de dúvida. 

– Sendo assim, tudo vai bem! – exclamou a mulher. A quem poderá prejudicar a perda destas poucas bugigangas? Naturalmente, não será ao defunto, penso? 

– Evidentemente que não, – respondeu a senhora Dilber, rindo. 

– Se aquele velho avarento queria guardá-las depois de morto, o que devia ter feito é viver como toda gente, – prosseguiu a mulher. – Só assim teria tido alguém para assisti-lo em seus últimos instantes, em vez de dar o último ai completamente só. 

– É a pura verdade, – declarou a senhora Dilber. Foi o seu castigo. 

– O castigo teria sido maior, se eu pudesse ter deitado a unha a outras coisas. Abra este pacote, velho Joe, e diga-me o que isso pode valer. Seja franco. Pouco me estou incomodando de passar adiante dos outros. Suponho que já sabíamos, antes de nos encontrarmos aqui, que iríamos tratar dos nossos negócios. Acho que não há nenhum mal nisso. Vamos, abra o pacote, Joe!

Seus amigos, porém, por delicadeza, opuseram-se a isso, e o homem de negro foi o primeiro a expor a sua muamba. 


Esta não era grande coisa: um sinete ou dois, um porta-níqueis, um par de abotoaduras de punho e um alfinete de gravata, de pouco valor. Era tudo. 

O velho Joe examinou-os detidamente, avaliou-os escrevendo a giz na parede a quantia que estava disposto a dar para cada um dos artigos e fez a soma, quando viu que não havia mais nada. 

– Aí está sua conta, – disse Joe –, e não darei a mais nem um centavo, nem que me joguem água fervente. Quem é o seguinte? 

Apresentou-se a senhora Dilber. 

Ela trazia lençóis e guardanapos, algumas roupas, duas colheres de prata, de modelo antigo, um pegador de açúcar e vários pares de calçados. A conta foi feita na parede, como anteriormente. 

– Para as senhoras costumo pagar sempre mais. É esse um dos meus vícios, que acabará por levar-me à falência, – disse o velho Joe. Aqui está sua conta, mas não insista, pois não levará nem um centavo a mais, do contrário, ainda posso arrepender-me e deduzir do total pelo menos meia coroa. 

– Agora é o meu embrulho, Joe! – disse a primeira que havia chegado. 

Joe pôs-se de joelhos para abrir o embrulho mais comodamente. Depois de ter desamarrado inumeráveis nós, arrancou um grosso e pesado rolo de tecido escuro. 

– Que coisa vem a ser isto aqui? Mosquiteiros? 

– Naturalmente, – respondeu a mulher com uma gargalhada e inclinando-se para a frente com os braços cruzados. – São mosquiteiros! 

– Não vai dizer-me que os tirou com argolas e tudo quando ainda estava estendido na cama? 

– Posso afirmar que sim, naturalmente. E por que não? – replicou a mulher. 

– Você nasceu para ser rica! – exclamou Joe –, há de fazer fortuna, não há dúvida! 

– Desde que, estendendo a mão, eu possa apanhar alguma coisa, é natural que eu não ia guardá-la em meu bolso por consideração a semelhante indivíduo, – respondeu a mulher friamente. Atenção! Faça o favor de não derramar óleo nos cobertores. 

– Cobertores dele? – perguntou Joe. 

– De quem mais podiam ser? – respondeu a mulher. Tenho a impressão de que a esta hora já não tem medo de passar frio. 

– Espero que não tenha morrido de moléstia contagiosa? – perguntou Joe interrompendo o seu inventário e erguendo os olhos para ela. 

– Sei lá! Eu não tenho medo, – replicou a mulher. A sua companhia não era assim tão agradável para que eu andasse vendo o que ele tinha. Oh, pode morrer de olhar para essa camisa, que não achará um rasgão, um rustido. Era a que ele tinha de mais resistente e mais bonita. Sem mim, ela estaria perdida. 

– Perdida? Como assim? 

