Livro II
Ela não é galante,
não usa ruge algum.
não usa ruge algum.
Sainte-Beuve
Capítulo VII
UM ATAQUE DE GOTA
E tive uma promoção, não por meu mérito, mas porque meu patrão sofria da gota.
BERTOLOTTI
O LEITOR TALVEZ SURPREENDA-SE com esse tom livre e quase amistoso; esquecemos de dizer que havia seis semanas o marquês estava retido em sua casa por um ataque de gota.
A srta. de La Mole e sua mãe estavam em Hyères, junto à mãe da marquesa. O conde Norbert via o pai apenas por instantes; davam-se bem um com o outro, mas nada tinham a dizer-se. Reduzido a Julien, o sr. de La Mole ficou espantado de encontrar ideias nele. Fazia-o ler-lhe os jornais. Em breve, o jovem secretário foi capaz de escolher as passagens interessantes. Havia um jornal novo que o marquês abominava; tinha jurado nunca lê-lo, e todo dia falava dele. Julien ria. O marquês, irritado contra o tempo presente, pediu que ele lesse Tito Lívio; a tradução improvisada sobre o texto latino divertia-o.
Um dia, o marquês disse com aquele tom de polidez excessiva que geralmente impacientava Julien:
– Permita, meu caro Sorel, que lhe presenteie com um traje azul: quando quiser vesti-lo e vier a meus aposentos, você será, a meus olhos, o irmão caçula do conde de Chaulnes, isto é, o filho do meu velho amigo duque.
Julien não compreendeu muito bem do que se tratava; na mesma noite, experimentou uma visita com o traje azul. O marquês tratou-o como a um igual. Julien tinha um coração capaz de sentir a verdadeira polidez, mas não fazia ideia das nuanças. Teria jurado, antes desse capricho do marquês, que era impossível ser recebido por ele com mais consideração. Que admirável talento!, pensou Julien; quando levantou-se para sair, o marquês desculpou-se de não poder acompanhá-lo por causa da gota.
Este pensamento singular ocupou Julien: estaria ele zombando de mim?, pensou. Foi pedir conselho ao abade Pirard que, menos polido que o marquês, respondeu-lhe apenas assobiando e falando de outra coisa. Na manhã seguinte, Julien apresentou-se ao marquês de traje preto, com sua pasta e as cartas por assinar. Foi recebido à maneira antiga. À noite, de traje azul, o tom foi completamente diferente e tão polido quanto na véspera.
– Já que não se aborrece demais com as visitas que tem a bondade de fazer a um pobre velho enfermo, disse-lhe o marquês, deveria falar-me de todos os pequenos incidentes de sua vida, mas de maneira franca e sem pensar noutra coisa do que em contar claramente e de forma divertida. Pois é preciso divertir-se, disse o marquês; só isso é real na vida. Um homem não pode salvar-me a vida na guerra todo dia, ou dar-me um presente de um milhão todo dia. Mas se eu tivesse aqui Rivarol, junto à minha espreguiçadeira, todo dia ele me pouparia uma hora de sofrimento e de tédio. Estive muitas vezes com ele em Hamburgo, durante a emigração.
E o marquês contou a Julien as anedotas de Rivarol com os hamburgueses, que se reuniam em quatro para compreender um dito espirituoso.
O sr. de La Mole, reduzido à companhia daquele padrezinho, quis incentivá-lo, atiçando o orgulho de Julien. Já que lhe pediam a verdade, Julien resolveu dizer tudo, mas calando duas coisas: sua admiração fanática por um nome que causava mau humor ao marquês, e a perfeita incredulidade que não combinava muito bem com um futuro padre. Seu pequeno incidente com o cavaleiro de Beauvoisis veio muito a propósito. O marquês riu até as lágrimas da cena no café da rua Saint-Honoré, com o cocheiro que lhe lançava as piores injúrias. Foi uma época de franqueza perfeita nas relações entre o patrão e o protegido.
O sr. de La Mole interessou-se por aquele caráter singular. No começo, acolhia os ridículos de Julien, a fim de divertir-se; logo achou mais interessante corrigir muito suavemente as falsas maneiras de ver do jovem. Os outros provincianos que chegam em Paris admiram tudo, pensava o marquês; este odeia tudo. Os outros têm afetação demais, este não a tem suficientemente, e os tolos acham-no um tolo.
