Paulo Freire
“educação como prática da liberdade”:
alfabetizar é conscientizar
1. Justificativa da «pedagogia do oprimido»
continuando...
No momento, porém, em que se comece a autêntica luta para criar a situação que nascerá da superação da velha, já se está lutando pelo Ser Mais. E, se a situação opressora gera uma totalidade desumanizada e desumanizante, que atinge aos que oprimem e aos oprimidos, não vai ceder, como já afirmamos, aos primeiros, que se encontram desumanizados pelo só motivo de oprimir, mas aos segundos, gerar de seu ser menos a busca do ser mais de todos.
Os oprimidos, contudo, acomodados e adaptados, “imersos” na própria engrenagem da estrutura dominadora, temem a liberdade, enquanto não se sentem capazes de correr o risco de assumi-la. E a temem, também, na medida em que, lutar por ela, significa uma ameaça, não só aos que a usam para oprimir, como seus “proprietários” exclusivos, mas aos companheiros oprimidos, que se assustam com maiores repressões.
Quando descobrem em si o anseio por libertar-se, percebem que este anseio somente se faz concretude na concretude de outros anseios.
Enquanto tocados pelo medo da liberdade, se negam a apelar a outros e a escutar o apelo que se lhes faça ou que se tenham feito a si mesmos, preferindo a gregarização à convivência autêntica. Preferindo a adaptação em que sua não liberdade os mantém à comunhão criadora, a que a liberdade leva, até mesmo quando ainda somente buscada.
Sofrem uma dualidade que se instala na “interioridade” do seu ser. Descobrem que, não sendo livres, não chegam a ser autenticamente. Querem ser, mas temem ser. São eles e ao mesmo tempo são o outro introjetado neles, como consciência opressora. Sua luta se trava entre serem eles mesmos ou serem duplos. Entre expulsarem ou não ao opressor de “dentro” de si. Entre se desalienarem ou se manterem alienados. Entre seguirem prescrições ou terem opções. Entre serem espectadores ou atores. Entre atuarem ou terem a ilusão de que atuam, na atuação dos opressores. Entre dizerem a palavra ou não terem voz, castrados no seu poder de criar e recriar, no seu poder de transforma r o mundo.
Este é o trágico dilema dos oprimidos, que a sua pedagogia tem de enfrentar.
A libertação, por isto, é um parto. E um parto doloroso. O homem que nasce deste parto é um homem novo que só é viável na e pela, superação da contradição opressores-oprimidos, que é a libertação de todos.
A superação da contradição é o parto que traz ao mundo este homem novo não mais opressor; não mais oprimido, mas homem libertando-se.
Esta superação não pode dar- se, porém, em termos puramente idealistas. Se se faz indispensável aos oprimidas, para a luta por sua libertação, que a realidade concreta de opressão já não seja para eles uma espécie de “mundo fechado” (em que se gera o seu medo da liberdade) do qual não pudessem sair, mas uma situação que apenas os limita e que eles podem transformar, é fundamental, então, que, ao reconhecerem o limite que a realidade opressora lhes impõe, tenham, neste reconhecimento, o motor de sua ação libertadora.
Vale dizer pois, que reconhecer-se limitadas pela situação concreta de opressão, de que o falso sujeito, o falso “ser para si”, é o opressor, não significa ainda a sua libertação. Como contradição do opressor, que tem neles a sua verdade, como disse Hegel (1), somente superam a contradição em que se acham, quando o reconhecer- se oprimidos os engaja na luta por libertar- se.
Não basta saber-se numa relação dialética com o opressor – seu contrário antagônico – descobrindo, por exemplo, que sem eles o opressor não existiria, (Hegel) para estarem de fato libertados. É preciso, enfatizemos, que se entreguem à práxis libertadora.
O mesmo se pode dizer ou afirmar com relação ao opressor, tomado individualmente, como pessoa. Descobrir-se na posição de opressor, mesmo que sofra por este fato, não é ainda solidarizar-se com os oprimidos. Solidarizar-se com estes é algo mais que prestar assistência a trinta ou a cem, mantendo- os atados, contudo, à mesma posição de dependência. Solidarizar-se não é ter a consciência de que explora e “racionalizar” sua culpa paternalistamente. A solidariedade, exigindo de quem se solidariza, que “assuma” a situação de com quem se solidarizou, é uma atitude radical.
