segunda-feira, 15 de julho de 2019

Edgar Allan Poe - Contos: Aventuras de Arthur Gordon Pym: 3 — «Tigre» Enraivecido (1)

Edgar Allan Poe - Contos




Aventuras de Arthur Gordon Pym 
Título original: Narrative of A. G. Pym 
Publicado em 1837




3 — «Tigre» Enraivecido (1)




continuando...


Pensei imediatamente que aquele papel era uma mensagem de Augusto e que, impedido de me visitar na minha prisão devido a qualquer acidente inconcebível, tinha utilizado aquele meio para me pôr ao corrente do verdadeiro estado de coisas. Palpitando de impaciência, comecei de novo a procurar os fósforos e as velas. Lembrava-me vagamente de os ter guardado em qualquer parte, antes de adormecer, e tinha a certeza que antes da minha última expedição ao alçapão, era perfeitamente capaz de me lembrar do local preciso onde os tinha deixado. Mas agora era em vão que me esforçava por me lembrar e perdi uma boa hora numa procura inútil e irritante destes malditos objetas; estou certo que nunca me senti num estado de tão dolorosa ansiedade e incerteza. Por fim, como tateava por toda a parte, com a cabeça quase junto ao chão, perto da abertura da caixa e um pouco para fora, distingui uma espécie de luz na direção do poste. Muito espantado, esforcei-me por chegar a esta luz que parecia estar apenas a alguns pés de distância. Assim que comecei a dirigir-me para a luz, perdi-a completamente de vista, e, para a ver de novo, fui obrigado a tatear ao longo da caixa, até reencontrar a minha posição inicial. Então, movendo cuidadosamente a cabeça de um lado para o outro, descobri que avançando devagar, com a maior precaução, no sentido oposto ao que tinha seguido primeiro, podia chegar junto da luz sem a perder de vista. Quando, finalmente, lá cheguei, depois de ter seguido um caminho interrompido por numerosos desvios, descobri que a luz provinha de alguns fragmentos dos meus fósforos espalhados num barril vazio e tombado para um lado. Surpreendi-me muito de os encontrar em semelhante local, quando a minha mão tocou em dois ou três pedaços de cera que, sem dúvida, tinham sido mastigados pelo cão. Conclui imediatamente que ele tinha devorado toda a minha provisão de velas e senti-me desesperado por não ser possível ler o bilhete de Augusto.

Os restos de cera estavam tão bem misturados com o lixo existente no barril, que desisti de os retirar e deixei-os onde estavam. Quanto aos fósforos, dos quais ainda restavam um ou dois bocados, levei-os a muito custo para a caixa, onde Tigre permanecera durante todo este tempo.

Na verdade, não sabia o que fazer a seguir. O porão estava tão escuro que nem sequer conseguia ver a minha mão, mesmo aproximando-a do rosto. Quanto à tira branca de papel, mal a distinguia e não era olhando-a diretamente, mas sim voltando para ela a parte exterior da retina, isto é, observando-o um pouco de viés, tornando assim os meus olhos mais sensíveis. Podem, portanto, imaginar como era negra a noite da minha prisão, e o bilhete do meu amigo, se na verdade era um bilhete dele, parecia servir apenas para aumentar a minha perturbação, atormentando sem qualquer proveito o meu pobre espírito já tão agitado e enfraquecido. Em vão, o meu cérebro inventava os mais absurdos expedientes para conseguir luz, expedientes análogos aos que um homem mergulhado no sono trémulo do ópio, teria imaginado para um fim idêntico; cada um deles parecia ao sonhador, alternadamente, como a mais razoável e a mais absurda das invenções, conforme as luzes da razão ou as da imaginação dominam o seu espírito vacilante. Por fim, tive uma ideia, que me pareceu racional e só me admirou de uma coisa: não ter logo pensado nela. Coloquei o pedaço de papel sobre um livro e, reunindo os bocados de fósforo que tinha trazido do barril, meti-os em cima do papel; depois, com a palma da mão, esfreguei-os com força. Espalhou-se imediatamente uma luz clara por toda a superfície e, tenho a certeza, que se houvesse alguma coisa escrita no papel, não teria a menor dificuldade em lê-la. Mas não havia nem sequer uma sílaba, nada a não ser uma triste brancura; a luz apagou-se alguns segundos depois e eu senti apagar-me com ela. 