O ataque de gota prolongou-se com os frios do inverno e durou vários meses.
As pessoas afeiçoam-se a um cão de raça, dizia-se o marquês, por que tanta vergonha de afeiçoar-me a esse padrezinho? Ele é original. Trato-o como um filho; pois bem! Onde está o inconveniente? Esse capricho, se durar, custar-me-á um diamante de quinhentos luíses em meu testamento.
Estando o marquês seguro do caráter firme de seu protegido, a cada dia ele o encarregava de algum novo negócio.
Julien observou, com espanto, que sucedia àquele grande senhor dar-lhe ordens contraditórias sobre o mesmo objeto.
Isso podia comprometê-lo gravemente. Julien resolveu não mais trabalhar com ele sem trazer um registro no qual escrevia as ordens, e o marquês as rubricava. Julien tomara um auxiliar que transcrevia as decisões relativas a cada negócio num registro particular. Esse registro continha também a cópia de todas as cartas.
Tal ideia pareceu a princípio o cúmulo do ridículo e do tédio. Mas em menos de dois meses o marquês percebeu-lhe as vantagens. Julien propôs-lhe contratar um empregado que saía da casa de um banqueiro, e que registraria em partidas dobradas todas as receitas e todas as despesas das terras que Julien estava encarregado de administrar.
Essas medidas esclareceram de tal maneira, aos olhos do marquês, seus próprios negócios, que ele pôde dar-se o prazer de empreender duas ou três novas especulações sem a ajuda do testa de ferro que o roubava.
– Pegue três mil francos para você, disse ele um dia ao jovem secretário.
– Senhor, minha conduta pode ser caluniada.
– Que devo fazer então?, retomou o marquês, irritado.
– Escrever de próprio punho no registro a decisão que tomou; essa decisão me dará uma soma de três mil francos. De resto, foi o abade Pirard que teve a ideia dessa contabilidade.
O sr. de La Mole, com a cara aborrecida do mar quês de Moncade ouvindo as contas do sr. Poisson, seu intendente, escreveu a decisão. [1]
À noite, quando Julien aparecia de traje azul, nunca se falava de negócios. As bondades do marquês eram tão lisonjeiras para o amor-próprio sempre sofredor de nosso herói que ele logo sentiu, contra sua vontade, uma espécie de afeição por aquele velho amável. Não que Julien fosse sensível, como o entendem em Paris; mas ele não era um monstro, e ninguém, desde a morte do velho cirurgião-mor, lhe falara com tanta bondade. Ele observava com espanto que o marquês tinha, em relação a seu amor-próprio, atenções de cortesia que ele jamais encontrara no velho cirurgião. Compreendeu, enfim, que o cirurgião tinha mais orgulho de sua medalha que o marquês de sua fita azul. O pai do marquês era um nobre importante.
Certo dia, ao final de uma audiência matinal, com seu traje preto de negócios, Julien divertiu o marquês, que o reteve por duas horas e fez questão de dar-lhe alguns títulos bancários que seu testa de ferro acabava de trazer-lhe da Bolsa.
– Espero, senhor marquês, não me afastar do profundo respeito que lhe devo, suplicando que me permita uma palavra.
– Fale, meu amigo.
– Que o senhor marquês digne-se aceitar minha recusa desse presente. Não é ao homem de traje preto que ele é dirigido, e ele estragaria completamente as maneiras que o senhor tem a bondade de tolerar no homem de traje azul. Fez um cumprimento muito respeitoso e saiu sem olhar.
Essa atitude divertiu o marquês, que a relatou à noite ao abade Pirard.
– Devo confessar-lhe finalmente uma coisa, meu caro abade. Conheço o nascimento de Julien e autorizo-o a não mais guardar segredo comigo sobre essa confidência.
Seu procedimento desta manhã é nobre, pensou o marquês, e eu o enobreço.
Algum tempo depois, o marquês pôde enfim sair.
– Vá passar dois meses em Londres, disse ele a Julien. Os correios extraordinários e os outros levarão até você as cartas que recebo com minhas anotações. Redigirá as respostas e as enviará dentro de suas cartas. Calculei que o atraso será de apenas cinco dias.
Na carruagem a caminho de Calais, Julien surpreendia-se com a futilidade dos pretensos negócios para os quais fora enviado.