Se o que caracteriza os oprimidos, como “consciência servil” em relação à consciência do senhor, é fazer-se quase “coisa” e transformar-se, como salienta Hegel” (2), em “consciência para outro”, a solidariedade verdadeira com eles está em com eles lutar para a transformação da realidade objetiva que os faz ser este "ser para outro”.
O opressor só se solidariza com os oprimidos quando o seu gesto deixa de ser um gesto piegas e sentimental, de caráter individual, e passa a ser um ato de amor àqueles. Quando, para ele, os oprimidos deixam de ser uma designação abstrata e passam a ser os homens concretos, injustiçados e roubados. Roubados na sua palavra, por isto no seu trabalho comprado, que significa a sua pessoa vendida. Só na plenitude deste ato de amar, na sua existenciação, na sua práxis, se constitui a solidariedade verdadeira. Dizer que es homens são pessoas e, como pessoas, são livres, e nada concretamente fazer para que esta afirmação se objetive, é uma farsa.
Da mesma forma como é, em uma situação concreta – a da opressão – que se instaura a contradição opressor-oprimidos, a superação desta contradição só se pode verificar objetivamente também.
Dai, esta exigência radical, tanto para o opressor que se descobre opressor; quanto para os oprimidos que, reconhecendo -se contradição daquele, desvelam o mundo da opressão e percebem os mitos que o alimentam – a radical exigência da transformação da situação concreta que gera a opressão.
Parece- nos muito claro, não apenas neste, mas noutros momentos do ensaio que, ao apresentarmos esta radical exigência – a da transformação objetiva da situação opressora – combatendo um imobilismo subjetivista que transformasse o ter consciência da opressão numa espécie de espera paciente de que um dia a opressão desapareceria por si mesma, não estamos negando o papel da subjetividade na luta pela modificação das estruturas.
Não se pode pensar em objetividade sem subjetividade. Não há uma sem a outra, que não podem ser dicotomizadas.
A objetividade dicotomizada da subjetividade, a negação desta na análise da realidade ou na ação sobre ela, é objetivismo. Da mesma forma, a negação da objetividade, na análise como na ação, conduzindo ao subjetivismo que se alonga em posições solipsistas, nega a ação mesma, por negar a realidade objetiva, desde que esta passa a ser criação da consciência. Nem objetivismo, nem subjetivismo ou psicologismo, mas subjetividade e objetividade em permanente dialeticidade.
Confundir subjetividade com subjetivismo, com psicologismo, e negar- lhe a importância que tem no processo de transformação do mundo, da história, é cair num simplismo ingênuo. É admitir o impossível: um mundo sem homens, tal qual a outra ingenuidade, a do subjetivismo, que implica em homens sem mundo.
Não há um sem os outros, mas ambos em permanente integração.
Em Marx, como em nenhum pensador crítico, realista, jamais se encontrará esta dicotomia. O que Marx criticou e, cientificamente destruiu, não foi a subjetividade, mas o subjetivismo, o psicologismo.
A realidade social, objetiva, que não existe por acaso, mas como produto da ação dos homens, também não se transforma por acaso. Se os homens são os produtores desta realidade e se esta, na “invasão da práxis”, se volta sobre eles e os condiciona, transformar a realidade opressora é tarefa histórica, é tarefa dos homens.
Ao fazer-se opressora, a realidade implica na existência dos que oprimem e dos que são oprimidos. Estes, a quem cabe realmente lutar por sua libertação juntamente com os que com eles em verdade se solidarizam, precisam ganhar a consciência crítica da opressão, na práxis desta busca.
Este é um dos problemas mais graves que se põem à libertação. É que a realidade opressora, ao constituir- se como um quase mecanismo de absorção dos que nela se encontram, funciona como uma força de imersão das consciências (3).
Neste sentido, em si mesma, esta realidade é funcionalmente domesticadora. Libertar-se de sua força exige, indiscutivelmente, a emersão dela, a volta sobre ela. Por isto é que, só através da práxis autêntica, que não sendo “blablablá, nem ativismo, mas ação e reflexão, é possível fazê -lo.
“Hay que hacer la opresión real todavia más opresiva añadiendo a aquella la consciencia de la opresión, haciendo la infamia todavia más infamante, al pregonarla” (4)
Este fazer “a opressão real ainda mais opressora, acrescentando-lhe a consciência da opressão”, a que Marx se refere, corresponde à relação dialética subjetividade- objetividade. Somente na sua solidariedade, em que o subjetivo constitui com o objetivo uma unidade dialética, é possível a práxis autêntica.
