domingo, 19 de março de 2017

O Segundo Sexo - 3 Fatos e Mitos: como tudo isso começou?

Simone de Beauvoir



3. Fatos e Mitos


 : como tudo isso começou?




EXISTEM OUTROS CASOS EM QUE, durante um tempo mais ou menos longo, uma categoria conseguiu dominar totalmente a outra. É muitas vezes a desigualdade numérica que confere esse privilégio: a maioria impõe sua lei à minoria ou a persegue. Mas as mulheres não são, como os negros dos Estados Unidos ou os judeus, uma minoria; há tantos homens quantas mulheres na terra. Não raro, também os dois grupos em presença foram inicialmente independentes; ignoravam-se antes ou admitiam cada qual a autonomia do outro; e foi um acontecimento histórico que subordinou o mais fraco ao mais forte: a diáspora judaica, a introdução da escravidão na América, as conquistas coloniais são fatos precisos. Nesses casos, para os oprimidos, houve um passo à frente: têm em comum um passado, uma tradição, por vezes uma religião, uma cultura. Nesse sentido, a aproximação estabelecida por Bebei entre as mulheres e o proletariado seria mais lógica: os proletários tampouco não estão em estado de inferioridade e nunca constituíram uma coletividade separada. Entretanto, na falta de um acontecimento, é um desenvolvimento histórico que explica sua existência como classe e mostra a distribuição desses indivíduos dentro dessa classe. Nem sempre houve proletários, sempre houve mulheres. Elas são mulheres em virtude de sua estrutura fisiológica; por mais longe que se remonte na história, sempre estiveram subordinadas ao homem: sua dependência não é consequência de um evento ou de uma evolução, ela não aconteceu. E, em parte, porque escapa ao caráter acidental do fato histórico que a alteridade aparece aqui como um absoluto. Uma situação que se criou através dos tempos pode desfazer-se num dado tempo: os negros do Haiti, entre outros, bem que o provaram. Parece, ao contrário, que uma condição natural desafia qualquer mudança. Em verdade, a natureza, como a realidade histórica, não é um dado imutável. Se a mulher se enxerga como o inessencial que nunca retorna ao essencial é porque não opera, ela própria, esse retorno. Os proletários dizem "nós". Os negros também. Apresentando-se como sujeitos, eles transformam em "outros" os burgueses, os brancos. As mulheres — salvo em certos congressos que permanecem manifestações abstratas — não dizem "nós". Os homens dizem "as mulheres" e elas usam essas palavras para se designarem a si mesmas: mas não se põem autenticamente como Sujeito. Os proletários fizeram a revolução na Rússia, os negros no Haiti, os indo-chineses bateram-se na Indo-China: a ação das mulheres nunca passou de uma agitação simbólica; só ganharam o que os homens concordaram em lhes conceder; elas nada tomaram; elas receberam (Cf. Segunda Parte, § 5). Isso porque não têm os meios concretos de se reunir em uma unidade que se afirmaria em se opondo. Não têm passado, não têm história, nem religião própria; não têm, como os proletários, uma solidariedade de trabalho e interesses; não há sequer entre elas essa promiscuidade espacial que faz dos negros dos E.U.A., dos judeus dos guetos, dos operários de Saint-Denis ou das fábricas Renault uma comunidade. Vivem dispersas entre os homens, ligadas pelo habitat, pelo trabalho, pelos interesses econômicos, pela condição social a certos homens — pai ou marido — mais estreitamente do que as outras mulheres. Burguesas, são solidárias dos burgueses e não das mulheres proletárias; brancas, dos homens brancos e não das mulheres pretas. O proletariado poderia propor-se o trucidamento da classe dirigente; um judeu, um negro fanático poderiam sonhar com possuir o segredo da bomba atômica e constituir uma humanidade inteiramente judaica ou inteiramente negra: mas mesmo em sonho a mulher não pode exterminar os homens. O laço que a une a seus opressores não é comparável a nenhum outro. A divisão dos sexos é, com efeito, um dado biológico e não um momento da história humana. É no seio de um mitsein original que sua oposição se formou e ela não a destruiu. O casal é uma unidade fundamental cujas metades se acham presas indissoluvelmente uma à outra: nenhum corte é possível na sociedade por sexos. Isso é que caracteriza fundamentalmente a mulher: ela é o Outro dentro de uma totalidade cujos dois termos são necessários um ao outro. 