Não diremos com que sentimento de ódio e quase de horror ele tocou o solo inglês. Conhecemos sua louca paixão por Bonaparte. Ele via em cada oficial um sir Hudson Lowe, em cada nobre um lorde Bathurst, ordenando as infâmias de Santa Helena e recebendo como recompensa dez anos de ministério.
Em Londres, ele conheceu enfim a alta fatuidade. Ligara-se com jovens da nobreza russa, que o iniciaram.
– Você é predestinado, meu caro Sorel, eles diziam, possui naturalmente uma expressão de rosto fria e a mil léguas da sensação presente que tanto buscamos adquirir.
– Você não compreendeu seu século, dizia-lhe o príncipe Korasoff: faça sempre o contrário do que esperam de você. Eis aí, realmente, a única religião da época. Não seja nem louco nem afetado, pois então esperariam loucuras e afetações de você, e o preceito não seria mais cumprido.
Julien cobriu-se de glória um dia, no salão do duque de Fitz-Folke, que o convidara a jantar juntamente com o príncipe Korasoff. Os convidados esperaram durante uma hora. A maneira como Julien conduziu-se em meio às vinte pessoas que esperavam é ainda citada entre os jovens secretários da embaixada em Londres. Sua cara foi impagável.
Ele quis conhecer, apesar de seus amigos dândis, o célebre Philippe Vane, o único filósofo que a Inglaterra produziu depois de Locke. Encontrou-o terminando seu sétimo ano de prisão. A aristocracia não brinca neste país, pensou Julien; além disso, Vane foi desonrado, vilipendia do etc.
Julien achou-o um tipo bem-humorado; a raiva à aristocracia o desentediava. Aí está, pensou Julien ao sair da prisão, o único homem alegre que vi na Inglaterra.
A ideia mais útil aos tiranos é a de Deus, dissera-lhe Vane...
Suprimimos o resto do sistema como cínico.
Ao regressar, o sr. de La Mole perguntou-lhe:
– Que ideia divertida me traz da Inglaterra?... Ele permanecia calado.
– Que ideia traz, divertida ou não?, insistiu o marquês.
– Primeiro, disse Julien, o inglês mais sábio é louco uma hora por dia; é visitado pelo demônio do suicídio, que é o deus do país. Segundo: o espírito e o gênio perdem vinte e cinco por cento de seu valor ao desembarcarem na Inglaterra. Terceiro: nada no mundo é mais belo, admirável, enternecedor, do que as paisagens inglesas.
– Agora é minha vez, disse o marquês. Primeiro: por que foi dizer, no baile na casa do embaixador da Rússia, que há na França trezentos mil jovens de vinte e cinco anos que desejam apaixonadamente a guerra? Acredita que isso é um prazer para os reis?
– Não se sabe como agir ao falar com nossos grandes diplomatas, disse Julien. Eles têm a mania de iniciar discussões sérias. Se nos limitamos aos lugares-comuns dos jornais, passamos por tolos. Se nos permitimos algo de verdadeiro e de novo, ficam espantados, não sabem o que responder e, no dia seguinte, às sete horas, mandam dizer pelo primeiro secretário da embaixada que fomos inconvenientes.
– Nada mal, disse o marquês, rindo. De resto, aposto que não adivinhou o que foi fazer na Inglaterra, senhor homem profundo.
– Perdoe-me, retomou Julien; fui lá para jantar uma vez por semana na casa do embaixador do rei, que é o mais polido dos homens.
– Você foi buscar esta medalha aqui, disse-lhe o mar quês. Não quero fazê-lo abandonar seu traje preto, e estou acostumado ao tom divertido que adotei com o homem que veste o traje azul. Até segunda ordem, ouça bem isto: quando eu vir essa medalha, você será o filho caçula de meu amigo, o duque de Chaulnes, que, sem que o saiba, está há seis meses na diplomacia. Veja bem, acrescentou o marquês num tom muito sério e cortando os agradecimentos, não quero de modo nenhum tirá-lo de sua condição. Isso é sempre um erro e uma desgraça, tanto para o protetor quanto para o protegido. Quando meus processos o aborrecerem, ou quando não me convier mais, solicitarei para você uma boa paróquia, como a do nosso amigo abade Pirard, e nada mais, acrescentou o marquês de maneira bastante seca.