A práxis, porém, é reflexão e ação dos homens sobre o mundo para transformá -lo, Sem ela, é impossível a superação da contradição opressor-oprimidos.
Desta forma, esta superação exige a inserção critica dos oprimidos na realidade opressora, com que, objetivando-a, simultaneamente atuam sobre ela.
Por isto, inserção crítica e ação já são a mesma coisa. Por isto também é que o mero reconhecimento de uma realidade que não leve a esta inserção critica (ação já) não conduz a nenhuma transformação da realidade objetiva, precisamente porque não é reconhecimento verdadeiro.
Este é o caso de um “reconhecimento” de caráter puramente subjetivista, que é antes o resultado da arbitrariedade do subjetivista o qual, fugindo da realidade objetiva, cria uma falsa realidade “em si mesmo”. E não é possível transformar a realidade concreta na realidade imaginária.
É o que ocorre, igualmente, quando a modificação da realidade objetiva fere os interesses individuais ou de classe de quem faz o reconhecimento.
No primeiro caso, não há inserção critica na realidade, porque esta é fictícia; no segundo, porque a inserção contradiria os interesses de classe do reconhecedor.
A tendência deste é, então, comportar-se “neuroticamente”. O fato existe, mas tanto ele quanto o que dele talvez resulte lhe podem ser adversos. Daí que seja necessário, numa indiscutível "racionalização”, não propriamente negá-lo, mas vê- lo de forma diferente. A “racionalização”, como mecanismo de defesa, termina por identificar-se com o subjetivismo. Ao não negar o fato, mas ao distorcer suas verdades, a “racionalização” “retira” as bases objetivas do mesmo. O fato deixa de ser ele concretamente e passa a ser um mito criado para a defesa da classe do que fez o reconhecimento, que, assim, se torna falso. Desta forma, mais uma vez, é impossível a “inserção critica”, que só existe na dialeticidade objetividade - subjetividade.
Ai está uma das razões para a proibição, para as dificuldades – como veremos no último capítulo deste ensaio – no sentido de que as massas populares cheguem a “inserir- se”, criticamente, na realidade. É que o opressor sabe muito bem que esta “inserção critica” das massas oprimidas, na realidade opressora, em nada pode a ele interessar. O que lhe interessa, pelo contrário, é a permanência delas em seu estado de “imersão” em que, de modo geral, se encontram impotentes em face da realidade opressora, como “situação limite”, que lhes parece intransponível.
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Leia também:
Pedagogia do Oprimido - Aprender a dizer a sua palavra (1)
Pedagogia do Oprimido - Aprender a dizer a sua palavra (2)
Pedagogia do Oprimido - Aprender a dizer a sua palavra (3)
Pedagogia do Oprimido - Aprender a dizer a sua palavra (4)
Pedagogia do Oprimido - Aprender a dizer a sua palavra (5)
Pedagogia do Oprimido - Aprender a dizer a sua palavra (6)
Pedagogia do Oprimido - Primeiras Palavras
Pedagogia do Oprimido - 1. Justificativa da «pedagogia do oprimido»
Pedagogia do Oprimido - A Contradição Opressores-Oprimidos. Sua Superação (1)
Pedagogia do Oprimido - A Contradição Opressores-Oprimidos. Sua Superação (3)
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Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ)
1987
1994
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Educação como Prática da Liberdade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1967; e Pedagogia do Oprimido
“educação como prática da liberdade”:
alfabetizar é conscientizar
AOS ESFARRAPADOS DO MUNDO
E AOS QUE NELES SE
DESCOBREM E, ASSIM
DESCOBRINDO-SE, COM ELES
SOFREM, MAS, SOBRETUDO,
COM ELES LUTAM.
E AOS QUE NELES SE
DESCOBREM E, ASSIM
DESCOBRINDO-SE, COM ELES
SOFREM, MAS, SOBRETUDO,
COM ELES LUTAM.
1. Justificativa da «pedagogia do oprimido»
A CONTRADIÇÃO OPRESSORES- OPRIMIDOS. SUA SUPERAÇÃO
continuando...
