Simone de Beauvoir
4. Fatos e Mitos
: esse estado de coisas deve perpetuar-se?
MAS UMA QUESTÃO imediatamente se apresenta: como tudo isso começou? Compreende-se que a dualidade dos sexos, como toda dualidade, tenha sido traduzida por um conflito. Compreende-se que, se um dos dois conseguisse impor sua superioridade, esta deveria estabelecer-se como absoluta. Resta explicar por que o homem venceu desde o início. Parece que as mulheres deveriam ter sido vitoriosas. Ou a luta poderia nunca ter tido solução. Por que este mundo sempre pertenceu aos homens e só hoje as coisas começam a mudar? Será um bem essa mudança? Trará ou não uma partilha igual do mundo entre homens e mulheres?
Essas questões estão longe de ser novas; já lhes foram dadas numerosas respostas, mas o simples fato de ser a mulher o Outro contesta todas as justificações que os homens lhe puderam dar: eram-lhes evidentemente ditadas pelo interesse. "Tudo o que os homens escreveram sobre as mulheres deve ser suspeito, porque eles são, a um tempo, juiz e parte", escreveu, no século XVII, Poulain de Ia Barre, feminista pouco conhecido. Em toda parte e em qualquer época, os homens exibiram a satisfação que tiveram de se sentirem os reis da criação. "Bendito seja Deus nosso Senhor e o Senhor de todos os mundos por não me ter feito mulher", dizem os judeus nas suas preces matinais, enquanto suas esposas murmuram com resignação: "Bendito seja o Senhor que me criou segundo a sua vontade". Entre as mercês que Platão agradecia aos deuses, a maior se lhe afigurava o fato de ter sido criado livre e não escravo e, a seguir, o de ser homem e não mulher. Mas os homens não poderiam gozar plenamente esse privilégio, se não o houvessem considerado alicerçado no absoluto e na eternidade: de sua supremacia procuraram fazer um direito. "Os que fizeram e compilaram as leis, por serem homens, favoreceram seu próprio sexo, e os jurisconsultos transformaram as leis em princípios", diz ainda Poulain de Ia Barre. Legisladores, sacerdotes, filósofos, escritores e sábios empenharam-se em demonstrar que a condição subordinada da mulher era desejada no céu e proveitosa à terra. As religiões forjadas pelos homens refletem essa vontade de domínio: buscaram argumentos nas lendas de Eva, de Pandora, puseram a filosofia e a teologia a serviço de seus desígnios, como vimos pelas frases citadas de Aristóteles e Sto. Tomás. Desde a Antiguidade, moralistas e satíricos deleitaram-se com pintar o quadro das fraquezas femininas. Conhecem-se os violentos requisitórios que contra elas se escreveram através de toda a literatura francesa: Montherlant reata, com menor brilho, a tradição de Jean de Meung. Essa hostilidade parece, algumas vezes, justificável, mas na maior parte dos casos é gratuita. Na realidade, recobre uma vontade de auto justificação mais ou menos habilmente mascarada. "E mais fácil acusar um sexo do que desculpar o outro", diz Montaigne. Em certos casos, o processo é evidente. E impressionante, por exemplo, que o código romano, a fim de restringir os direitos das mulheres, invoque "a imbecilidade, a fragilidade do sexo" no momento em que, pelo enfraquecimento da família, ela se torna um perigo para os herdeiros masculinos. É impressionante que no século XVI, a fim de manter a mulher casada sob tutela, apele-se para a autoridade de Santo Agostinho, declarando que "a mulher é um animal que não é nem firme nem estável", enquanto à celibatária se reconhece o direito de gerir seus bens. Montaigne compreendeu muito bem a arbitrariedade e a injustiça do destino imposto à mulher: "Não carecem de razão as mulheres quando recusam as regras que se introduziram no mundo, tanto mais quando foram os homens que as fizeram sem elas. Há, naturalmente, desentendimentos e disputas entre elas e nós"; mas ele não chega a defendê-las verdadeiramente. É somente no século XVIII que homens profundamente democratas encaram a questão com objetividade. Diderot, entre outros, esforça-se por demonstrar que a mulher é, como o homem, um ser humano. Um pouco mais tarde, Stuart Mill defende-a com ardor. Mas esses filósofos são de uma imparcialidade