Essa medalha fez inflar o orgulho de Julien; ele passou a falar muito mais. Acreditou-se menos ofendido e visado por aquelas frases suscetíveis de alguma explicação pouco polida que, numa conversa animada, podem ser ditas por qualquer um.
Essa medalha lhe valeu uma visita singular: foi a do sr. barão de Valenod, que vinha a Paris agradecer ao ministério seu baronato e entender-se com ele. Ia ser nomea do prefeito de Verrières em substituição ao sr. de Rênal.
Julien riu muito, interiormente, quando o sr. de Valenod deu-lhe a entender que fora descoberto que o sr. de Rênal era um jacobino. O fato é que, numa reeleição que se preparava, o novo barão era o candidato do ministério, e no colégio eleitoral do departamento, em verdade muito conservador, o sr. de Rênal tinha o apoio dos liberais.
Em vão Julien tentou saber alguma coisa da sra. de Rênal; o barão pareceu lembrar-se da antiga rivalidade deles e foi impenetrável. Acabou por pedir a Julien o voto de seu pai nas próximas eleições. Julien prometeu escrever.
– O senhor deveria, cavalheiro, apresentar-me ao sr. marquês de La Mole.
De fato, eu deveria, pensou Julien; mas um patife como este!...
– Em verdade, respondeu, sou muito insignificante na mansão de La Mole para encarregarme de apresentações.
Julien contava tudo ao marquês: à noite relatou-lhe a pretensão de Valenod, bem como seus atos e atitudes desde 1814.
– Você não apenas me apresentará amanhã o novo barão, disse-lhe o sr. de La Mole com seriedade, como também o convido a jantar depois de amanhã. Ele será um de nossos novos prefeitos.
– Nesse caso, tornou Julien friamente, peço o cargo de diretor do asilo de mendicidade para meu pai.
– Assim é que se fala, disse o marquês retomando o ar alegre; concedido; achei que viria com lições de moral. Está começando a aprender.
O sr. de Valenod informou a Julien que o titular da loteria de Verrières falecera há pouco: Julien achou divertido dar esse cargo ao sr. de Cholin, aquele velho imbecil cuja petição encontrara outrora no quarto de sr. de La Mole. O marquês riu com muito gosto da petição que Julien recitou, ao fazê-lo assinar a carta que solicitava aquele cargo ao ministro das Finanças.
Logo que o sr. de Cholin foi nomeado, Julien ficou sabendo que o cargo fora solicitado pela câmara do departamento para o sr. Gros, o célebre geômetra: esse homem generoso tinha apenas mil e quatrocentos francos de renda, e todo ano emprestava seiscentos francos ao titular agora falecido, para ajudá-lo a manter a família.
Julien ficou espantado com o que fez. Isto não é nada, pensou, terei de fazer muitas outras injustiças se quiser vencer, e ainda por cima saber ocultá-las sob belas frases sentimentais. Pobre sr. Gros! Ele é que merecia a medalha, eu que a tenho, e devo agir de acordo com o governo que me condecora.
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Entrada na Sociedade (II)
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Stendhal - O Vermelho e o Negro: A Mansão de La Mole (IV-1)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: A Mansão de La Mole (IV-2)
Julien não compreendeu muito bem do que se tratava; na mesma noite, experimentou uma visita com o traje azul. O marquês tratou-o como a um igual. Julien tinha um coração capaz de sentir a verdadeira polidez, mas não fazia ideia das nuanças. Teria jurado, antes desse capricho do marquês, que era impossível ser recebido por ele com mais consideração. Que admirável talento!, pensou Julien; quando levantou-se para sair, o marquês desculpou-se de não poder acompanhá-lo por causa da gota.
Este pensamento singular ocupou Julien: estaria ele zombando de mim?, pensou. Foi pedir conselho ao abade Pirard que, menos polido que o marquês, respondeu-lhe apenas assobiando e falando de outra coisa. Na manhã seguinte, Julien apresentou-se ao marquês de traje preto, com sua pasta e as cartas por assinar. Foi recebido à maneira antiga. À noite, de traje azul, o tom foi completamente diferente e tão polido quanto na véspera.
