sábado, 13 de julho de 2019

O Segundo Sexo - 47. Fatos e Mitos: Claudel e a serva do Senhor (1)

Simone de Beauvoir



47. Fatos e Mitos






III




CLAUDEL E A SERVA DO SENHOR 





A originalidade do catolicismo de Claudel está num otimismo tão obstinado que o próprio mal retorna ao bem. 

"O mal mesmo 

"Comporta um bem que é preciso não deixar perder-se" (Le Partage de Midi). 

Adotando o ponto de vista que só pode ser o do Criador — desde que o supõem todo-poderoso, onisciente e benevolente — Claudel adere a toda a criação; sem o inferno e o pecado, não haveria nem liberdade nem salvação. Quando fez surgir este mundo do nada, Deus premeditou a queda e a redenção. Aos olhos dos judeus e dos cristãos a desobediência de Eva colocara as mulheres em má situação: sabe-se quanto os Padres da Igreja desprezaram a mulher. Ei-la, ao contrário, justificada, se se admite que serviu assim os desígnios divinos. "A mulher! Esse serviço que outrora, pela desobediência, prestou a Deus no Paraíso terrestre; esse profundo entendimento que se estabeleceu entre Ele e ela; essa carne que pelo erro foi posta à disposição da Redenção!" (Les Aventures de Sophie.) Sem dúvida é ela a fonte do pecado e por ela o homem perdeu o paraíso, mas os pecados dos homens foram resgatados e este é novamente abençoado: 

"Não saímos deste paraíso de delícias em que Deus inicialmente nos colocou" (La Cantate à trois voix). 

"Toda terra é a Terra Prometida" (Conversations dans le Loir-et-Cher). 

Nada do que saiu das mãos de Deus, nada do que é dado poderia ser ruim em si: "É com toda sua obra que oramos a Deus! Nada do que ele fez é vão, nada é estranho à nossa salvação" (Le Soulier de Satin). Mais adiante, nenhuma coisa há que não seja necessária. "Todas as coisas que ele criou juntas se comunicam, todas são, ao mesmo tempo, mutuamente necessárias" (L'Annonce faite à Marte). Assim, a mulher tem seu lugar na harmonia do universo; mas não é um lugar qualquer; há "uma paixão estranha, e escandalosa aos olhos de Lúcifer, que liga o Eterno a essa flor momentânea do Nada" (Les Aventures de Sophie). 

Evidentemente, a mulher pode ser destruidora: Claudel encarou em Lechy, de L'Échange, a mulher má que conduz o homem a sua perda; em Partage de Midi, Ysé devasta a vida dos que caem na armadilha de seu amor. Mas, se não houvesse esse risco de perda, não existiria tampouco salvação. A mulher "é o elemento de risco que, deliberadamente, Ele introduziu no meio de sua prodigiosa construção" (Les Aventures de Sophie). É bom que o homem conheça as tentações da carne. "É esse inimigo, existente dentro de nós, que dá à nossa vida seu elemento dramático, esse sal angustiante. Se nossa alma não fosse tão brutalmente atacada dormiria, e ei-la que salta. .. É a luta o aprendizado da vitória" (L'Oiseau noir dans le Soleil levant). Não é somente pelo caminho do espírito, mas também pelo da carne que o homem é chamado a tomar consciência de sua alma. "E que carne, para falar ao homem, mais poderosa que a da mulher?" (Le Soulier de Satin). Tudo o que a arranca ao sono, à segurança lhe é útil: o amor, qualquer que seja a forma pela qual se apresente, tem essa virtude de surgir em "nosso pequeno mundo pessoal, arranjado pela nossa medíocre razão, como um elemento profundamente perturbador" (Positions et Propositions). Muitas vezes a mulher é apenas uma decepcionante doadora de ilusão:

"Sou a promessa que não pode ser cumprida e minha graça nisso mesmo consiste. 

"Sou a doçura do que é, com a saudade do que não é. Sou a verdade com a fisionomia do erro e quem me ama não se preocupa com deslindar uma da outra" (La Ville). 

Mas a ilusão tem também uma utilidade; é o que o Anjo da Guarda anuncia a Dona Prouhèze: 

"— Mesmo o pecado! O pecado também serve. 

"— Então era bom que ele me amasse?

"— Era bom que lhe ensinasses o desejo. 

"— O desejo de uma ilusão? De uma sombra que lhe escapa para sempre? 