excepcional. No século XIX, a querela do feminismo torna-se novamente uma querela de sectários; uma das consequências da revolução industrial é a participação da mulher no trabalho produtor: nesse momento as reivindicações feministas saem do terreno teórico, encontram fundamentos econômicos; seus adversários fazem-se mais agressivos. Embora os bens de raiz se achem em parte abalados, a burguesia apega-se à velha moral que vê, na solidez da família, a garantia da propriedade privada: exige a presença da mulher no lar tanto mais vigorosamente quanto sua emancipação torna-se uma verdadeira ameaça; mesmo dentro da classe operária os homens tentaram frear essa libertação, porque as mulheres são encaradas como perigosas concorrentes, habituadas que estavam a trabalhar por salários mais baixos (1). A fim de provar a inferioridade da mulher, os antifeministas apelaram não somente para a religião, a filosofia e a teologia, como no passado, mas ainda para a ciência: biologia, psicologia experimental etc. Quando muito, consentia-se em conceder ao outro sexo "a igualdade dentro da diferença". Essa fórmula, que fez fortuna, é muito significativa: é exatamente a que utilizam em relação aos negros dos E.U.A. as leis Jim Crow; ora, essa segregação, pretensamente igualitária, só serviu para introduzir as mais extremas discriminações. Esse encontro nada tem de ocasional: quer se trate de uma raça, de uma casta, de uma classe, de um sexo reduzidos a uma condição inferior, o processo de justificação é o mesmo. O "eterno feminino" é o homólogo da "alma negra" e do "caráter judeu". O problema judaico é, de resto, em conjunto, muito diferente dos dois outros: o judeu para o antissemita é menos um inferior do que um inimigo e não se lhe reconhece neste mundo nenhum lugar próprio: o que se deseja é aniquilá-lo. Mas há profundas analogias entre a
situação das mulheres e a dos negros: umas e outros emancipam-se hoje de um mesmo paternalismo e a casta anteriormente dominadora quer mantê-los "em seu lugar", isto é, no lugar que escolheu para eles; em ambos os casos, ela se expande em elogios mais ou menos sinceros às virtudes do "bom negro", de alma inconsciente, infantil e alegre, do negro resignado, da mulher "realmente mulher", isto é, frívola, pueril, irresponsável, submetida ao homem. Em ambos os casos, tira seus argumentos do estado de fato que ela criou. Conhece-se o dito de Bernard Shaw: "O americano branco relega o negro ao nível do engraxate; e concluí daí que só pode servir para engraxar sapatos". Encontra-se esse círculo vicioso em todas as circunstâncias análogas: quando um indivíduo ou um grupo de indivíduos é mantido numa situação de inferioridade, ele é de fato inferior; mas é sobre o alcance da palavra ser que precisamos entender-nos; a má-fé consiste em dar-lhe um valor substancial quando tem o sentido dinâmico hegeliano: ser é ter-se tornado, é ter sido feito tal qual se manifesta. Sim, as mulheres, em seu conjunto, são hoje inferiores aos homens, isto é, sua situação oferece-lhes possibilidades menores: o problema consiste em saber se esse estado de coisas deve perpetuar-se.
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O SEGUND O SEXO
4.a EDIÇÃO - 1970
Tradução
SÉRGIO MILLIET
Capa
FERNANDO LEMOS
DIFUSÃO EUROPÉIA DO LIVRO
Título do original:
LE DEUXIÊME SEXE
LES FAITS ET LES MYTHES
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Segundo Sexo é um livro escrito por Simone de Beauvoir, publicado em 1949 e uma das obras mais celebradas e importantes para o movimento feminista. O pensamento de Beauvoir analisa a situação da mulher na sociedade.
No Brasil, foi publicado em dois volumes. “Fatos e mitos” é o volume 1, e faz uma reflexão sobre mitos e fatos que condicionam a situação da mulher na sociedade. “A experiência vivida” é o volume 2, e analisa a condição feminina nas esferas sexual, psicológica, social e política.
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Leia também:
O Segundo Sexo - 3 Fatos e Mitos: como tudo isso começou?
O Segundo Sexo - 5 Fatos e Mitos: como poremos então a questão?
4. Fatos e Mitos
: esse estado de coisas deve perpetuar-se?