– Já que não se aborrece demais com as visitas que tem a bondade de fazer a um pobre velho enfermo, disse-lhe o marquês, deveria falar-me de todos os pequenos incidentes de sua vida, mas de maneira franca e sem pensar noutra coisa do que em contar claramente e de forma divertida. Pois é preciso divertir-se, disse o marquês; só isso é real na vida. Um homem não pode salvar-me a vida na guerra todo dia, ou dar-me um presente de um milhão todo dia. Mas se eu tivesse aqui Rivarol, junto à minha espreguiçadeira, todo dia ele me pouparia uma hora de sofrimento e de tédio. Estive muitas vezes com ele em Hamburgo, durante a emigração.
E o marquês contou a Julien as anedotas de Rivarol com os hamburgueses, que se reuniam em quatro para compreender um dito espirituoso.
O sr. de La Mole, reduzido à companhia daquele padrezinho, quis incentivá-lo, atiçando o orgulho de Julien. Já que lhe pediam a verdade, Julien resolveu dizer tudo, mas calando duas coisas: sua admiração fanática por um nome que causava mau humor ao marquês, e a perfeita incredulidade que não combinava muito bem com um futuro padre. Seu pequeno incidente com o cavaleiro de Beauvoisis veio muito a propósito. O marquês riu até as lágrimas da cena no café da rua Saint-Honoré, com o cocheiro que lhe lançava as piores injúrias. Foi uma época de franqueza perfeita nas relações entre o patrão e o protegido.
O sr. de La Mole interessou-se por aquele caráter singular. No começo, acolhia os ridículos de Julien, a fim de divertir-se; logo achou mais interessante corrigir muito suavemente as falsas maneiras de ver do jovem. Os outros provincianos que chegam em Paris admiram tudo, pensava o marquês; este odeia tudo. Os outros têm afetação demais, este não a tem suficientemente, e os tolos acham-no um tolo.
O ataque de gota prolongou-se com os frios do inverno e durou vários meses.
As pessoas afeiçoam-se a um cão de raça, dizia-se o marquês, por que tanta vergonha de afeiçoar-me a esse padrezinho? Ele é original. Trato-o como um filho; pois bem! Onde está o inconveniente? Esse capricho, se durar, custar-me-á um diamante de quinhentos luíses em meu testamento.
Estando o marquês seguro do caráter firme de seu protegido, a cada dia ele o encarregava de algum novo negócio.
Julien observou, com espanto, que sucedia àquele grande senhor dar-lhe ordens contraditórias sobre o mesmo objeto.
Isso podia comprometê-lo gravemente. Julien resolveu não mais trabalhar com ele sem trazer um registro no qual escrevia as ordens, e o marquês as rubricava. Julien tomara um auxiliar que transcrevia as decisões relativas a cada negócio num registro particular. Esse registro continha também a cópia de todas as cartas.
Tal ideia pareceu a princípio o cúmulo do ridículo e do tédio. Mas em menos de dois meses o marquês percebeu-lhe as vantagens. Julien propôs-lhe contratar um empregado que saía da casa de um banqueiro, e que registraria em partidas dobradas todas as receitas e todas as despesas das terras que Julien estava encarregado de administrar.
Essas medidas esclareceram de tal maneira, aos olhos do marquês, seus próprios negócios, que ele pôde dar-se o prazer de empreender duas ou três novas especulações sem a ajuda do testa de ferro que o roubava.
– Pegue três mil francos para você, disse ele um dia ao jovem secretário.
– Senhor, minha conduta pode ser caluniada.
– Que devo fazer então?, retomou o marquês, irritado.
– Escrever de próprio punho no registro a decisão que tomou; essa decisão me dará uma soma de três mil francos. De resto, foi o abade Pirard que teve a ideia dessa contabilidade.
O sr. de La Mole, com a cara aborrecida do mar quês de Moncade ouvindo as contas do sr. Poisson, seu intendente, escreveu a decisão. [1]
À noite, quando Julien aparecia de traje azul, nunca se falava de negócios. As bondades do marquês eram tão lisonjeiras para o amor-próprio sempre sofredor de nosso herói que ele logo sentiu, contra sua vontade, uma espécie de afeição por aquele velho amável. Não que Julien fosse sensível, como o entendem em Paris; mas ele não era um monstro, e ninguém, desde a morte do velho cirurgião-mor, lhe falara com tanta bondade. Ele observava com espanto que o marquês tinha, em relação a seu amor-próprio, atenções de cortesia que ele jamais encontrara no velho cirurgião. Compreendeu, enfim, que o cirurgião tinha mais orgulho de sua medalha que o marquês de sua fita azul. O pai do marquês era um nobre importante.