"— O desejo é do que é, a ilusão é do que não é. O desejo através da ilusão. 

"É do que é através do que não é" (Le Soulier de Satin). 

E o que Prouhèze por vontade de Deus foi para Rodrigo é: 

"Uma espada atravessada no coração". 

Mas nas mãos de Deus a mulher não é apenas essa lâmina, essa queimadura; os bens deste mundo não se destinam a ser sempre recusados: são também um alimento; é preciso que o homem os tome consigo e os faça seus. A bem-amada encarnará para ele toda a beleza sensível do universo; será em seus lábios um cântico de adoração. 

"Como sois bela, Violaine, e como é belo este mundo em que estais" (L'Annonce fatie à Marte'). 

"Quem é essa que está em pé à minha frente, mais doce do que o sopro do vento, tal qual a lua através da jovem folhagem?... Ei-la como a abelha nova que abre as asas ainda frescas, como uma grande corça, como uma flor que não sabe ela própria como é bela" (La jeune Filie Violaine). 

"Deixa-me respirar teu odor, que é como o odor da terra quando, brilhante, lavada pela água como um altar, produz as tiôres amarelas e azuis. 

"E como o odor do verão que cheira a palha e a erva, e como o odor do outono... (La Vale). 

Ela resume toda a Natureza: a rosa e o lírio, a estrela, o fruto, o pássaro, o vento, a lua, o sol, o jato de água, "o sereno tumulto do grande porto na luz do meio-dia" (Le Soulier de Satin).  E é muito mais ainda: uma semelhante. 

"Ora, desta vez, eis que tu és, para mim, algo diferente de uma estrela, ponto de luz na areia viva da noite. 

"Alguém humano como eu..." (Le Soulier de Satin). 

"Não estarás mais só, mas em ti e contigo para sempre a devotada. Alguém teu para sempre e que não se retomará jamais, tua mulher" (La Ville). 

"Alguém para escutar o que digo e ter confiança em mim. 

"Um companheiro de voz baixa que nos toma nos braços e assegura-nos que é uma mulher" (Le Pain Dur).

Corpo e alma, é apertando-a contra o coração que o homem encontra suas raízes nesta terra e nela se realiza. 

"Peguei esta mulher e tal é minha medida e minha porção de terra" (La Ville). Ela não é leve de carregar, mas o homem não é feito para a disponibilidade:

"E eis que o homem tolo se sente surpreso com essa pessoa absurda, essa grande coisa pesada e embaraçosa. 

"Tanta roupa, tanto cabelo, que fazer? 

"Ele não quer mais, não pode mais desfazer-se dela" (Le Paiiage de Midi).

É que o fardo é também um tesouro. "Sou um grande tesouro", diz Violaine. 

Reciprocamente, é entregando-se ao homem que a mulher cumpre seu destino terrestre. 

"Pois para que serve ser mulher senão para ser colhida? 

"E esta rosa senão para ser devorada? E ter nascido enfim? 

"Senão para ser de outro e a presa de um poderoso leão?" (La Cantate à trois voix.)

"Que faremos, eu que não posso ser mulher senão entre seus braços e uma taça de vinho em seu coração?" (La Cantate à trois voix.) 

"Mas tu, minha alma, dize: não fui criada em vão e quem se destina a me colher existe!

"Esse coração que me esperava, ah!, que alegria é para mim enchê-lo" (La Cantate a trois voix).

Naturalmente, essa união do homem e da mulher deve ser consumada em presença de Deus; é sagrada e situa-se no eterno; deve ser consentida por um movimento profundo da vontade e não poderá ser rompida por um capricho individual. "O amor, o consentimento que duas pessoas livres dão uma à outra pareceu a Deus coisa tão grande que dele fez um sacramento. Aí como em toda parte o sacramento dá realidade ao que era apenas um supremo desejo do coração" (Positions et Propositions, II).

E mais:

"O casamento não é prazer, c o sacrifício do prazer, é o estudo de duas almas que para sempre, doravante e para um fim fora de si mesmas,

"Terão que se contentar uma com a outra" (Le Soulier de Satiri). 

Com essa união não é somente alegria que o homem e a mulher se darão um ao outro; cada um entrará na posse de seu ser. "Essa alma no interior de minha alma, foi ele quem a soube encontrar!. . . Ele foi quem veio a mim e me estendeu a mão. . . Ele é que era minha vocação! Como dizer ? Ele que era minha origem! Aquele por quem e para quem vim ao mundo" (Le Livre de Tobie et de Sarah).

