Fiódor Dostoiévski
07.
20 de maio
Mando-lhe uns cachinhos de uvas; fazem bem aos convalescentes, e os médicos dizem que também são boas para matar a sede. Pode, por isso, comê-las sem receio, quando sentir a boca seca. Manifestou há dias desejo de um raminho de rosas; pois é com muito gosto que lhe envio, minha querida. Tem apetite? Olhe que é o principal. Felizmente, o mal já lá vai, e assim as nossas desgraças não tardarão a ter fim também. Dê graças a Deus! Quanto aos livros, não me é possível de momento mandar-lhe nenhum. Mas disseram-me que um dos hóspedes desta casa tem um muito bom, escrito em estilo muito elevado. Afirmam que é, na verdade, uma obra excelente; eu não a li, mas têm-na elogiado muito. Já a pedi e creio que me emprestam. Mas... será capaz de a ler? É tão esquisita neste particular, que dificilmente se descobre coisa que lhe agrade. Digo isto, porque a conheço muito bem. Talvez prefira poesias amorosas e nostálgicas. Se assim for, arranjar-lhes-ei e tudo o que desejar. Por acaso tenho um caderno cheio de poesias copiadas por mim, que lhe envio.
Eu estou bem, esteja descansada quanto a isto, peço-lhe. Aquilo que Fédora lhe contou não é bem verdade; há de dizer-lhe que não minta tanto, não se esqueça. Mas diga-lhe a sério! Que linguareira! Não vendi a casaca do meu fato novo, nem sequer tive tal ideia. E porque havia de vendê-la? Ainda há pouco soube que me iam dar uma gratificação de quarenta rublos e, sendo assim, porque havia de me desfazer dos meus fatos? Não, meu amor, não se aflija com isso. A Fédora é maliciosa e desconfiada, o que não está bem. Tenha paciência, e verá como a vida nos há de sorrir. Mas, para isso, torna-se necessário, antes de mais nada, que se restabeleça por completo. Por amor de Deus, procure recuperar a saúde e não se aflija com coisa alguma. O que mais me confrange e desgosta é vê-la tão fraca. Quem lhe disse que eu tinha emagrecido? Outra calúnia! Gozo de boa saúde e sinto-me muito contente; e engordei tanto, que quase tenho vergonha. Vivo alegre e satisfeito e nada me falta... Se você já estivesse completamente restabelecida…
Por agora, adeus, meu anjo. Beijo-lhe as pontas dos seus dedos e sou
sempre o seu fiel amigo.
Makar Dievuchkin
P. S. — Ah, meu amor! Para que voltou ao mesmo assunto na sua carta? Que ideia foi essa? Como quer que vá amiúde visitá-la... não me dirá? Só se for a coberto das trevas da noite. Mas isso, só daqui a algum tempo, pois agora, a bem dizer, nem noite há. Enquanto esteve doente, prostrada com febre e em delírio, não a deixei por um só momento. Não compreendo mesmo como pude arranjar tempo para tudo, sem faltar às minhas obrigações. Depois, porém, suspendi as minhas visitas, porque os curiosos já andavam a fazer perguntas. Já não faltam por aí rumores. Confio plenamente na Teresa, que não é linguareira. Contudo, minha querida, sabe muito bem o que sucederia se o povo soubesse da nossa vida. Que pensaria e que diria? Por isso, tenha paciência, até ao seu completo restabelecimento, e então não faltará ocasião de nos encontrarmos em qualquer parte, fora de casa.
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Esse é o tipo de livro que modifica algo na gente. “Pobre gente” foi o primeiro romance de Dostoievski, começou a escrever em 1844 e terminou no ano seguinte. O personagem Makar Dévushkin, um auxiliar administrativo que leva trinta anos copiando documentos, mora numa pensão humilde, seu pequeno quarto fica ao lado da cozinha, é o que pode pagar com o seu salário também minúsculo. O frio e a frieza de uma sociedade que ignora os pobres. Crítica social contundente, comendo pelas beiradas narrativas. Segundo alguns historiadores, uma das obras que mandou o autor para a cadeia siberiana. Eram os 25 anos de um gênio então já se apurando na escrita, despertando assim, para sentir seu tempo e as humilhações da época, desesperos; um olhar sobre todas as coisas da sofrida gente. Triste narrativa pungente da condição humana em torno desses dois personagens, como vítimas de fatalidades da vida numa sociedade onde poucos conseguem realmente sair do ramerão, e onde muitos se movem numa crueldade austera entre si, forçada pelas inóspitas condições em que vivem. Makar e Varenka vivem um amor idílico ensombrado pelo que os circunda (Makar é muito mais velho que Varenka), agravando as suas próprias condições a um nível desesperador e quase doentio, mas sempre com alguma perspectiva de esperança fundadas em ilusões muitas das vezes patéticas, algo falsamente ingênuas, ilustrativas, no entanto, ao alcance do coração humano que tudo pode sonhar, sem se importar com as verdadeiras condições em que se encontra, principalmente nessas condições por assim dizer desprezíveis.
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Fiódor Dostoiévski
GENTE POBRE
Título original: Bednye Lyudi (1846)
Tradução anônima 2014 © Centaur Editions
centaur.editions@gmail.com
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Leia também:
Gente Pobre - 06. Encontrei hoje a minha prima Sacha - Dostoiévski
Gente Pobre - 08. Quem me dera poder - Dostoiévski
07.