Certo dia, ao final de uma audiência matinal, com seu traje preto de negócios, Julien divertiu o marquês, que o reteve por duas horas e fez questão de dar-lhe alguns títulos bancários que seu testa de ferro acabava de trazer-lhe da Bolsa.
– Espero, senhor marquês, não me afastar do profundo respeito que lhe devo, suplicando que me permita uma palavra.
– Fale, meu amigo.
– Que o senhor marquês digne-se aceitar minha recusa desse presente. Não é ao homem de traje preto que ele é dirigido, e ele estragaria completamente as maneiras que o senhor tem a bondade de tolerar no homem de traje azul. Fez um cumprimento muito respeitoso e saiu sem olhar.
Essa atitude divertiu o marquês, que a relatou à noite ao abade Pirard.
– Devo confessar-lhe finalmente uma coisa, meu caro abade. Conheço o nascimento de Julien e autorizo-o a não mais guardar segredo comigo sobre essa confidência.
Seu procedimento desta manhã é nobre, pensou o marquês, e eu o enobreço.
Algum tempo depois, o marquês pôde enfim sair.
– Vá passar dois meses em Londres, disse ele a Julien. Os correios extraordinários e os outros levarão até você as cartas que recebo com minhas anotações. Redigirá as respostas e as enviará dentro de suas cartas. Calculei que o atraso será de apenas cinco dias.
Na carruagem a caminho de Calais, Julien surpreendia-se com a futilidade dos pretensos negócios para os quais fora enviado.
Não diremos com que sentimento de ódio e quase de horror ele tocou o solo inglês. Conhecemos sua louca paixão por Bonaparte. Ele via em cada oficial um sir Hudson Lowe, em cada nobre um lorde Bathurst, ordenando as infâmias de Santa Helena e recebendo como recompensa dez anos de ministério.
Em Londres, ele conheceu enfim a alta fatuidade. Ligara-se com jovens da nobreza russa, que o iniciaram.
– Você é predestinado, meu caro Sorel, eles diziam, possui naturalmente uma expressão de rosto fria e a mil léguas da sensação presente que tanto buscamos adquirir.
– Você não compreendeu seu século, dizia-lhe o príncipe Korasoff: faça sempre o contrário do que esperam de você. Eis aí, realmente, a única religião da época. Não seja nem louco nem afetado, pois então esperariam loucuras e afetações de você, e o preceito não seria mais cumprido.
Julien cobriu-se de glória um dia, no salão do duque de Fitz-Folke, que o convidara a jantar juntamente com o príncipe Korasoff. Os convidados esperaram durante uma hora. A maneira como Julien conduziu-se em meio às vinte pessoas que esperavam é ainda citada entre os jovens secretários da embaixada em Londres. Sua cara foi impagável.
Ele quis conhecer, apesar de seus amigos dândis, o célebre Philippe Vane, o único filósofo que a Inglaterra produziu depois de Locke. Encontrou-o terminando seu sétimo ano de prisão. A aristocracia não brinca neste país, pensou Julien; além disso, Vane foi desonrado, vilipendia do etc.
Julien achou-o um tipo bem-humorado; a raiva à aristocracia o desentediava. Aí está, pensou Julien ao sair da prisão, o único homem alegre que vi na Inglaterra.
A ideia mais útil aos tiranos é a de Deus, dissera-lhe Vane...
Suprimimos o resto do sistema como cínico.
Ao regressar, o sr. de La Mole perguntou-lhe:
– Que ideia divertida me traz da Inglaterra?... Ele permanecia calado.
– Que ideia traz, divertida ou não?, insistiu o marquês.
– Primeiro, disse Julien, o inglês mais sábio é louco uma hora por dia; é visitado pelo demônio do suicídio, que é o deus do país. Segundo: o espírito e o gênio perdem vinte e cinco por cento de seu valor ao desembarcarem na Inglaterra. Terceiro: nada no mundo é mais belo, admirável, enternecedor, do que as paisagens inglesas.
