quarta-feira, 22 de março de 2017

Gente Pobre - 08. Quem me dera poder - Dostoiévski

Fiódor Dostoiévski


08.




1 de junho



Meu bom Makar Alexeievitch:


Quem me dera poder de qualquer modo manifestar-lhe a minha gratidão pelos seus desvelos e pelos sacrifícios que faz por mim! Resolvi, por isso, tirar da minha cômoda o velho caderno que junto lhe envio. Comecei a apontar nele as minhas impressões, no tempo em que ainda a vida me sorria. Por diversas vezes o senhor me manifestou desejos de conhecer o meu passado, e pediu-me que lhe falasse da mamã, de Pokróvski e da minha estadia em casa de Ana Fedorovna, e o pusesse ao facto das minhas recentes infelicidades. E mostrou tanta vontade de ler este caderno, a cujas páginas confiei parte da minha vida, que julgo dar-lhe grande alegria enviando-lho. Foi, porém, com grande tristeza que agora o reli. Tive a impressão de ter duplicado a idade desde que escrevi nele a última linha. As notas que aí encontra foram traçadas em diferentes épocas. Praza a Deus que continue de saúde, Makar Alexeievitch. Por mim, agora, de vez em quando tenho horríveis acessos de tédio, e de noite atormentam-me as insônias. Que aborrecida convalescença!



B. D.



I


Quando morreu meu pai, tinha eu catorze anos apenas. A infância foi a época mais feliz da minha vida. Passei-a longe daqui, na província de Tula, onde meu pai administrava uma grande quinta, propriedade do príncipe P... Ali vivíamos sozinhos, tranquilos e felizes... Eu era o que podia chamar-se uma selvagem. Passava os dias a correr através dos campos e do bosque, e por onde me apetecia, porque ninguém se importava comigo. O meu pai estava sempre ocupado nos seus assuntos administrativos, e a vida doméstica não deixava à minha mãe um momento livre. Não me mandavam para a escola, com o que muito folgava. Assim, logo de manha, ia brincar para junto do lago ou para o bosque, ou então para a companhia dos ceifeiros que trabalhavam nos campos, conforme me aprouvesse. Saía de casa sem destino, sem me importar com o ardor do sol, e o mato que me arranhava o rosto e rasgava os vestidos não representava qualquer obstáculo aos meus folguedos. Queria lá saber que estivessem em casa preocupados por minha causa! 


Julgava então que havia de ser sempre assim feliz, embora passasse a vida inteira no campo. Infelizmente, teria eu uns escassos doze anos, quando me vi obrigada a dizer adeus àquela vida rústica e àqueles sítios que me eram tão familiares, para seguir os meus pais para S. Petersburgo. Ah! Como me custou arrancar-me dali! Chorei amargamente ao abandonar tudo quanto até então amara. Abracei-me a meu pai — lembro-me bem — e com os olhos inundados de lágrimas supliquei-lhe que me deixasse mais algum tempo na quinta. Ele ralhou-me, e a minha mãe, a chorar, dizia-me que era necessário partir, por força das circunstâncias. O velho príncipe P... morrera, e os herdeiros haviam dispensado os serviços do meu pai. Como o papá tinha colocado em S. Petersburgo algum capital com o fim de melhorar a sua fortuna, achou conveniente ir ele próprio tratar dos seus negócios para essa cidade. Tudo isto me foi mais tarde contado por minha mãe. Alugamos então um andar em S. Petersburgo, onde vivemos até à morte do meu pai. 

Ai! Como me foi difícil habituar-me à nova vida! Chegamos a S. Petersburgo no outono. Deixamos a quinta num dia de sol, claro e ameno. As colheitas estavam no fim, e nas eiras viam-se altas montanhas de trigo, em torno das quais chilreavam bandos de inquietos passarinhos, Como tudo aquilo era calmo e alegre! 

Quando, porém, chegamos à cidade, tudo era diferente; chovia e estava frio, e o chão coberto de lama; e depararam-se-nos rostos desconhecidos, que me pareceram hostis, mal-encarados e maus. Instalamo-nos o melhor que pudemos. Que maçada para conseguirmos pôr a casa em ordem! 