No momento, porém, em que se comece a autêntica luta para criar a situação que nascerá da superação da velha, já se está lutando pelo Ser Mais. E, se a situação opressora gera uma totalidade desumanizada e desumanizante, que atinge aos que oprimem e aos oprimidos, não vai ceder, como já afirmamos, aos primeiros, que se encontram desumanizados pelo só motivo de oprimir, mas aos segundos, gerar de seu ser menos a busca do ser mais de todos.
Os oprimidos, contudo, acomodados e adaptados, “imersos” na própria engrenagem da estrutura dominadora, temem a liberdade, enquanto não se sentem capazes de correr o risco de assumi-la. E a temem, também, na medida em que, lutar por ela, significa uma ameaça, não só aos que a usam para oprimir, como seus “proprietários” exclusivos, mas aos companheiros oprimidos, que se assustam com maiores repressões.
Quando descobrem em si o anseio por libertar-se, percebem que este anseio somente se faz concretude na concretude de outros anseios.
Enquanto tocados pelo medo da liberdade, se negam a apelar a outros e a escutar o apelo que se lhes faça ou que se tenham feito a si mesmos, preferindo a gregarização à convivência autêntica. Preferindo a adaptação em que sua não liberdade os mantém à comunhão criadora, a que a liberdade leva, até mesmo quando ainda somente buscada.
Sofrem uma dualidade que se instala na “interioridade” do seu ser. Descobrem que, não sendo livres, não chegam a ser autenticamente. Querem ser, mas temem ser. São eles e ao mesmo tempo são o outro introjetado neles, como consciência opressora. Sua luta se trava entre serem eles mesmos ou serem duplos. Entre expulsarem ou não ao opressor de “dentro” de si. Entre se desalienarem ou se manterem alienados. Entre seguirem prescrições ou terem opções. Entre serem espectadores ou atores. Entre atuarem ou terem a ilusão de que atuam, na atuação dos opressores. Entre dizerem a palavra ou não terem voz, castrados no seu poder de criar e recriar, no seu poder de transforma r o mundo.
Este é o trágico dilema dos oprimidos, que a sua pedagogia tem de enfrentar.
A libertação, por isto, é um parto. E um parto doloroso. O homem que nasce deste parto é um homem novo que só é viável na e pela, superação da contradição opressores-oprimidos, que é a libertação de todos.
A superação da contradição é o parto que traz ao mundo este homem novo não mais opressor; não mais oprimido, mas homem libertando-se.
Esta superação não pode dar- se, porém, em termos puramente idealistas. Se se faz indispensável aos oprimidas, para a luta por sua libertação, que a realidade concreta de opressão já não seja para eles uma espécie de “mundo fechado” (em que se gera o seu medo da liberdade) do qual não pudessem sair, mas uma situação que apenas os limita e que eles podem transformar, é fundamental, então, que, ao reconhecerem o limite que a realidade opressora lhes impõe, tenham, neste reconhecimento, o motor de sua ação libertadora.
Vale dizer pois, que reconhecer-se limitadas pela situação concreta de opressão, de que o falso sujeito, o falso “ser para si”, é o opressor, não significa ainda a sua libertação. Como contradição do opressor, que tem neles a sua verdade, como disse Hegel (1), somente superam a contradição em que se acham, quando o reconhecer- se oprimidos os engaja na luta por libertar- se.
(1) "The truth of the independent consciousness is (accordingly) the consciousness of the bondsman”. Hegel, op. cit. , p. 237.
Não basta saber-se numa relação dialética com o opressor – seu contrário antagônico – descobrindo, por exemplo, que sem eles o opressor não existiria, (Hegel) para estarem de fato libertados. É preciso, enfatizemos, que se entreguem à práxis libertadora.
O mesmo se pode dizer ou afirmar com relação ao opressor, tomado individualmente, como pessoa. Descobrir-se na posição de opressor, mesmo que sofra por este fato, não é ainda solidarizar-se com os oprimidos. Solidarizar-se com estes é algo mais que prestar assistência a trinta ou a cem, mantendo- os atados, contudo, à mesma posição de dependência. Solidarizar-se não é ter a consciência de que explora e “racionalizar” sua culpa paternalistamente. A solidariedade, exigindo de quem se solidariza, que “assuma” a situação de com quem se solidarizou, é uma atitude radical.