Já afirmei que, durante um período precedente, o meu espírito estivera mergulhado num estado próximo da imbecilidade. Houve, é verdade, alguns intervalos de perfeita lucidez e mesmo, uma vez ou outra, de energia, mas foram pouco numerosos. Não se devem esquecer que eu respirava há vários dias a atmosfera quase pestilenta de um acanhado esconderijo num baleeiro e que, durante uma boa parte do tempo, apenas dispusera de uma quantidade de água insuficiente. Nas últimas catorze ou quinze horas, estivera totalmente privado dela, assim como de sono. Alimentos salgados, de natureza irritante, tinham sido a minha principal alimentação e, depois da perda da perna de carneiro, o meu único sustento, à exceção dos biscoitos e mesmo estes eram impossíveis de digerir, pois estavam demasiado secos e duros para a minha garganta inchada e seca. Tinha então uma febre intensa e sentia-me muito mal. Isso explicará como se passaram longas e angustiantes horas de abatimento, depois da aventura dos fósforos, antes de me lembrar que só tinha visto um dos lados do papel. Não tentarei descrever todas as minhas sensações de raiva (porque julgo que a cólera dominava todas as outras), quando este incrível esquecimento se concretizou no meu espírito. Este descuido não teria sido tão grave se a minha loucura e petulância não o tivessem tornado quase irremediável, pois no meu desespero por não encontrar nada escrito no papel, tinha-o rasgado e deitado fora os pedaços, sabe-se lá para onde. 

Consegui resolver a parte mais difícil do problema graças à sagacidade do Tigre. Tendo encontrado, depois de muito procurar, um pedaço do papel, coloquei-o debaixo do focinho do cão, esforçando-me por lhe explicar que ele devia trazer o resto. Para meu grande espanto, pois nunca lhe tinha ensinado nenhum dos truques habituais que dão fama aos seus semelhantes, pareceu compreender imediatamente a minha ideia e, farejando durante um bocado, encontrou um pedaço bastante grande. Entregou-mo, fez uma pequena pausa e, esfregando o focinho nas minhas mãos, parecia esperar que eu aprovasse o que tinha feito. Fiz-lhe uma festa na cabeça e ele recomeçou imediatamente a sua tarefa. Passaram-se alguns minutos, antes que regressasse, mas, por fim, trouxe-me uma larga tira que completava o papel perdido; segundo parecia, apenas o tinha rasgado em três bocados. Felizmente não me foi difícil encontrar o pouco que restava dos fósforos, guiado pela débil luz que um ou dois fragmentos emitiam. As minhas desgraças tinham-se ensinado a necessidade de ser prudente e, por isso, refleti um pouco sobre o que ia fazer. Era possível que estivesse alguma coisa escrita do lado do papel que eu tinha examinado, pensava eu, mas qual seria esse lado? A junção dos pedaços não me deu qualquer informação a este respeito e garantia-me apenas que encontraria todas as palavras do mesmo lado (se acaso houvesse alguma coisa) e na ordem lógica por que tinham sido escritas. Verificar o ponto em questão era, indubitavelmente, uma coisa da mais absoluta necessidade, porque os fósforos não chegariam para uma terceira tentativa, se, por infelicidade, falhasse a que ia tentar. Tal como fizera antes, coloquei o papel em cima de um livro e sentei-me durante alguns minutos, meditando no problema. Por fim, pensei que era muito possível que o lado escrito estivesse assinalado com asperezas na sua superfície, as quais podiam ser detetadas através de uma verificação cuidadosa. Resolvi fazer a experiência e passei minuciosamente o dedo sobre a face do papel que se me apresentava; não senti nada e voltei o papel reajustando os pedaços. Passava o meu dedo indicador ao longo do papel, com grande precaução, quando descobri um brilho muito fraco, mas visível, que acompanhava o meu dedo. Isto não podia provir das pequenas moléculas de fósforo com que tinha esfregado o papel na minha primeira tentativa. O verso era, portanto, o lado onde tinha sido escrito, se realmente isso fosse verdade. Assim, tornei a virar o papel e meti mãos à obra, como já tinha feito. Esfreguei o fósforo e de novo se fez luz, mas desta vez algumas linhas manuscritas em grandes caracteres, que pareciam traçadas com tinta vermelha, apareceram perfeitamente visíveis. A luz, embora suficientemente brilhante, foi momentânea. No entanto, se eu não estivesse muito agitado, teria tido tempo de decifrar as três frases que se apresentavam a meus olhos, pois vi que eram três. Mas, na ânsia de ler tudo de repente, só consegui reter as sete palavras do fim, que eram: ...sangue; continue escondido, a sua vida depende disso

Se tivesse conseguido apreender todo o conteúdo do bilhete, o sentido completo do aviso que o meu amigo tentara fazer-me, esse aviso ter-me-ia revelado a história de um desastre horrível e indescritível, mas eu não teria, estou firmemente convencido, sentido um décimo do deprimente e indefinível terror que me inspirou aquele meio-aviso recebido desta maneira. E a palavra sangue, essa palavra suprema, rainha das palavras, sempre tão rica de mistério, de sofrimento e de terror, como me pareceu aumentar de significado! Como aquelas duas sílabas vagas, desligadas da série precedente de palavras que as qualificavam e as tornavam distintas, caíram pesadas e geladas nas profundas trevas da minha prisão e nas regiões mais recônditas da minha alma! 