O papá passava o dia na rua e a minha mãe encontrava-se sempre atarefada, de modo que se esqueciam por completo de mim. Que triste foi o meu despertar após a primeira noite passada na nossa nova casa! Diante das nossas janelas ficava um muro pintado de amarelo e na rua só se via barro. Os transeuntes eram raros, todos muito enroupados e de pescoço agasalhado, com aspeto de quem tinha muito frio. Tudo o que nos rodeava causava tristeza e tédio insuportáveis. Não tínhamos na cidade parentes ou conhecidos. Meu pai estava de relações cortadas com Ana Fedorovna, por causa de um dinheiro que ela lhe devia. Vinham, contudo, visitar-nos pessoas que tinham negócios com o papá. Em geral, entre os visitantes e o meu pai travavam-se grandes discussões, ouvindo-se de fora gritos e barulho. E depois de se irem embora, ele ficava sempre triste e maldisposto. Passava horas inteiras a passear de um lado para o outro da casa, de semblante carregado e sem proferir palavra. Nesses momentos, nem mesmo a mamã se atrevia a abrir a boca, conservando-se em silêncio. E eu ia meter-me a um canto, com um livro na mão, tendo receio de me mexer. 

Três meses após a nossa chegada a S. Petersburgo, meteram-me num colégio. Que tristeza a minha ao princípio, ao ver-me diante de tantas caras desconhecidas! Era tudo tão árido, tão hostil, tão pouco atraente! As professoras ralhavam, as companheiras pregavam partidas e eu ficava cheia de medo. E então o regulamento era de um rigor! Tudo era feito a horas determinadas e com toda a pontualidade. As refeições em conjunto, aquelas lições tão maçadoras constituíram para mim, ao princípio, um verdadeiro martírio. Nem sequer podia dormir. Quantas noites longas, aborrecidas e frias eu passei em claro, a chorar até ao amanhecer! De tarde, enquanto as outras meninas estudavam ou passavam os olhos pelas suas lições, eu conservava-me muito quietinha, com o livro na minha frente, e não me atrevia a fazer o menor movimento; mas o meu pensamento voava em direção à minha casa, lembrava-me dos meus pais e da minha boa e velha ama e dos seus contos... E que tristeza eu sentia então! Recordava-me perfeitamente do mais insignificante objeto da casa, e ainda hoje mesmo relembro tudo isso com um prazer especial, doloroso... E para ali estava a matutar... Ai! como seria bom encontrar-me agora em casa! A esta hora, estaria sentada à mesa, sobre a qual fumega o samovar, em companhia de meus pais. Que calorzinho se sente e como se está bem ah! «Como gostaria — pensava — de dar agora na minha mamãzinha um abraço apertado, muito apertado» Depois continuava a pensar, até que a nostalgia se apoderava de mim, fazendo-me chorar em silêncio lágrimas amargas... E esquecia por completo o que tinha para estudar. Vinha a noite, e como não sabia a lição, pensava no professor, na madame e nas condiscípulas, sonhando que estudava; mas, afinal, se me interrogavam, eu nada sabia. Era então condenada a manter me de joelhos num canto e a ficar sem uma das refeições. A minha vida era, pois, tristonha e melancólica. As outras moças riam-se de mim, pregavam-me partidas, distraiam-me durante as horas de estudo, e beliscavam-me quando, em formatura, nos dirigíamos para o refeitório, ou faziam queixa de mim à professora. Mas, em contrapartida, que alegria a minha quando, aos sábados de tarde, a minha boa ama me ia buscar! 