Poder-se-ia imaginar que essa reciprocidade teria facilitado a libertação; quando Hércules fia a lã aos pés de Onfale, o desejo amarra-o: por que Ônfale não conseguiu adquirir um poder durável? Para vingar-se de Jasão, Medéia mata os filhos: essa lenda selvagem sugere que, do laço que a liga à criança, a mulher teria podido tirar uma ascendência temível. Aristófanes imaginou complacentemente, em Lisístrata, uma assembléia de mulheres em que estas tentam explorar em comum, e para fins sociais, a necessidade que os homens têm delas, mas trata-se apenas de uma comédia. A lenda que afirma que as sabinas raptadas opuseram a seus raptores uma esterilidade obstinada, conta também que, fustigando-as com chicotes de couro, os homens quebraram magicamente essa resistência. A necessidade biológica — desejo sexual e desejo de posteridade — que coloca o macho sob a dependência da fêmea não libertou socialmente a mulher. O senhor e o escravo estão unidos por uma necessidade econômica recíproca que não liberta o escravo. É que, na relação do senhor com o escravo, o primeiro não põe a necessidade que tem do outro; êle detém o poder de satisfazer essa necessidade e não a mediatiza; ao contrário, o escravo, na dependência, esperança ou medo, interioriza a necessidade que tem do senhor; a urgência da necessidade, ainda que igual em ambos, sempre favorece o opressor contra o oprimido: é o que explica que a libertação da classe proletária, por exemplo, tenha sido tão lenta. Ora, a mulher sempre foi, senão a escrava do homem ao menos sua vassala; os dois sexos nunca partilharam o mundo em igualdade de condições; e ainda hoje, embora sua condição esteja evoluindo, a mulher arca com um pesado handicap. Em quase nenhum país, seu estatuto legal é idêntico ao do homem e muitas vezes este último a prejudica consideravelmente. Mesmo quando os direitos lhe são abstratamente reconhecidos, um longo hábito impede que encontrem nos costumes sua expressão concreta. Economicamente, homens e mulheres constituem como que duas castas; em igualdade de condições, os primeiros têm situações mais vantajosas, salários mais altos, maiores possibilidades de êxito que suas concorrentes recém-chegadas. Ocupam na indústria, na política etc, maior número de lugares e os postos mais importantes. Além dos poderes concretos que possuem, revestem-se de um prestígio cuja tradição a educação da criança mantém: o presente envolve o passado e no passado toda a história foi feita pelos homens. No momento em que as mulheres começam a tomar parte na elaboração do mundo, esse mundo é ainda um mundo que pertence aos homens. Eles bem o sabem, elas mal duvidam. Recusar ser o Outro, recusar a cumplicidade com o homem seria para elas renunciar a todas as vantagens que a aliança com a casta superior pode conferir-lhes. O homem suserano protegerá materialmente a mulher vassala e se encarregará de lhe justificar a existência: com o risco econômico, ela esquiva o risco metafísico de uma liberdade que deve inventar seus fins sem auxílios. Efetivamente, ao lado da pretensão de todo indivíduo de se afirmar como sujeito, que é uma pretensão ética, há também a tentação de fugir de sua liberdade e de constituir-se em coisa. É um caminho nefasto porque passivo, alienado, perdido, e então esse indivíduo é presa de vontades estranhas, cortado de sua transcendência, frustrado de todo valor. Mas é um caminho fácil: evitam-se com ele a angústia e a tensão da existência autenticamente assumida. O homem que constitui a mulher como um Outro encontrará, nela, profundas cumplicidades. Assim, a mulher não se reivindica como sujeito, porque não possui os meios concretos para tanto, porque sente o laço necessário que a prende ao homem sem reclamar a reciprocidade dele, e porque, muitas vezes, se compraz no seu papel de Outro.

Mas uma questão imediatamente se apresenta: como tudo isso começou?




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O SEGUND O SEXO
SIMONE DE BEAUVOIR
Entendendo o eterno feminino como um homólogo da alma negra, epítetos que representam o desejo da casta dominadora de manter em "seu lugar", isto é, no lugar de vassalagem que escolheu para eles, mulher e negro, Simone de Beauvoir, despojada de qualquer preconceito, elaborou um dos mais lúcidos e interessantes estudos sobre a condição feminina. Para ela a opressão se expressa nos elogios às virtudes do bom negro, de alma inconsciente, infantil e alegre, do negro resignado, como na louvação da mulher realmente mulher, isto é, frívola, pueril, irresponsável, submetida ao homem.

Todavia, não esquece Simone de Beauvoir que a mulher é escrava de sua própria situação: não tem passado, não tem história, nem religião própria. Um negro fanático pode desejar uma humanidade inteiramente negra, destruindo o resto com uma explosão atômica. Mas a mulher mesmo em sonho não pode exterminar os homens. O laço que a une a seus opressores não é comparável a nenhum outro. A divisão dos sexos é, com efeito, um dado biológico e não um momento da história humana.

Assim, à luz da moral existencialista, da luta pela liberdade individual, Simone de Beauvoir, em O Segundo Sexo, agora em 4.a edição no Brasil, considera os meios de um ser humano se realizar dentro da condição feminina. Revela os caminhos que lhe são abertos, a independência, a superação das circunstâncias que restringem a sua liberdade.


4.a EDIÇÃO - 1970
Tradução
SÉRGIO MILLIET
Capa
FERNANDO LEMOS
DIFUSÃO EUROPÉIA DO LIVRO
Título do original:
LE DEUXIÊME SEXE
LES FAITS ET LES MYTHES
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Segundo Sexo é um livro escrito por Simone de Beauvoir, publicado em 1949 e uma das obras mais celebradas e importantes para o movimento feminista. O pensamento de Beauvoir analisa a situação da mulher na sociedade.

No Brasil, foi publicado em dois volumes. “Fatos e mitos” é o volume 1, e faz uma reflexão sobre mitos e fatos que condicionam a situação da mulher na sociedade. “A experiência vivida” é o volume 2, e analisa a condição feminina nas esferas sexual, psicológica, social e política.

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Leia também:

O Segundo Sexo - 2 Fatos e Mitos: De onde vem essa submissão na mulher?

O Segundo Sexo - 4 Fatos e Mitos: esse estado de coisas deve perpetuar-se?




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