sábado, 4 de março de 2017

Gente Pobre - 06. Encontrei hoje a minha prima Sacha - Dostoiévski

Fiódor Dostoiévski


06.




25de abril



Meu prezado Makar Alexeievitch:


Encontrei hoje a minha prima Sacha. Que desagradável encontro! A pobre também caminha para a ruína e perversão. Horrível! Soube ainda, por acaso, e indiretamente, que Ana Fedorovna anda por toda a parte a perguntar por mim e que procura a todo o transe saber notícias minhas. Estou a ver que não deixa mais de me perseguir. Segundo me disseram, ela declarou que me perdoaria tudo, que já esqueceu o passado e que deseja visitar-me! Diz a toda a gente que o senhor não tem qualquer parentesco comigo, nem mesmo muito afastado; a mais próxima e única parenta é ela, e ao senhor não assiste o direito de se imiscuir na nossa vida. Afirma ainda que é vergonhoso eu ser mantida por si e viver à sua custa. Diz que já me não lembro do que ela fez por mim e por minha mãe, evitando com a sua hospitalidade que tivéssemos morrido de fome; que nos alimentou e tratou de nós durante dois anos e meio, tendo-nos até pago uma dívida antiga e, entretanto, só lhe demos dissabores. Ora veja! Nem ao menos deixa a minha querida mãe em paz no outro mundo! Se a santa velha soubesse o mal que me têm feito! Mas a Deus nada escapa!...

Ana Fedorovna disse ainda que só por estupidez não soube assegurar a felicidade que ela me pôs ao alcance, e que não tem culpa de eu não saber ou não querer... pescar um bom marido. Mas quem foi culpado, meu Deus! Afirmou que o senhor Buikov teve muita razão e que, na verdade, um homem não pode casar-se com qualquer mulher... Enfim, deitou pela boca fora uma série de disparates.

Custa imenso ter de ouvir todas essas aldrabices, Makar Alexeievitch.

Não sei o que tenho hoje: tremo, choro, soluço. Estou há duas horas a escrever esta carta. Convencera-me já de que essa mulher havia reconhecido, ao menos, as suas culpas, a injustiça que me fez, mas verifico que me enganei!

Peço-lhe, meu bom amigo, que não lhe dê cuidado a minha saúde. Por amor de Deus, não se aflija, meu bom e único protetor. A Fédora exagera sempre. Eu não estou doente; apenas me constipei um pouco ontem, quando fui ao cemitério de Volkovo ouvir missa por alma da minha querida mamã. Porque
não foi comigo?... Tinha-lhe pedido tanto... Oh! pobre mãe, se pudesses, do lugar onde te encontras, ver o que fizeram de mim...

B. D.




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Esse é o tipo de livro que modifica algo na gente. “Pobre gente” foi o primeiro romance de Dostoievski, começou a escrever em 1844 e terminou no ano seguinte. O personagem Makar Dévushkin, um auxiliar administrativo que leva trinta anos copiando documentos, mora numa pensão humilde, seu pequeno quarto fica ao lado da cozinha, é o que pode pagar com o seu salário também minúsculo. O frio e a frieza de uma sociedade que ignora os pobres. Crítica social contundente, comendo pelas beiradas narrativas. Segundo alguns historiadores, uma das obras que mandou o autor para a cadeia siberiana. Eram os 25 anos de um gênio então já se apurando na escrita, despertando assim, para sentir seu tempo e as humilhações da época, desesperos; um olhar sobre todas as coisas da sofrida gente. Triste narrativa pungente da condição humana em torno desses dois personagens, como vítimas de fatalidades da vida numa sociedade onde poucos conseguem realmente sair do ramerão, e onde muitos se movem numa crueldade austera entre si, forçada pelas inóspitas condições em que vivem. Makar e Varenka vivem um amor idílico ensombrado pelo que os circunda (Makar é muito mais velho que Varenka), agravando as suas próprias condições a um nível desesperador e quase doentio, mas sempre com alguma perspectiva de esperança fundadas em ilusões muitas das vezes patéticas, algo falsamente ingênuas, ilustrativas, no entanto, ao alcance do coração humano que tudo pode sonhar, sem se importar com as verdadeiras condições em que se encontra, principalmente nessas condições por assim dizer desprezíveis.


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Fiódor Dostoiévski
GENTE POBRE
Título original: Bednye Lyudi (1846)
Tradução anônima 2014 © Centaur Editions
centaur.editions@gmail.com


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