– Agora é minha vez, disse o marquês. Primeiro: por que foi dizer, no baile na casa do embaixador da Rússia, que há na França trezentos mil jovens de vinte e cinco anos que desejam apaixonadamente a guerra? Acredita que isso é um prazer para os reis?
– Não se sabe como agir ao falar com nossos grandes diplomatas, disse Julien. Eles têm a mania de iniciar discussões sérias. Se nos limitamos aos lugares-comuns dos jornais, passamos por tolos. Se nos permitimos algo de verdadeiro e de novo, ficam espantados, não sabem o que responder e, no dia seguinte, às sete horas, mandam dizer pelo primeiro secretário da embaixada que fomos inconvenientes.
– Nada mal, disse o marquês, rindo. De resto, aposto que não adivinhou o que foi fazer na Inglaterra, senhor homem profundo.
– Perdoe-me, retomou Julien; fui lá para jantar uma vez por semana na casa do embaixador do rei, que é o mais polido dos homens.
– Você foi buscar esta medalha aqui, disse-lhe o mar quês. Não quero fazê-lo abandonar seu traje preto, e estou acostumado ao tom divertido que adotei com o homem que veste o traje azul. Até segunda ordem, ouça bem isto: quando eu vir essa medalha, você será o filho caçula de meu amigo, o duque de Chaulnes, que, sem que o saiba, está há seis meses na diplomacia. Veja bem, acrescentou o marquês num tom muito sério e cortando os agradecimentos, não quero de modo nenhum tirá-lo de sua condição. Isso é sempre um erro e uma desgraça, tanto para o protetor quanto para o protegido. Quando meus processos o aborrecerem, ou quando não me convier mais, solicitarei para você uma boa paróquia, como a do nosso amigo abade Pirard, e nada mais, acrescentou o marquês de maneira bastante seca.
Essa medalha fez inflar o orgulho de Julien; ele passou a falar muito mais. Acreditou-se menos ofendido e visado por aquelas frases suscetíveis de alguma explicação pouco polida que, numa conversa animada, podem ser ditas por qualquer um.
Essa medalha lhe valeu uma visita singular: foi a do sr. barão de Valenod, que vinha a Paris agradecer ao ministério seu baronato e entender-se com ele. Ia ser nomea do prefeito de Verrières em substituição ao sr. de Rênal.
Julien riu muito, interiormente, quando o sr. de Valenod deu-lhe a entender que fora descoberto que o sr. de Rênal era um jacobino. O fato é que, numa reeleição que se preparava, o novo barão era o candidato do ministério, e no colégio eleitoral do departamento, em verdade muito conservador, o sr. de Rênal tinha o apoio dos liberais.
Em vão Julien tentou saber alguma coisa da sra. de Rênal; o barão pareceu lembrar-se da antiga rivalidade deles e foi impenetrável. Acabou por pedir a Julien o voto de seu pai nas próximas eleições. Julien prometeu escrever.
– O senhor deveria, cavalheiro, apresentar-me ao sr. marquês de La Mole.
De fato, eu deveria, pensou Julien; mas um patife como este!...
– Em verdade, respondeu, sou muito insignificante na mansão de La Mole para encarregarme de apresentações.
Julien contava tudo ao marquês: à noite relatou-lhe a pretensão de Valenod, bem como seus atos e atitudes desde 1814.
– Você não apenas me apresentará amanhã o novo barão, disse-lhe o sr. de La Mole com seriedade, como também o convido a jantar depois de amanhã. Ele será um de nossos novos prefeitos.
– Nesse caso, tornou Julien friamente, peço o cargo de diretor do asilo de mendicidade para meu pai.
– Assim é que se fala, disse o marquês retomando o ar alegre; concedido; achei que viria com lições de moral. Está começando a aprender.
O sr. de Valenod informou a Julien que o titular da loteria de Verrières falecera há pouco: Julien achou divertido dar esse cargo ao sr. de Cholin, aquele velho imbecil cuja petição encontrara outrora no quarto de sr. de La Mole. O marquês riu com muito gosto da petição que Julien recitou, ao fazê-lo assinar a carta que solicitava aquele cargo ao ministro das Finanças.