Essas questões estão longe de ser novas; já lhes foram dadas numerosas respostas, mas o simples fato de ser a mulher o Outro contesta todas as justificações que os homens lhe puderam dar: eram-lhes evidentemente ditadas pelo interesse. "Tudo o que os homens escreveram sobre as mulheres deve ser suspeito, porque eles são, a um tempo, juiz e parte", escreveu, no século XVII, Poulain de Ia Barre, feminista pouco conhecido. Em toda parte e em qualquer época, os homens exibiram a satisfação que tiveram de se sentirem os reis da criação. "Bendito seja Deus nosso Senhor e o Senhor de todos os mundos por não me ter feito mulher", dizem os judeus nas suas preces matinais, enquanto suas esposas murmuram com resignação: "Bendito seja o Senhor que me criou segundo a sua vontade". Entre as mercês que Platão agradecia aos deuses, a maior se lhe afigurava o fato de ter sido criado livre e não escravo e, a seguir, o de ser homem e não mulher. Mas os homens não poderiam gozar plenamente esse privilégio, se não o houvessem considerado alicerçado no absoluto e na eternidade: de sua supremacia procuraram fazer um direito. "Os que fizeram e compilaram as leis, por serem homens, favoreceram seu próprio sexo, e os jurisconsultos transformaram as leis em princípios", diz ainda Poulain de Ia Barre. Legisladores, sacerdotes, filósofos, escritores e sábios empenharam-se em demonstrar que a condição subordinada da mulher era desejada no céu e proveitosa à terra. As religiões forjadas pelos homens refletem essa vontade de domínio: buscaram argumentos nas lendas de Eva, de Pandora, puseram a filosofia e a teologia a serviço de seus desígnios, como vimos pelas frases citadas de Aristóteles e Sto. Tomás. Desde a Antiguidade, moralistas e satíricos deleitaram-se com pintar o quadro das fraquezas femininas. Conhecem-se os violentos requisitórios que contra elas se escreveram através de toda a literatura francesa: Montherlant reata, com menor brilho, a tradição de Jean de Meung. Essa hostilidade parece, algumas vezes, justificável, mas na maior parte dos casos é gratuita. Na realidade, recobre uma vontade de auto justificação mais ou menos habilmente mascarada. "E mais fácil acusar um sexo do que desculpar o outro", diz Montaigne. Em certos casos, o processo é evidente. E impressionante, por exemplo, que o código romano, a fim de restringir os direitos das mulheres, invoque "a imbecilidade, a fragilidade do sexo" no momento em que, pelo enfraquecimento da família, ela se torna um perigo para os herdeiros masculinos. É impressionante que no século XVI, a fim de manter a mulher casada sob tutela, apele-se para a autoridade de Santo Agostinho, declarando que "a mulher é um animal que não é nem firme nem estável", enquanto à celibatária se reconhece o direito de gerir seus bens. Montaigne compreendeu muito bem a arbitrariedade e a injustiça do destino imposto à mulher: "Não carecem de razão as mulheres quando recusam as regras que se introduziram no mundo, tanto mais quando foram os homens que as fizeram sem elas. Há, naturalmente, desentendimentos e disputas entre elas e nós"; mas ele não chega a defendê-las verdadeiramente. É somente no século XVIII que homens profundamente democratas encaram a questão com objetividade. Diderot, entre outros, esforça-se por demonstrar que a mulher é, como o homem, um ser humano. Um pouco mais tarde, Stuart Mill defende-a com ardor. Mas esses filósofos são de uma imparcialidade excepcional. No século XIX, a querela do feminismo torna-se novamente uma querela de sectários; uma das consequências da revolução industrial é a participação da mulher no trabalho produtor: nesse momento as reivindicações feministas saem do terreno teórico, encontram fundamentos econômicos; seus adversários fazem-se mais agressivos. Embora os bens de raiz se achem em parte abalados, a burguesia apega-se à velha moral que vê, na solidez da família, a garantia da propriedade privada: exige a presença da mulher no lar tanto mais vigorosamente quanto sua emancipação torna-se uma verdadeira ameaça; mesmo dentro da classe operária os homens tentaram frear essa libertação, porque as mulheres são encaradas como perigosas concorrentes, habituadas que estavam a trabalhar por salários mais baixos (1). A fim de provar a inferioridade da mulher, os antifeministas apelaram não somente para a religião, a filosofia e a teologia, como no passado, mas ainda para a ciência: biologia, psicologia experimental etc. Quando muito, consentia-se em conceder ao outro sexo "a igualdade dentro da diferença". Essa fórmula, que fez fortuna, é muito significativa: é exatamente a que utilizam em relação aos negros dos E.U.A. as leis Jim Crow; ora, essa segregação, pretensamente igualitária, só serviu para introduzir as mais extremas discriminações. Esse encontro nada tem de ocasional: quer se trate de uma raça, de uma casta, de uma classe, de um sexo reduzidos a uma condição inferior, o processo de justificação é o mesmo. O "eterno feminino" é o homólogo da "alma negra" e do "caráter judeu". O problema judaico é, de resto, em conjunto, muito diferente dos dois outros: o judeu para o antissemita é menos um inferior do que um inimigo e não se lhe reconhece neste mundo nenhum lugar próprio: o que se deseja é aniquilá-lo. Mas há profundas analogias entre a
(1) Ver segunda parte, págs. 151-152.