Augusto devia ter boas razões para querer que eu continuasse escondido, e elaborei mil conjeturas sobre o assunto, mas não consegui encontrar nada que me desse uma solução satisfatória do mistério. Quando regressara da minha última viagem ao alçapão e antes do estranho comportamento do Tigre me ter chamado a atenção, tinha decidido fazer-me ouvir, utilizando todos os meios, pelos marinheiros ou, se não o conseguisse, tentar abrir um caminho através dos bailéus do porão. A certeza que eu tinha de ser capaz de realizar completamente uma destas empresas, tinha-me dado a coragem (que de outro modo não teria) para suportar os reveses da minha situação. E eis que as poucas palavras que acabara de ler me destruíam estes dois recursos extremos! Então, pela primeira vez, senti toda a miséria do meu destino. No paroxismo do desespero, atirei-me para o colchão, onde fiquei estendido mais ou menos um dia e uma noite, numa espécie de torpor, intervalado com alguns instantes de lucidez e memória.



continua...


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Edgar Allan Poe (nascido Edgar Poe; Boston, Massachusetts, Estados Unidos, 19 de Janeiro de 1809 — Baltimore, Maryland, Estados Unidos, 7 de Outubro de 1849) foi um autor, poeta, editor e crítico literário estadunidense, integrante do movimento romântico estadunidense. Conhecido por suas histórias que envolvem o mistério e o macabro, Poe foi um dos primeiros escritores americanos de contos e é geralmente considerado o inventor do gênero ficção policial, também recebendo crédito por sua contribuição ao emergente gênero de ficção científica. Ele foi o primeiro escritor americano conhecido por tentar ganhar a vida através da escrita por si só, resultando em uma vida e carreira financeiramente difíceis.

Ele nasceu como Edgar Poe, em Boston, Massachusetts; quando jovem, ficou órfão de mãe, que morreu pouco depois de seu pai abandonar a família. Poe foi acolhido por Francis Allan e o seu marido John Allan, de Richmond, Virginia, mas nunca foi formalmente adotado. Ele frequentou a Universidade da Virgínia por um semestre, passando a maior parte do tempo entre bebidas e mulheres. Nesse período, teve uma séria discussão com seu pai adotivo e fugiu de casa para se alistar nas forças armadas, onde serviu durante dois anos antes de ser dispensado. Depois de falhar como cadete em West Point, deixou a sua família adotiva. Sua carreira começou humildemente com a publicação de uma coleção anônima de poemas, Tamerlane and Other Poems (1827).

Poe mudou seu foco para a prosa e passou os próximos anos trabalhando para revistas e jornais, tornando-se conhecido por seu próprio estilo de crítica literária. Seu trabalho o obrigou a se mudar para diversas cidades, incluindo Baltimore, Filadélfia e Nova Iorque. Em Baltimore, casou-se com Virginia Clemm, sua prima de 13 anos de idade. Em 1845, Poe publicou seu poema The Raven, foi um sucesso instantâneo. Sua esposa morreu de tuberculose dois anos após a publicação. Ele começou a planejar a criação de seu próprio jornal, The Penn (posteriormente renomeado para The Stylus), porém, em 7 de outubro de 1849, aos 40 anos, morreu antes que pudesse ser produzido. A causa de sua morte é desconhecida e foi por diversas vezes atribuída ao álcool, congestão cerebral, cólera, drogas, doenças cardiovasculares, raiva, suicídio, tuberculose entre outros agentes.

Poe e suas obras influenciaram a literatura nos Estados Unidos e ao redor do mundo, bem como em campos especializados, tais como a cosmologia e a criptografia. Poe e seu trabalho aparecem ao longo da cultura popular na literatura, música, filmes e televisão. Várias de suas casas são dedicadas como museus atualmente.


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Edgar Allan Poe

CONTOS

Originalmente publicados entre 1831 e 1849 

Edgar Allan Poe - Contos: A Sombra
Edgar Allan Poe - Contos: Aventuras de Arthur Gordon Pym (Prefácio)
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Edgar Allan Poe - Contos: Aventuras de Arthur Gordon Pym: 2 — O Esconderijo(1)
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