– Sim, teria sido enterrado com ela, – disse a mulher. Não sei quem teve a estúpida ideia de a vestir nele, mas eu tornei a tirá-la. Se a chita não serve para mortalha, então não serve para nada. Olhe que não podia ser mais feio do que era com esta camisa. 

Scrooge ouvia este diálogo horrorizado. 

Aqueles indivíduos agrupados em redor de sua presa, à miserável claridade da lamparina do velho, inspiravam-lhe um ódio e uma repugnância indescritíveis, apenas menos violentos, talvez, do que se tivessem sido imundos demônios em disputa do seu próprio cadáver. 

– Ah! ah! ah! – gargalhou ruidosamente a mulher, quando o velho Joe, apresentando um saco de flanela cheio de dinheiro, pôs no chão a quantia que tocava a cada um. 

– Ah! ah! ah! Ele, em vida, – continuou a mulher –, mandou toda a gente passear, com o único fim de nos proporcionar alguns pequeninos lucros depois de sua morte. Ah! ah! ah! 

– Espírito, – disse Scrooge tremendo da cabeça aos pés, agora compreendo, agora compreendo. A sorte deste infeliz poderia ter sido a minha, e é exatamente a isso que conduz uma vida como a que levo. Deus do céu! Que é aquilo? 

Scrooge recuou, apavorado. 

A cena era completamente outra. Estava agora à cabeceira de uma cama, uma cama sem cortinas, sobre a qual jazia, envolto num pano rasgado, uma forma cuja muda imobilidade era um lúgubre libelo contra a natureza. 

O quarto estava escuro, bastante escuro para que se lhe pudessem distinguir os detalhes, embora Scrooge olhasse para todos os lados, ansioso por descobrir aquilo que tal escuridão envolvia. 

Uma pálida claridade vinda do exterior incidiu sobre o leito onde, pilhado, roubado, sem ninguém que o velasse, sem um amigo para chorá-lo, no meio do mais absoluto abandono, jazia o corpo deste homem. 

Scrooge olhou para o fantasma, e viu que a mão apontava para a cabeça do morto. O lençol que a envolvia estava colocado de tal maneira que bastava levantar-lhe uma das pontas para descobrir o rosto do defunto. 

Scrooge pensou em fazê-lo, mas, ao tentá-lo, verificou que para realizar este facílimo gesto se achava tão impotente quanto para despedir o espectro que continuava de pé a seu lado.

Ó Morte, ó pavorosa Morte! Morte gélida e rígida! Ergue aqui teu altar e dispõe ao teu redor o teu cortejo de horrores, pois é mesmo aqui o teu domínio! Mas, se vais ferir uma cabeça querida, honrada e respeitada, não podes fazer que nenhum dos seus cabelos se apreste para os teus negros desígnios, nem podes imprimir os teus horrores sobre um só dos seus traços. A mão pode ser pesada e recair inerte quando abandonada, e o coração pode ser silencioso, mas esta mão foi generosa, aberta e leal, e neste coração corajoso e terno corria um sangue nobre e viril. Fere, Morte! Fere! Tu verás surgir dos teus golpes somente nobres ações, que recairão sobre o mundo como sementes de imortalidade! 


Nenhuma voz pronunciou estas palavras aos seus ouvidos, e entretanto Scrooge as ouviu claramente quando se havia inclinado sobre o leito. “Se este homem ressuscitasse agora”, pensava ele, “quais seriam as suas primeiras preocupações? Inquietações de avarento? Amor do dinheiro? Desejo de acumular? Realmente, elas o levaram a um belo fim...”. 

E o morto jazia abandonado na enormidade daquela casa vazia, sem um homem, uma mulher ou uma criança que recordasse com mágoa alguma ação generosa sua. A porta miava um gato e debaixo do fogão ouvia-se um rumor de ratos. O que “eles’ procuravam naquela casa de morte, Scrooge não ousou pensar. 

