domingo, 1 de março de 2020

tempo é história: Calçacurta: 4A - O corpo pegava fogo!

CalçaCurta

novela


O corpo pegava fogo!
4A - 4ª ed


baitasar



ouço o zumbido dos boatos, muito diz que diz e diz que não diz, acusam os seus cochilos depois do almoço, agora ninguém chora mais

muita boataria

nada que possam provar, infâmias que tolos mal-informados ou mal-intencionados espalham, nunca soube que a sobremesa dos seus almoços na adega eram as mortes dos desaparecidos, agora ninguém chora mais

eu mesmo jamais desconfiei nem li nas famosas entrelinhas dos jornais, mas é preciso dizer que nunca fui dedicado nas aulas de escrever e ler e interpretar, nunca gostei da escola, às vezes ia e não ia

gostava de decorar e responder, assim não corria riscos, sempre tive ótima cabeça pra memorizar todas as respostas, carregava tudo na ponta da língua, perguntas sem importância que já esqueci, mas que ainda lembro as respostas

não gosto de escrever e a minha letra não gosta muito de ser lida, e também... escrever o quê, sobre o quê e pra quem, que pena

escrever aumenta a tensão sobre os nervos e a obrigação com as ideias do pensamento, depois de escrito e espalhado pro povo não tem mais jeito, não tem volta, o que está escrito está escrito, é tanta regrinha, tanto diz que diz, tanto boato pra tão pouca fama, talvez se eu fosse o barbeiro da máquina zero... acho que já me bastaria... não sei, não... não sei se bastaria... não, seria melhor assim... o barbeiro da máquina zero

teve uma vez que fui no mercadinho comprar guardanapo e não li que estava escrito papel higiênico, teve correria lá em casa, mas o pacote dos guardanapos resolveu a crise

nem sempre tudo piora

eu sempre gostei de jogar bola, desde que me lembro de ser gente e ir no mercadinho comprar cigarro pro pai, antes dele sumir

gostava muito das aulas de física, o professor largava uma bola e tinha jogo, depois mudou o professor de física, o novo chegou mudando algumas coisas, o jogo de bola foi a primeira mudança, não dava mais a bola, não gosto de mudanças, pra que mexer naquilo que já estava certo? quase mandei se fuder!

até hoje, ainda acho que devia ter mandado

mas não mandei, passei a vida achando que deveria ter feito o que não fiz ou que não deveria ter feito o que eu fiz, isso é uma merda!

respeito é bom e é bonito, é a parte mais bela da sabedoria, se você não for respeitoso pode perder o seu melhor amigo, menos o veron, meu companheiro de aventuras, mesmo nos piores momentos ele estava lá, pulava e latia como os meninos, ia a escola comigo e ficava esperando no portão, cachorro não entra na escola, mas se me perguntassem apontaria um ou outro menino que poderiam ficar lá fora pro veron entrar

menos, o gabriel

ele não pulava nem gritava como os meninos, lembro que no quarto dele era uma bagunça com livros pra todos os lados, estava sempre estudando – gostava de estudar, O estudo vai nos tirar deste buraco! –, mas não gostava de arrumar o quarto, sempre achei que tinha alguma coisa de errado com o gabriel, não pode ser normal gostar tanto de estudar, ele poderia ter virado general

ele não tinha cachorro, mas tinha uma família... não uma boa família, mas era uma família normal que mostrava pra ele o que devia fazer, onde e com quem brincar, Onde é que você estava, meu filho?

vir de uma boa família não é quando você cresce com dinheiro nem quando não falta nada, mas quando você vem de uma família com poder, a maior e mais significativa reputação: o valor do poder

por isso, não gostava das aulas de física do novo professor quando ele juntava os meninos e as meninas pra jogar bola, a escola não é uma família

não podia chutar forte nem chegar junto, e não importava quantas vezes elas erravam - e erravam muito –, ele não tirava as meninas do jogo

mano – posso chamar o senhor assim? –, essas lembranças me fazem rir nas horas da tristeza, acho que ainda gosto de uma daquelas retardadas, todas fielzinhas uma das outras no jogo, ainda sou apaixonado por essa garotinha, mas não sei se colocaria a mão no fogo por ela, será que poderia contar com ela até pra esconder um cadáver?

prometeu-me que jamais iria embora, mas já não está mais aqui

o senhor também partiu

repetia que nunca iria embora, sempre estaria por perto, atento e pronto pra voltar... a força se preciso fosse

exageros, um pouco de exagero, mesmo que um ou outro comunistinha continue desaparecido, ninguém pode acusar que foi o senhor... apesar da sua intimidade com torturas e tonturas

dois ou três erros não podem destruir a imagem do homem justo, Xupa-racha, só leva porrada quem merece levar porrada, E quem decide isso, senhor, Eu... é claro!

acho até que muito desses desaparecimentos foi destes merdinhas que escaparam com o rabo entre as pernas, se perderam lá fora, fugiram por decisão própria, não precisavam desertar

foram precipitados

e todos sabemos que longe de casa tudo fica mais complicado

eu sou testemunha da história, fui convocado pra ficar à disposição dos seus serviços, dia e noite, e nunca vi nenhum defunto falecido por bala ou porrada, nunca vi entrar nem sair algum corpo do porão

nas minhas andanças como motorista do calçacurta foi tudo muito limpo e higiênico, nunca vi nenhum comunistinha enrolado pelo pescoço

ficava sabendo que alguns se matavam depois de cantar o serviço, por vergonha

eu não teria cantado nem dado o serviço, morreria atirando, mas cada um com seu feitio

enfim, há de vir à verdade, o calçacurta sempre foi louco pelas marxistas, Elas têm fogo, Xupa-racha! São umas cadelinhas cabeludas de domar.