Se o que caracteriza os oprimidos, como “consciência servil” em relação à consciência do senhor, é fazer-se quase “coisa” e transformar-se, como salienta Hegel” (2), em “consciência para outro”, a solidariedade verdadeira com eles está em com eles lutar para a transformação da realidade objetiva que os faz ser este "ser para outro”.
(2) Referindo-se à consciência senhorial e à consciência servil, diz Hegel: “the one is independent, and its essential nature is to be for itself; the other is dependent and its essence is life or existence for another. The former is the Master, or Lord, the latter the Bondsman. Hegel, op. cit , p. 234.
O opressor só se solidariza com os oprimidos quando o seu gesto deixa de ser um gesto piegas e sentimental, de caráter individual, e passa a ser um ato de amor àqueles. Quando, para ele, os oprimidos deixam de ser uma designação abstrata e passam a ser os homens concretos, injustiçados e roubados. Roubados na sua palavra, por isto no seu trabalho comprado, que significa a sua pessoa vendida. Só na plenitude deste ato de amar, na sua existenciação, na sua práxis, se constitui a solidariedade verdadeira. Dizer que es homens são pessoas e, como pessoas, são livres, e nada concretamente fazer para que esta afirmação se objetive, é uma farsa.
Da mesma forma como é, em uma situação concreta – a da opressão – que se instaura a contradição opressor-oprimidos, a superação desta contradição só se pode verificar objetivamente também.
Dai, esta exigência radical, tanto para o opressor que se descobre opressor; quanto para os oprimidos que, reconhecendo -se contradição daquele, desvelam o mundo da opressão e percebem os mitos que o alimentam – a radical exigência da transformação da situação concreta que gera a opressão.
Parece- nos muito claro, não apenas neste, mas noutros momentos do ensaio que, ao apresentarmos esta radical exigência – a da transformação objetiva da situação opressora – combatendo um imobilismo subjetivista que transformasse o ter consciência da opressão numa espécie de espera paciente de que um dia a opressão desapareceria por si mesma, não estamos negando o papel da subjetividade na luta pela modificação das estruturas.
Não se pode pensar em objetividade sem subjetividade. Não há uma sem a outra, que não podem ser dicotomizadas.
A objetividade dicotomizada da subjetividade, a negação desta na análise da realidade ou na ação sobre ela, é objetivismo. Da mesma forma, a negação da objetividade, na análise como na ação, conduzindo ao subjetivismo que se alonga em posições solipsistas, nega a ação mesma, por negar a realidade objetiva, desde que esta passa a ser criação da consciência. Nem objetivismo, nem subjetivismo ou psicologismo, mas subjetividade e objetividade em permanente dialeticidade.
Confundir subjetividade com subjetivismo, com psicologismo, e negar- lhe a importância que tem no processo de transformação do mundo, da história, é cair num simplismo ingênuo. É admitir o impossível: um mundo sem homens, tal qual a outra ingenuidade, a do subjetivismo, que implica em homens sem mundo.
Não há um sem os outros, mas ambos em permanente integração.
Em Marx, como em nenhum pensador crítico, realista, jamais se encontrará esta dicotomia. O que Marx criticou e, cientificamente destruiu, não foi a subjetividade, mas o subjetivismo, o psicologismo.
A realidade social, objetiva, que não existe por acaso, mas como produto da ação dos homens, também não se transforma por acaso. Se os homens são os produtores desta realidade e se esta, na “invasão da práxis”, se volta sobre eles e os condiciona, transformar a realidade opressora é tarefa histórica, é tarefa dos homens.
Ao fazer-se opressora, a realidade implica na existência dos que oprimem e dos que são oprimidos. Estes, a quem cabe realmente lutar por sua libertação juntamente com os que com eles em verdade se solidarizam, precisam ganhar a consciência crítica da opressão, na práxis desta busca.
Este é um dos problemas mais graves que se põem à libertação. É que a realidade opressora, ao constituir- se como um quase mecanismo de absorção dos que nela se encontram, funciona como uma força de imersão das consciências (3).
(3) “A aço libertadora implica num momento necessariamente consciente e volitivo, configurando-se como a prolongação e a inserção continuadas deste na história. A aço dominadora, entretanto, não supõe esta dimensão com a mesma necessariedade, pois a própria funcionalidade mecânica e inconsciente da estrutura é mantenedora de si mesma e, portanto, da dominação”. De um trabalho inédito de José Luiz Fiori, a quem o autor agradece a possibilidade da citação.
