sexta-feira, 24 de março de 2017

7.O Estrangeiro: No asilo - Albert Camus

Albert Camus


Capítulo 1


7. No asilo




No asilo, metiam-se com eles e diziam ao Perez: "É a sua noiva". 

Ele ria. Isto agradava-Lhes. E o caso é que a morte da sua mãe afetou-o muito. Achei melhor não Lhe recusar a autorização. Mas, a conselho do médico, proibi-lhe a velada de ontem". 

Ficamos calados durante bastante tempo. O diretor levantou-se e olhou pela janela do escritório. A certa altura observou: "Já chegou o padre de Marengo. Vem adiantado". Preveniu-me que são precisos pelo menos três quartos de hora para chegar á igreja, que fica mesmo na aldeia. Descemos. 

Diante do edifício, estava o padre e dois acólitos. Um deles segurava um turíbulo de incenso `e o padre abaixava-se para regular o comprimento da cadeia de prata. Quando chegamos, o padre levantou-se. Tratou-me por "meu filho" e disse-me algumas palavras. Entrou e eu segui-o. Vi de relance que os parafusos do caixão estavam apertados e que havia na sala quatro homens vestidos de preto. Ao mesmo tempo, o diretor disse-me que o carro estava à espera na estrada e ouvi o padre principiar as suas orações. A partir 21 20 confusão de movimentos por. detrás das janelas, e depois tudo se acalmou. O sol estava um pouco mais alto: principiava a aquecer-me os pés. O porteiro atravessou o pátio e veio dizer que o diretor estava à minha espera. Fui ao escritório deste. Mandou-me assinar vários documentos. Reparei que estava vestido de preto, com calças de fantasia. Pegou no telefone e dirigiu-me a palavra: "Os empregados da agência funerária já cá estão. Vou-lhes dizer para fecharem o caixão. Quer ver a sua mãe pela última vez?" Disse que não. Baixando a voz, deu uma ordem pelo telefone: "Figeac, diga aos homens que podem ir". 

Disse-me, em seguida, que assistiria ao enterro. 

Agradeci-lhe: Sentou-se por detrás da secretária e cruzou as pernas. Informou-me de que estaríamos sós, eu e ele, apenas com a presença da enfermeira de serviço. E m princípio, os pensionistas não deviam assistir aos enterros. Deixava-os apenas velar: " uma questão de humanidade", observou. Mas excepcionalmente, dera autorização para seguir o préstito a um velho amigo da minha mãe: "Tomás Perez". Aqui, o diretor sorriu. Disse-me: "Não sei se compreende, é um sentimento um pouco infantil. Mas ele e a sua mãe andavam sempre juntos. No asilo, metiam-se com eles e diziam ao Perez: "É a sua noiva". Ele ria. Isto agradava-Lhes. E o caso é que a morte da sua mãe afetou-o muito. Achei melhor não lhe recusar a autorização. Mas, a conselho do médico, proibi-lhe a velada de ontem". Ficamos calados durante bastante tempo. O diretor levantou-se e olhou pela janela do escritório. A certa altura observou: "Já chegou o padre de Marengo. Vem adiantado". Preveniu-me que são precisos pelo menos três quartos de hora para chegar à igreja, que fica mesmo na aldeia. Descemos. Diante do edifício, estava o padre e dois acólitos. Um deles segurava um turíbulo de incenso e o padre abaixava-se para regular o comprimento da cadeia de prata. Quando chegamos, o padre levantou-se. Tratou-me por "meu filho" e disse-me algumas palavras. Entrou e eu segui-o. 

Vi de relance que os parafusos do caixão estavam apertados e que havia na sala quatro homens vestidos de preto. Ao mesmo tempo, o diretor disse-me que o carro estava à espera na estrada e ouvi o padre principiar as suas orações. 

A partir deste momento, foi tudo muito rápido. Os homens dirigiram-se para o caixão. O padre, os dois acólitos, o diretor e eu, saímos. Diante da porta, havia uma senhora que eu não conhecia: "o Sr. Meursault", disse o diretor. Não escutei o nome da senhora e compreendi apenas que era enfermeira delegada. Sem um sorriso, inclinou uma cara ossuda e comprida. Depois, afastamo-nos para deixar passar o corpo. Seguimos os homens e saímos do asilo. Diante da porta, estava um carro comprido e reluzente. Ao pé do carro, estavam o mestre de cerimônias, homenzinho vestido com um traje ridículo, e um velho com um ar embaraçado. Percebi que era o Sr. Perez. Tinha um chapéu mole, de copa arredondada e abas largas (tirou-o da cabeça quando o caixão atravessou a porta), um fato cujas calças caíam sobre os sapatos e uma gravata preta, pequena demais, para a sua camisa com um grande colarinho branco. Os beiços tremiam-lhe, por debaixo de um nariz semeado de pontos negros. Os cabelos brancos, bastante finos, deixavam-lhe passar umas curiosas orelhas balouçantes e mal acabadas, cuja cor de um vermelho sanguíneo nesta cara tão pálida, me impressionou. 

O mestre de cerimônias indicou-nos os nossos lugares. O padre ia à frente do carro. Em volta deste, os quatro homens. Atrás, o diretor e eu; fechando o cortejo, a enfermeira delegada e o Sr. Perez. 

O céu estava já cheio de sol. Começava a pesar sobre a terra e o calor aumentava rapidamente: Não sei por que motivo esperamos tanto tempo antes de principiarmos a andar. Tinha calor, com o meu fato escuro. O velhinho que voltara a cobrir a cabeça, tirou outra vez o chapéu. Voltara-me um pouco para o lado dele e olhava-o, quando o diretor o trouxe à conversa. Disse-me que, muitas vezes, a minha mãe e o Sr. Perez iam passear à noite até à aldeia, acompanhados por uma enfermeira. Eu olhava os campos em meu redor. Através das linhas de ciprestes que levavam às colinas perto do céu, desta terra ruiva e verde, destas casas raras e bem desenhadas, eu compreendia a minha mãe. A noite, neste sítio, devia ser como que um melancólico período de tréguas. 

Hoje, o sol excessivo que fazia estremecer a paisagem, tornava-a deprimente e inumana.




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A Constatação do Absurdo

Nascido e criado entre contrastes fundamentais, Albert Camus desde cedo aprendeu que a miséria engendra uma solidão que lhe é típica, uma austeridade toda sua, uma desconfiança da vida - mas a paisagem desperta uma rica sensualidade, uma eufórica sensação de onipotência, um orgulho desmedido de possuir a beleza inteiramente gratuita. Este aprendizado, feito a meio caminho entre a miséria e o sol, levou-o à consciência do que existe de mais trágico na condição humana: o absurdo, essa irremediável incompatibilidade entre as aspirações e a realidade.


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Camus, Albert, 1913-1960.
              O Estrangeiro
Título Original L'Étranger
Tradução de António Quadros
Edição Livros do Brasil
Lisboa
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