É mesmo, senhor?

Rapaz, elas combatem o tempo todo. As paredes do porão sabem de tudo. Ainda bem que aquela Adega não pode falar, mas lá tomei muito vinho delicioso. Nunca foi preciso queimar algum arquivo.

tenho certeza que as lendas em torno do calçacurta são recheadas pela difamação dos clandestinos, frases soltas e anônimas

acusações fantasiosas e exageradas

o senhor chegava no porão e anunciava que procurava sua iara, mulher muito linda com a pele cor da cuia, os cabelos negros como a noite sem lua, uma mulher misteriosa e fantástica que vive nos lagos, rios e igarapés

nunca encontrou

o senhor procurava nas matas e nos porões, mas nunca procurou com o coração, usava a espada como um porrete enquanto comia com duas mordidas toda a maçã

saia dos interrogatórios exclamando sua seleta frase sobre maçãs e serpentes, O homem de bem tem precisão de tirar do mundo os comunas, mas tem mais precisão de deitar com as esquerdistas subversivas e brigonas. É na cama que esse combate contra a concupiscência precisa ser travado e vencido. Desfolhar esse gosto degenerado das esquerdistas pelos pecados da carne!

não foi uma nem duas vezes que saiu do porão com os dedos no focinho, Rapaz, O que foi, senhor?

Quando chego na adega quero saber se é bonitinha ou feia, me encarrego pessoalmente das bonitinhas e ordinárias. As feias ficam com a Operação Peixe Fino. Quando saio do interrogatório o bigodinho é um perfume só, deixo a cabritinha reclamando das assaduras e sem entender o que aconteceu. Não perguntam, mas acho que todas querem saber se aquilo tudo foi o pau de arara. Nem tudo foi força e desesperação, mas tão cedo não olham com cobiça e lascívia os esquerdistas.

bobagem, muita lenda, não foram tantas que justifiquem tanto esse deus-nos-acuda

o senhor e os comunistinhas – uma gurizada sem juízo – deitavam muita falação por aqueles dias, exageros à parte, foi uma guerra de informação e contrainformação, cada lado anunciava que podia mais que o outro, mas a superioridade bélica só estava de um lado, a gurizada chamando o povo pras ruas, o povo em suas casas sem saber do grito das ruas

a televisão sempre cumpriu o seu papel

era o tempo dos festivais, um tempo em que se cantava sem entender as entrelinhas das linhas, caminhando e cantando em frente à televisão, esperando e torcendo que a decisão do tribunal do júri fosse a melhor, por certo, foi e não foi, o ginásio do maracanãzinho lotado com gritos e apitos, o rio de janeiro em clima de festa – lá, tudo dá samba! –, a tv excelsior, a tv globo, tudo que sorria e cantava estava longe do frio e do vento sul, a tv record, os cabeludos tentando romper o cerco, a disparada das coisas ruins sendo cantadas enquanto a banda passava

até que cansaram e acabou tudo, o povo não precisou saber, a televisão estava descobrindo o futebol

é certo que nunca carreguei nenhum corpo depois das suas andanças enraivecidas e descontroladas, ficava a levar e trazer das caçadas o caçador, o senhor por prudência e generosidade matava apenas para as suas necessidades

o diabo é que acusam o senhor de matar por gosto e gozo, apenas pela curiosidade de espantar a vida com as próprias mãos, eu não acredito, Tudo boataria, Xupa-racha, Eu sei, senhor. O problema é que os boatos à sua volta nunca param. Algumas coisas não mudaram... a apatia de sempre do povo, barracos de madeira, barro e zinco, crianças barrigudas queimadas pelo sol e fora das escolas não combinam com o nosso milagre econômico, Esquece, Xupa-racha. O tempo e a vida já se foram, Mas um e outro continuam reavivando essas memórias, Puta-que-os-pariu! A raiva anima essa gente. Não conseguem virar a página, dar tempo ao tempo, Adoram remexer essas histórias, Esquece, Xupa-racha!

E aquelas histórias, senhor?

não se mexeu, mas senti que se pudesse me colocava no pau-de-arara, Mas que histórias, Xupa-racha?

ele continuava cauteloso

Aquela do Curupira...

Lá... no Araguaia? Faz tanto tempo. Não sei, não... foi muito esforço para apagar essa peripécia de sucesso e sofrimento.

um arquivo que sabe muito, mas que já é um defunto não tem razão pra tanta cautela

Ninguém vai ligar lé com cré, senhor.

uma ventosidade abafada e contida soprou das paredes do ataúde, O senhor continua o mesmo...

O que você queria? Que eu mudasse agora? Esquece o Araguaia.

Mas, senhor...

Não sei, não. O que morreu deve permanecer assim, Concordo, mas só mais essa, senhor. Vamos fazer assim, eu conto o que eu sei, Até hoje quase ninguém sabe que passei por lá, E não precisam saber. Vai ficar entre nós dois, Mas que porra de fixação é essa, Xupa-racha? Deixa o Araguaia enterrado na mata!

continua uma história mal contada

Mas o senhor foi implacável e incansável, Sinto arrepios só de lembrar da floresta virgem, Imagino... o senhor não resiste a nenhuma virgindade, Sempre tive à disposição um engenhoso processo de grilagem das terras virgens, Eu sei, senhor. Mas isso é outro assunto, Você que veio com essa história das virgens, Esquece isso, senhor, Não é fácil, Xupa-racha. Uma mata virgem exuberante se parece com um forno úmido, O senhor é igual onça, pega o bicho que quer. Mas fale das picadas abertas a facão por léguas e léguas, O corpo pegava fogo...





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tempo é história: Calçacurta: 5A - nunca olhei pelo retrovisor


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