20 de maio
Minha querida Bárbara:
Mando-lhe uns cachinhos de uvas; fazem bem aos convalescentes, e os médicos dizem que também são boas para matar a sede. Pode, por isso, comê-las sem receio, quando sentir a boca seca. Manifestou há dias desejo de um raminho de rosas; pois é com muito gosto que lhe envio, minha querida. Tem apetite? Olhe que é o principal. Felizmente, o mal já lá vai, e assim as nossas desgraças não tardarão a ter fim também. Dê graças a Deus! Quanto aos livros, não me é possível de momento mandar-lhe nenhum. Mas disseram-me que um dos hóspedes desta casa tem um muito bom, escrito em estilo muito elevado. Afirmam que é, na verdade, uma obra excelente; eu não a li, mas têm-na elogiado muito. Já a pedi e creio que me emprestam. Mas... será capaz de a ler? É tão esquisita neste particular, que dificilmente se descobre coisa que lhe agrade. Digo isto, porque a conheço muito bem. Talvez prefira poesias amorosas e nostálgicas. Se assim for, arranjar-lhes-ei e tudo o que desejar. Por acaso tenho um caderno cheio de poesias copiadas por mim, que lhe envio.
Eu estou bem, esteja descansada quanto a isto, peço-lhe. Aquilo que Fédora lhe contou não é bem verdade; há de dizer-lhe que não minta tanto, não se esqueça. Mas diga-lhe a sério! Que linguareira! Não vendi a casaca do meu fato novo, nem sequer tive tal ideia. E porque havia de vendê-la? Ainda há pouco soube que me iam dar uma gratificação de quarenta rublos e, sendo assim, porque havia de me desfazer dos meus fatos? Não, meu amor, não se aflija com isso. A Fédora é maliciosa e desconfiada, o que não está bem. Tenha paciência, e verá como a vida nos há de sorrir. Mas, para isso, torna-se necessário, antes de mais nada, que se restabeleça por completo. Por amor de Deus, procure recuperar a saúde e não se aflija com coisa alguma. O que mais me confrange e desgosta é vê-la tão fraca. Quem lhe disse que eu tinha emagrecido? Outra calúnia! Gozo de boa saúde e sinto-me muito contente; e engordei tanto, que quase tenho vergonha. Vivo alegre e satisfeito e nada me falta... Se você já estivesse completamente restabelecida…
Por agora, adeus, meu anjo. Beijo-lhe as pontas dos seus dedos e sou
sempre o seu fiel amigo.
Makar Dievuchkin
P. S. — Ah, meu amor! Para que voltou ao mesmo assunto na sua carta? Que ideia foi essa? Como quer que vá amiúde visitá-la... não me dirá? Só se for a coberto das trevas da noite. Mas isso, só daqui a algum tempo, pois agora, a bem dizer, nem noite há. Enquanto esteve doente, prostrada com febre e em delírio, não a deixei por um só momento. Não compreendo mesmo como pude arranjar tempo para tudo, sem faltar às minhas obrigações. Depois, porém, suspendi as minhas visitas, porque os curiosos já andavam a fazer perguntas. Já não faltam por aí rumores. Confio plenamente na Teresa, que não é linguareira. Contudo, minha querida, sabe muito bem o que sucederia se o povo soubesse da nossa vida. Que pensaria e que diria? Por isso, tenha paciência, até ao seu completo restabelecimento, e então não faltará ocasião de nos encontrarmos em qualquer parte, fora de casa.
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Esse é o tipo de livro que modifica algo na gente. “Pobre gente” foi o primeiro romance de Dostoievski, começou a escrever em 1844 e terminou no ano seguinte. O personagem Makar Dévushkin, um auxiliar administrativo que leva trinta anos copiando documentos, mora numa pensão humilde, seu pequeno quarto fica ao lado da cozinha, é o que pode pagar com o seu salário também minúsculo. O frio e a frieza de uma sociedade que ignora os pobres. Crítica social contundente, comendo pelas beiradas narrativas. Segundo alguns historiadores, uma das obras que mandou o autor para a cadeia siberiana. Eram os 25 anos de um gênio então já se apurando na escrita, despertando assim, para sentir seu tempo e as humilhações da época, desesperos; um olhar sobre todas as coisas da sofrida gente. Triste narrativa pungente da condição humana em torno desses dois personagens, como vítimas de fatalidades da vida numa sociedade onde poucos conseguem realmente sair do ramerão, e onde muitos se movem numa crueldade austera entre si, forçada pelas inóspitas condições em que vivem. Makar e Varenka vivem um amor idílico ensombrado pelo que os circunda (Makar é muito mais velho que Varenka), agravando as suas próprias condições a um nível desesperador e quase doentio, mas sempre com alguma perspectiva de esperança fundadas em ilusões muitas das vezes patéticas, algo falsamente ingênuas, ilustrativas, no entanto, ao alcance do coração humano que tudo pode sonhar, sem se importar com as verdadeiras condições em que se encontra, principalmente nessas condições por assim dizer desprezíveis.
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Fiódor Dostoiévski
GENTE POBRE
Título original: Bednye Lyudi (1846)
Tradução anônima 2014 © Centaur Editions
centaur.editions@gmail.com
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Leia também:
Gente Pobre - 06. Encontrei hoje a minha prima Sacha - Dostoiévski
Gente Pobre - 08. Quem me dera poder - Dostoiévski
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