Neste sentido, em si mesma, esta realidade é funcionalmente domesticadora. Libertar-se de sua força exige, indiscutivelmente, a emersão dela, a volta sobre ela. Por isto é que, só através da práxis autêntica, que não sendo “blablablá, nem ativismo, mas ação e reflexão, é possível fazê -lo.
“Hay que hacer la opresión real todavia más opresiva añadiendo a aquella la consciencia de la opresión, haciendo la infamia todavia más infamante, al pregonarla” (4)
(4) “Marx/Engels, La Sagrada Família y Otros Escritos. México, Grijalbo, 1962, p. 6. (O grifo é nosso.)
Este fazer “a opressão real ainda mais opressora, acrescentando-lhe a consciência da opressão”, a que Marx se refere, corresponde à relação dialética subjetividade- objetividade. Somente na sua solidariedade, em que o subjetivo constitui com o objetivo uma unidade dialética, é possível a práxis autêntica.
A práxis, porém, é reflexão e ação dos homens sobre o mundo para transformá -lo, Sem ela, é impossível a superação da contradição opressor-oprimidos.
Desta forma, esta superação exige a inserção critica dos oprimidos na realidade opressora, com que, objetivando-a, simultaneamente atuam sobre ela.
Por isto, inserção crítica e ação já são a mesma coisa. Por isto também é que o mero reconhecimento de uma realidade que não leve a esta inserção critica (ação já) não conduz a nenhuma transformação da realidade objetiva, precisamente porque não é reconhecimento verdadeiro.
Este é o caso de um “reconhecimento” de caráter puramente subjetivista, que é antes o resultado da arbitrariedade do subjetivista o qual, fugindo da realidade objetiva, cria uma falsa realidade “em si mesmo”. E não é possível transformar a realidade concreta na realidade imaginária.
É o que ocorre, igualmente, quando a modificação da realidade objetiva fere os interesses individuais ou de classe de quem faz o reconhecimento.
No primeiro caso, não há inserção critica na realidade, porque esta é fictícia; no segundo, porque a inserção contradiria os interesses de classe do reconhecedor.
A tendência deste é, então, comportar-se “neuroticamente”. O fato existe, mas tanto ele quanto o que dele talvez resulte lhe podem ser adversos. Daí que seja necessário, numa indiscutível "racionalização”, não propriamente negá-lo, mas vê- lo de forma diferente. A “racionalização”, como mecanismo de defesa, termina por identificar-se com o subjetivismo. Ao não negar o fato, mas ao distorcer suas verdades, a “racionalização” “retira” as bases objetivas do mesmo. O fato deixa de ser ele concretamente e passa a ser um mito criado para a defesa da classe do que fez o reconhecimento, que, assim, se torna falso. Desta forma, mais uma vez, é impossível a “inserção critica”, que só existe na dialeticidade objetividade - subjetividade.
Ai está uma das razões para a proibição, para as dificuldades – como veremos no último capítulo deste ensaio – no sentido de que as massas populares cheguem a “inserir- se”, criticamente, na realidade. É que o opressor sabe muito bem que esta “inserção critica” das massas oprimidas, na realidade opressora, em nada pode a ele interessar. O que lhe interessa, pelo contrário, é a permanência delas em seu estado de “imersão” em que, de modo geral, se encontram impotentes em face da realidade opressora, como “situação limite”, que lhes parece intransponível.
continua...
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Leia também:
Pedagogia do Oprimido - Aprender a dizer a sua palavra (1)
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Pedagogia do Oprimido - Aprender a dizer a sua palavra (4)
Pedagogia do Oprimido - Aprender a dizer a sua palavra (5)
Pedagogia do Oprimido - Aprender a dizer a sua palavra (6)
Pedagogia do Oprimido - Primeiras Palavras
Pedagogia do Oprimido - 1. Justificativa da «pedagogia do oprimido»
Pedagogia do Oprimido - A Contradição Opressores-Oprimidos. Sua Superação (1)
Pedagogia do Oprimido - A Contradição Opressores-Oprimidos. Sua Superação (3)
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© Paulo Freire, 1970
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Capa
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Isabel Carballo
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Revisão
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Maria Luiza Simões e Jonas Pereira dos Santos
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(Preparaço pelo Centro de Catalog aço -na-fonte do
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F934p Pedagogia do oprimido, 17ª. ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra,
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(O mundo, hoje, v.21)
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