"Toda uma parte de meu ser que eu pensava não existir, porque estava ocupada alhures e não pensava nela. Ah! Deus, ela existe e vive terrivelmente" (Le Père humilié).

E esse ser surge necessário, justificado para aquele a quem completa. "Nele é que eras necessária", diz o Anjo de Prouhèze. E Rodrigo:

"Pois o que é morrer senão deixar de ser necessário?

"Quando foi que ela pôde passar sem mim? Quando deixarei de ser para ela isso sem o que ela não pode ser ela própria?" (Le Soulier de Satin.)

"Dizem que não há alma que tenha sido feita fora de um intuito e dentro de uma misteriosa relação com outras. 

"Mas ambos somos mais do que isso ainda, existo à proporção que falas; uma mesma coisa respondendo entre duas pessoas. 

"Quando nos preparavam, Órion, penso que sobrava um pouco da substância que fora depositada em vós e eu sou feita do que careceis" (Le Père humilié).

Na maravilhosa necessidade dessa reunião, o paraíso é reencontrado, a morte vencida: 

"Ei-lo refeito por um homem e uma mulher, finalmente, esse ser que existia no Paraíso" (Feuilles de Saints).

"Nunca, senão um pelo outro conseguiremos livrar-nos da morte.

"Como a violeta, se se funde com o laranja, liberta o vermelho puro" (Le Soulier de Saetin). 

Enfim sob a figura do outro é que cada um ascende ao Outro em sua plenitude, isto é, a Deus.

"O que damos um ao outro é Deus sob formas diferentes" (Feuilles de Saints). 

"Se não o tivesses visto primeiramente em meus olhos, terias tido tal desejo do céu?" (Feuilles de Saints). 

"Ah! Deixai de ser uma mulher e deixai-me ver em vosso rosto, enfim, esse Deus que sois impotente para conter" (Le Soulier de Satin). 

"O amor de Deus, como o das criaturas, apela em nós para a mesma faculdade, para esse sentimento de que em nós sozinhos não somos completos e que o Bem supremo em que nos realizamos é, fora de nós, alguém" (Positions et Propositions, II). Assim, cada um encontra no outro o sentido da vida terrestre e também o testemunho irrefutável da insuficiência dessa vida:

"Se não lhe posso dar o céu, posso ao menos arrancá-lo da terra. Eu só posso oferecer-lhe uma insuficiência na medida de seu desejo" (Le Soulier de Satin).

"O que te pedia, o que queria dar-te, não é compatível com o tempo e sim com a eternidade" (Le Père humiliè).

Entretanto, os papéis da mulher e do homem não são exatamente simétricos. No plano social há uma evidente primazia do homem. Claudel acredita nas hierarquias e, entre outras, na da família: o marido é o chefe. Ane Vercors reina no lar. Don Peiagio considera-se o jardineiro a quem se confiou o cuidado dessa planta frágil, Dona Prouhèze; dá-lhe uma missão que ela não pensa em recusar. O simples fato de ser homem confere-lhe um privilégio. "Quem sou eu, pobre mulher, para me comparar ao homem de minha raça?" indaga Sygne, de L'Otage. O homem é que ara os campos, constrói as catedrais, combate com a espada, explora o mundo, conquista terras, age, empreende. É por ele que se realizam os desígnios de Deus na terra. A mulher não aparece senão como uma auxiliar. Ela é a que fica no lugar, a que espera, a que mantém:

"Sou a que fica e que sempre está presente", diz Sygne. 

Ela defende a herança de Coüfontaine, mantém as contas em dia enquanto ele combate ao longe pela Causa. A mulher traz ao lutador o socorro da esperança: 

"Trago a esperança irresistível" (Le Ville). E o da piedade:

"Tive piedade dele. Pois para onde se voltaria ele, em busca da mãe, senão para a mulher humilhada

"Num espírito de confidencia e pejo" (L'Êchange

E Tête d'Or, morrendo, murmura:

"Eis a coragem do ferido, o sustentáculo do enfermo 

"A companhia do agonizante...

" Claudel não censura a mulher por conhecer assim o homem em sua fraqueza; ao contrário: acharia sacrílego o orgulho macho que se exibe em Montherlant e Lawrence. É bom que o homem se saiba carnal e miserável, que não esqueça a origem nem a morte simétrica. Toda esposa pode dizer as palavras de Marthe, de L'Êchange.

