Machado de Assis
CAPÍTULO LXXII / O bibliômano
Talvez suprima o capítulo anterior; entre outros motivos, há aí, nas últimas linhas, uma frase muito parecida com despropósito, e eu não quero dar pasto à crítica do futuro.
Olhai: daqui a setenta anos, um sujeito magro, amarelo, grisalho, que não ama nenhuma outra coisa além dos livros, inclina-se sobre a página anterior, a ver se lhe descobre o despropósito; lê, relê, treslê, desengonça as palavras, saca uma sílaba, depois outra, mais outra, e as restantes, examina-as por dentro e por fora, por todos os lados, contra a luz, espaneja-as, esfrega-as no joelho, lava-as, e nada; não acha o despropósito.
É um bibliômano. Não conhece o autor; este nome de Brás Cubas não vem nos seus dicionários biográficos. Achou o volume, — por acaso, no pardieiro de um alfarrabista. Comprou-o por duzentos réis. Indagou, pesquisou, esgaravatou, e veio a descobrir que era um exemplar único... Único! Vós, que não só amais os livros, senão que padeceis a mania deles, vós sabeis mui bem o valor desta palavra, e adivinhais, portanto, as delícias de meu bibliômano. Ele rejeitaria a coroa das Índias, o papado, todos os museus da Itália e da Holanda, se os houvesse de trocar por esse único exemplar; e não porque seja o das minhas Memórias, faria a mesma coisa com o Almanac de Laemmert, uma vez que fosse único.
O pior é o despropósito. Lá continua o homem inclinado sobre a página, com uma lente no olho direito, todo entregue à nobre e áspera função de decifrar o despropósito. Já prometeu a si mesmo escrever uma breve memória, na qual relate o achado do livro e a descoberta da sublimidade, se a houver por baixo daquela frase obscura. Ao cabo, não descobre nada e contenta-se com a posse. Fecha o livro, mira-o, remira-o, chega-se à janela e mostra-o ao sol. Um exemplar único! Nesse momento passa-lhe por baixo da janela um César ou um Cromwell, a caminho do poder. Ele dá de ombros, fecha a janela, estira-se na rede e folheia o livro devagar, com amor, aos goles... Um exemplar único!
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Texto-fonte:
Obra Completa, Machado de Assis,
Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1994.
Publicado originalmente em folhetins, a partir de março de 1880, na Revista Brasileira.
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Leia também:
Memórias Póstumas de Brás Cubas: Capítulo LX / O abraço
Memórias Póstumas de Brás Cubas: Capítulo LXI / Um Projeto
Memórias Póstumas de Brás Cubas: Capítulo LXII / O travesseiro
Memórias Póstumas de Brás Cubas: Capítulo LXIII / Fujamos!
Memórias Póstumas de Brás Cubas: Capítulo: LXIV / A transação
Memórias Póstumas de Brás Cubas: Capítulo LXV / Olheiros e Escutas
Memórias Póstumas de Brás Cubas: Capítulo LXVI / As pernas
Memórias Póstumas de Brás Cubas: Capítulo LXVII / A casinha
Memórias Póstumas de Brás Cubas: Capítulo LXVIII / O vergalho
Memórias Póstumas de Brás Cubas: Capítulo LXIX / Um grão de sandice
Memórias Póstumas de Brás Cubas: Capítulo LXX / Dona Plácida
Memórias Póstumas de Brás Cubas: Capítulo LXXI / O senão do livro
Memórias Póstumas de Brás Cubas: Capítulo LXXIII / O luncheon
Memórias Póstumas de Brás Cubas: Prólogo e AO LEITOR
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Texto-fonte:
Obra Completa, Machado de Assis,
Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1994.
Publicado originalmente em folhetins, a partir de março de 1880, na Revista Brasileira.
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