Com que alegria eu abraçava a boa velhinha! Depois de me vestir e me pôr muito quentinha, como ela dizia, seguíamos para casa. Pelo caminho, ela não conseguia acompanhar-me, tão ligeira eu ia. É que não tinha paciência de caminhar vagarosamente. Apesar da pressa que levava, não parava de conversar com ela durante todo o trajeto, contando-lhe tudo o que me vinha à ideia. Logo que entrava em casa, louca de alegria, atirava-me para os braços de meus pais, tal como se nos não víssemos há sete anos. Começava então a contar as novidades que sabia e a fazer perguntas acerca de tudo. Ria a bom rir e desatava a correr pela casa, cumprimentando toda a gente. Depois o papá fazia-me perguntas mais sérias: acerca dos professores, das matemáticas, do francês e da gramática de L’ Homond... e todos estávamos contentes e alegres. Ainda hoje recordo com saudade aqueles momentos. 

Esforcei-me o mais possível por me instruir, a fim de dar gosto ao meu pobre pai. Via quanto ele se sacrificava por mim, apesar das preocupações cada vez mais graves que o atormentavam. Mostrava-se de dia para dia mais triste, mais sombrio e mais colérico. O seu gênio piorava assustadoramente. Tudo lhe corria mal, a sorte não o protegia e as dívidas iam aumentando cada vez mais. 

Minha mãe nem sequer se atrevia a chorar, não soltava o menor queixume, receando irritar ainda mais o meu pai. Por fim, a sua saúde alterou-se, começou a emagrecer e a tossir de modo inquietante. Quando, então, regressava do colégio, só se me deparavam rostos tristes: minha mãe chorava em silêncio e o meu pai encolerizava-se. Seguiam-se os queixumes e as censuras: a minha presença não lhe dava a mínima alegria, qualquer consolação; apesar de ele haver feito os maiores sacrifícios para me dar uma educação capaz, eu ainda não sabia uma palavra de francês. Em suma, vingava-se em mim e na minha mãe, afirmando que fôramos nós as únicas causadoras de tudo, de todos os fracassos, de toda a sua infelicidade. Como era possível que ele atormentasse assim a minha pobre mãe? Ao vê-la, sentia o meu coração confranger-se. Tinha as faces descoradas, os olhos enterrados nas órbitas, enfim, todos os sintomas da tísica. 

Era a mim que atingiam as mais ásperas censuras de meu pai. Geralmente, principiava a queixar-se de uma insignificância, para logo proferir as frases mais descabeladas. Por vezes, eu nem atinava com o sentido das suas palavras. Dizia cada coisa! Que eu não conhecia nada de francês, que era uma estúpida e a diretora do colégio não passava de uma idiota, que não sabia ministrar a educação; que assim não me podia arranjar emprego; que a gramática de L’ Homond não prestava para nada, que a de Zapolski era muito melhor; que estava a gastar comigo rios de dinheiro, sem qualquer proveito ou utilidade; que eu não tinha juízo nenhum nem sentimentos; quer dizer: eu consumia-me para conseguir aprender um pouco de francês e, ao fim e ao cabo, era a culpada de tudo e tinha de aguentar todas as censuras. Não se julgue, porém, que o meu pai procedia desta forma porque não nos amasse; consagrava-nos, pelo contrário, imenso carinho. Mas era assim o seu gênio... 

Melhor dizendo, o seu gênio azedara-se devido aos desgostos, às decepções e aos fracassos que sofrera na vida, pois, antes, não podia ser melhor. Tornara-se desconfiado, por vezes denotava extrema amargura, quase cedendo ao desespero; começou a descurar a saúde, até que um dia apanhou um resfriamento, do qual veio a morrer ao cabo de curta doença. O golpe foi tão repentino e inesperado, e tal o aturdimento em que nos deixou, que só ao fim de algum tempo pudemos afazer-nos à triste realidade. A mamã ficou com as ideias um pouco perturbadas; a princípio cheguei mesmo a recear pelas suas faculdades mentais. Mal o meu pai morreu, os credores, aos magotes, começaram a apresentar-se em nossa casa. Entregamos-lhes tudo o que possuíamos. Fomos obrigadas também a vender a casa em que vivíamos e que o papá comprara meio ano após a nossa chegada a S. Petersburgo. Não sei bem como as coisas se arranjaram; mas o certo é que nos vimos sem teto, sem dinheiro, desamparadas e sem recursos. A mamã estava doente; minava-a uma febre lenta que a ia consumindo; não podíamos ganhar a vida e, assim, estávamos resignadas a morrer. Tinha eu então catorze anos. 