– Espírito, – disse ele –, este lugar é pavoroso. Os ensinamentos que acabo de aprender aqui, jamais os esquecerei, eu vos juro. Por piedade, afastemo-nos daqui! 

Mas o espírito continuava a apontar a cabeça do morto com o seu inexorável indicador. 

– Eu vos compreendo, – disse Scrooge –, e desejaria obedecer-vos, se pudesse, mas não tenho forças para tanto, Espírito! Espírito não tenho forças... 

O espírito pareceu encará-lo novamente. 

Movido pela angústia, Scrooge continuou: 

– Se houver em toda a cidade de Londres uma só pessoa a quem a morte deste homem tenha causado qualquer emoção, mostrai, Espírito, eu vos suplico. 

O fantasma desdobrou diante dos olhos de Scrooge o seu sombrio manto como se fosse uma asa, e em seguida, afastando-o, fez aparecer diante dele uma sala fartamente iluminada pela luz de um claro dia, e, nela, uma mãe de família com os seus filhos. 

A mulher parecia esperar alguém, tomada da mais viva ansiedade, estremecendo ao menor ruído, indo de um lado para outro, olhando pela janela, consultando o relógio, tentando em vão recomeçar seu trabalho e enervando-se com o barulho que faziam as crianças ao brincar. 

Finalmente soou o toque da campainha tão ansiosamente esperado. Ela precipitou-se para a porta, a fim de receber o marido, rapaz ainda moço, mas cuja fisionomia apresentava os sinais da inquietude e das preocupações. 

O jovem tinha, neste momento, uma singular expressão, onde se lia uma espécie de alegria entremeada de embaraço, uma alegria da qual se envergonhava e que procurava reprimir. 

Quando se sentou à mesa, para o almoço requentado, que a esposa lhe guardara, e esta lhe perguntou, timidamente, quais eram as notícias – o que só fez depois de longo silêncio –, o rapaz pareceu embaraçado para responder. 

– São boas ou más? – perguntou ela para ajudá-lo. 

– Más, – respondeu ele. 

– Então, estamos arruinados? 

– Não, Carolina, ainda há esperança. 

– Será que “ele” vai apiedar-se? – disse ela hesitante. Se esse milagre se realizar, já não haverá razão para a gente desesperar na vida. 

– Ele não pode mais apiedar-se, porque já morreu. 

Era uma senhora meiga e paciente, a julgar pela expressão de seu rosto, entretanto, seu primeiro impulso foi juntar as mãos e dar graças a Deus. 

Imediatamente, porém, arrependeu-se e manifestou-se penalizada por ter assim procedido, mas era a primeira manifestação que lhe havia brotado da alma espontaneamente. 

– O que me havia dito aquela mulher meio embriagada, de quem te falei ontem à noite, quando pedi licença para vê-lo, a fim de obter dele a espera de pelo menos mais uma semana, não era pretexto para não me deixar entrar, mas a pura realidade: não somente ele estava enfermo, mas mesmo agonizante. 

– A quem teria passado a nossa dívida? 

– Não sei. Mas até que a situação esteja regularizada, terei conseguido o dinheiro necessário. E mesmo que não nos fosse possível pagar de uma só vez, seria muita falta de sorte se encontrássemos em seu herdeiro um credor tão impiedoso como ele. Esta noite, Carolina, podemos dormir tranquilamente. 

Sim, isso era natural, pois os seus corações estavam mais aliviados. As crianças, agrupadas em silêncio em torno de seus pais, para ouvirem uma conversa de que nada entendiam, tinham as fisionomias mais risonhas, e a felicidade entrava novamente nesta casa com a morte deste homem. 

A única emoção causada pelo seu desaparecimento, e que o espectro pôde mostrar, foi uma emoção de alegria. 

– Espírito, – disse Scrooge, – fazei-me ver uma cena em que se misture um pouco de doçura ao drama da morte, do contrário, este quarto escuro que acabamos de ver ficará eternamente gravado na minha lembrança.




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