situação das mulheres e a dos negros: umas e outros emancipam-se hoje de um mesmo paternalismo e a casta anteriormente dominadora quer mantê-los "em seu lugar", isto é, no lugar que escolheu para eles; em ambos os casos, ela se expande em elogios mais ou menos sinceros às virtudes do "bom negro", de alma inconsciente, infantil e alegre, do negro resignado, da mulher "realmente mulher", isto é, frívola, pueril, irresponsável, submetida ao homem. Em ambos os casos, tira seus argumentos do estado de fato que ela criou. Conhece-se o dito de Bernard Shaw: "O americano branco relega o negro ao nível do engraxate; e concluí daí que só pode servir para engraxar sapatos". Encontra-se esse círculo vicioso em todas as circunstâncias análogas: quando um indivíduo ou um grupo de indivíduos é mantido numa situação de inferioridade, ele é de fato inferior; mas é sobre o alcance da palavra ser que precisamos entender-nos; a má-fé consiste em dar-lhe um valor substancial quando tem o sentido dinâmico hegeliano: ser é ter-se tornado, é ter sido feito tal qual se manifesta. Sim, as mulheres, em seu conjunto, são hoje inferiores aos homens, isto é, sua situação oferece-lhes possibilidades menores: o problema consiste em saber se esse estado de coisas deve perpetuar-se.
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O SEGUND O SEXO
SIMONE DE BEAUVOIR
Entendendo o eterno feminino como um homólogo da alma negra, epítetos que representam o desejo da casta dominadora de manter em "seu lugar", isto é, no lugar de vassalagem que escolheu para eles, mulher e negro, Simone de Beauvoir, despojada de qualquer preconceito, elaborou um dos mais lúcidos e interessantes estudos sobre a condição feminina. Para ela a opressão se expressa nos elogios às virtudes do bom negro, de alma inconsciente, infantil e alegre, do negro resignado, como na louvação da mulher realmente mulher, isto é, frívola, pueril, irresponsável, submetida ao homem.
Todavia, não esquece Simone de Beauvoir que a mulher é escrava de sua própria situação: não tem passado, não tem história, nem religião própria. Um negro fanático pode desejar uma humanidade inteiramente negra, destruindo o resto com uma explosão atômica. Mas a mulher mesmo em sonho não pode exterminar os homens. O laço que a une a seus opressores não é comparável a nenhum outro. A divisão dos sexos é, com efeito, um dado biológico e não um momento da história humana.
Assim, à luz da moral existencialista, da luta pela liberdade individual, Simone de Beauvoir, em O Segundo Sexo, agora em 4.a edição no Brasil, considera os meios de um ser humano se realizar dentro da condição feminina. Revela os caminhos que lhe são abertos, a independência, a superação das circunstâncias que restringem a sua liberdade.
4.a EDIÇÃO - 1970
Tradução
SÉRGIO MILLIET
Capa
FERNANDO LEMOS
DIFUSÃO EUROPÉIA DO LIVRO
Título do original:
LE DEUXIÊME SEXE
LES FAITS ET LES MYTHES
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Segundo Sexo é um livro escrito por Simone de Beauvoir, publicado em 1949 e uma das obras mais celebradas e importantes para o movimento feminista. O pensamento de Beauvoir analisa a situação da mulher na sociedade.
No Brasil, foi publicado em dois volumes. “Fatos e mitos” é o volume 1, e faz uma reflexão sobre mitos e fatos que condicionam a situação da mulher na sociedade. “A experiência vivida” é o volume 2, e analisa a condição feminina nas esferas sexual, psicológica, social e política.
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Leia também:
O Segundo Sexo - 3 Fatos e Mitos: como tudo isso começou?
O Segundo Sexo - 5 Fatos e Mitos: como poremos então a questão?
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