Foi nessa altura que Ana Fedorovna nos visitou pela primeira vez. Apresentou-se-nos como uma proprietária e afirmou-nos que era nossa próxima parente. A mamã, porém, dizia que, de facto, ela era aparentada connosco, mas esse parentesco era muito afastado. Enquanto o meu pai foi vivo, nunca entrou em nossa casa. Agora, aparecia-nos de lágrimas nos olhos, exagerando a parte que tomava no nosso luto. Aparentava grande compaixão pela nossa desgraça, deixando, contudo, compreender que o único culpado de todos os nossos infortúnios fora o papá com o seu orgulho e a excessiva confiança que depositava nas suas próprias forças. Além disso, na qualidade de única parente manifestou desejos de cultivar connosco relações mais intimas e pediu-nos que esquecêssemos o passado. A mamã replicou-lhe que nunca lhe quisera mal, e ela desatou a chorar, muito comovida. Levou minha mãe à igreja e mandou celebrar uma missa por alma do querido morto, como ela chamou ao meu pai. Em seguida reconciliou-se solenemente com a mamã. 

Depois de muitos preâmbulos e observações e de nos ter feito ver claramente quanto era desesperada a nossa situação, devido à absoluta falta de recursos, de proteção e de amparo, instou para que fôssemos viver com ela sob o seu teto, conforme dizia. A mamã agradeceu muito a oferta; mas só daí a algum tempo se decidiu a aceitá-la, uma vez que não nos restava outro recurso. Escreveu então a Ana Fedorovna, comunicando-lhe que aceitava, agradecida, o asilo que lhe oferecera. 

Lembro-me ainda muito bem do dia em que nos mudamos da nossa casita de Petersburgskaia, para Vasilievski Ostrov, no outro extremo da cidade. Foi numa clara manhã de outono, seca e fria. A mamã chorava e eu sentia profunda tristeza, como que uma inexplicável angústia me oprimia a alma. Que doloroso momento aquele...




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Esse é o tipo de livro que modifica algo na gente. “Pobre gente” foi o primeiro romance de Dostoievski, começou a escrever em 1844 e terminou no ano seguinte. O personagem Makar Dévushkin, um auxiliar administrativo que leva trinta anos copiando documentos, mora numa pensão humilde, seu pequeno quarto fica ao lado da cozinha, é o que pode pagar com o seu salário também minúsculo. O frio e a frieza de uma sociedade que ignora os pobres. Crítica social contundente, comendo pelas beiradas narrativas. Segundo alguns historiadores, uma das obras que mandou o autor para a cadeia siberiana. Eram os 25 anos de um gênio então já se apurando na escrita, despertando assim, para sentir seu tempo e as humilhações da época, desesperos; um olhar sobre todas as coisas da sofrida gente. Triste narrativa pungente da condição humana em torno desses dois personagens, como vítimas de fatalidades da vida numa sociedade onde poucos conseguem realmente sair do ramerão, e onde muitos se movem numa crueldade austera entre si, forçada pelas inóspitas condições em que vivem. Makar e Varenka vivem um amor idílico ensombrado pelo que os circunda (Makar é muito mais velho que Varenka), agravando as suas próprias condições a um nível desesperador e quase doentio, mas sempre com alguma perspectiva de esperança fundadas em ilusões muitas das vezes patéticas, algo falsamente ingênuas, ilustrativas, no entanto, ao alcance do coração humano que tudo pode sonhar, sem se importar com as verdadeiras condições em que se encontra, principalmente nessas condições por assim dizer desprezíveis.



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Fiódor Dostoiévski

GENTE POBRE

Título original: Bednye Lyudi (1846)

Tradução anônima 2014 © Centaur Editions

centaur.editions@gmail.com


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