"É verdade, não fui eu quem te deu a vida. 

"Mas aqui estou para te pedi-la de volta. E daí vem ao homem diante da mulher. 

"Esse embaraço semelhante ao da consciência, ao da presença de um credor." 

Entretanto, essa fraqueza deve inclinar-se diante da força. No casamento a esposa dá-se ao esposo que a toma a seu cargo: Lâla deita-se no chão diante de Coeuvre que sobre ela pousa o pé. A relação da mulher com o marido, da filha com o pai, da irmã com o irmão, é uma relação de vassalo. Sygne, de L'Otage entre as mãos de George, faz o juramento do cavaleiro perante o suserano.

"Sois o chefe e eu a pobre sibila que guarda o fogo." 

"Deixa-me prestar juramento como um novo cavaleiro! Ó, meu Senhor! Deixai-me, tu és mais velho, entre tuas mãos

"Jurar como uma freira que professa, 

"Ó macho de minha raça!"




continua...
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O SEGUNDO SEXO
SIMONE DE BEAUVOIR

Entendendo o eterno feminino como um homólogo da alma negra, epítetos que representam o desejo da casta dominadora de manter em "seu lugar", isto é, no lugar de vassalagem que escolheu para eles, mulher e negro, Simone de Beauvoir, despojada de qualquer preconceito, elaborou um dos mais lúcidos e interessantes estudos sobre a condição feminina. Para ela a opressão se expressa nos elogios às virtudes do bom negro, de alma inconsciente, infantil e alegre, do negro resignado, como na louvação da mulher realmente mulher, isto é, frívola, pueril, irresponsável, submetida ao homem.

Todavia, não esquece Simone de Beauvoir que a mulher é escrava de sua própria situação: não tem passado, não tem história, nem religião própria. Um negro fanático pode desejar uma humanidade inteiramente negra, destruindo o resto com uma explosão atômica. Mas a mulher mesmo em sonho não pode exterminar os homens. O laço que a une a seus opressores não é comparável a nenhum outro. A divisão dos sexos é, com efeito, um dado biológico e não um momento da história humana.

Assim, à luz da moral existencialista, da luta pela liberdade individual, Simone de Beauvoir, em O Segundo Sexo, agora em 4.a edição no Brasil, considera os meios de um ser humano se realizar dentro da condição feminina. Revela os caminhos que lhe são abertos, a independência, a superação das circunstâncias que restringem a sua liberdade.


4.a EDIÇÃO - 1970
Tradução
SÉRGIO MILLIET
Capa
FERNANDO LEMOS
DIFUSÃO EUROPÉIA DO LIVRO
Título do original:
LE DEUXIÊME SEXE
LES FAITS ET LES MYTHES



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Segundo Sexo é um livro escrito por Simone de Beauvoir, publicado em 1949 e uma das obras mais celebradas e importantes para o movimento feminista. O pensamento de Beauvoir analisa a situação da mulher na sociedade.

No Brasil, foi publicado em dois volumes. “Fatos e mitos” é o volume 1, e faz uma reflexão sobre mitos e fatos que condicionam a situação da mulher na sociedade. “A experiência vivida” é o volume 2, e analisa a condição feminina nas esferas sexual, psicológica, social e política.



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Leia também:




O Segundo Sexo - 37. Fatos e Mitos: a masturbação é considerada um perigo e um pecado

O Segundo Sexo - 38. Fatos e Mitos: Mulher! És a porta do diabo

O Segundo Sexo - 39. Fatos e Mitos: A Mãe

O Segundo Sexo - 40. Fatos e Mitos: A Alma e a Ideia

O Segundo Sexo - 41. Fatos e Mitos: ... a expressão "ter uma mulher"...

O Segundo Sexo - 42. Fatos e Mitos: A mãe, a noiva fiel, a esposa paciente

O Segundo Sexo - 43. Fatos e Mitos: Montherlant ou o Pão do Nojo

O Segundo Sexo - 44. Fatos e Mitos: Montherlant ou o Pão do Nojo (2)

O Segundo Sexo - 44. Fatos e Mitos: Montherlant ou o Pão do Nojo (3)

O Segundo Sexo - 45. Fatos e Mitos: D. H. Lawrence ou o orgulho fálico (1)

O Segundo Sexo - 46. Fatos e Mitos: D. H. Lawrence ou o orgulho fálico (2)

O Segundo Sexo - 48. Fatos e Mitos: Claudel e a  serva do Senhor (2)


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