Logo que o sr. de Cholin foi nomeado, Julien ficou sabendo que o cargo fora solicitado pela câmara do departamento para o sr. Gros, o célebre geômetra: esse homem generoso tinha apenas mil e quatrocentos francos de renda, e todo ano emprestava seiscentos francos ao titular agora falecido, para ajudá-lo a manter a família.
Julien ficou espantado com o que fez. Isto não é nada, pensou, terei de fazer muitas outras injustiças se quiser vencer, e ainda por cima saber ocultá-las sob belas frases sentimentais. Pobre sr. Gros! Ele é que merecia a medalha, eu que a tenho, e devo agir de acordo com o governo que me condecora.
continua página 196...
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[1] Alusão à peça Escola dos burgueses (1728), de Allainval. (N.T.)
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ADVERTÊNCIA DO EDITOR
Esta obra estava prestes a ser publicada quando os grandes acontecimentos de julho [de 1830] vieram dar a todos os espíritos uma direção pouco favorável aos jogos da imaginação. Temos motivos para acreditar que as páginas seguintes foram escritas em 1827.
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Henri-Marie Beyle, mais conhecido como Stendhal (Grenoble, 23 de janeiro de 1783 — Paris, 23 de março de 1842) foi um escritor francês reputado pela fineza na análise dos sentimentos de seus personagens e por seu estilo deliberadamente seco.
Órfão de mãe desde 1789, criou-se entre seu pai e sua tia. Rejeitou as virtudes monárquicas e religiosas que lhe inculcaram e expressou cedo a vontade de fugir de sua cidade natal. Abertamente republicano, acolheu com entusiasmo a execução do rei e celebrou inclusive a breve detenção de seu pai. A partir de 1796 foi aluno da Escola central de Grenoble e em 1799 conseguiu o primeiro prêmio de matemática. Viajou a Paris para ingressar na Escola Politécnica, mas adoeceu e não pôde se apresentar à prova de acesso. Graças a Pierre Daru, um parente longínquo que se converteria em seu protetor, começou a trabalhar no ministério de Guerra.
Enviado pelo exército como ajudante do general Michaud, em 1800 descobriu a Itália, país que tomou como sua pátria de escolha. Desenganado da vida militar, abandonou o exército em 1801. Entre os salões e teatros parisienses, sempre apaixonado de uma mulher diferente, começou (sem sucesso) a cultivar ambições literárias. Em precária situação econômica, Daru lhe conseguiu um novo posto como intendente militar em Brunswick, destino em que permaneceu entre 1806 e 1808. Admirador incondicional de Napoleão, exerceu diversos cargos oficiais e participou nas campanhas imperiais. Em 1814, após queda do corso, se exilou na Itália, fixou sua residência em Milão e efetuou várias viagens pela península italiana. Publicou seus primeiros livros de crítica de arte sob o pseudônimo de L. A. C. Bombet, e em 1817 apareceu Roma, Nápoles e Florença, um ensaio mais original, onde mistura a crítica com recordações pessoais, no que utilizou por primeira vez o pseudônimo de Stendhal. O governo austríaco lhe acusou de apoiar o movimento independentista italiano, pelo que abandonou Milão em 1821, passou por Londres e se instalou de novo em Paris, quando terminou a perseguição aos aliados de Napoleão.
"Dandy" afamado, frequentava os salões de maneira assídua, enquanto sobrevivia com os rendimentos obtidos com as suas colaborações em algumas revistas literárias inglesas. Em 1822 publicou Sobre o amor, ensaio baseado em boa parte nas suas próprias experiências e no qual exprimia ideias bastante avançadas; destaca a sua teoria da cristalização, processo pelo que o espírito, adaptando a realidade aos seus desejos, cobre de perfeições o objeto do desejo.
Estabeleceu o seu renome de escritor graças à Vida de Rossini e às duas partes de seu Racine e Shakespeare, autêntico manifesto do romantismo. Depois de uma relação sentimental com a atriz Clémentine Curial, que durou até 1826, empreendeu novas viagens ao Reino Unido e Itália e redigiu a sua primeira novela, Armance. Em 1828, sem dinheiro nem sucesso literário, solicitou um posto na Biblioteca Real, que não lhe foi concedido; afundado numa péssima situação económica, a morte do conde de Daru, no ano seguinte, afetou-o particularmente. Superou este período difícil graças aos cargos de cônsul que obteve primeiro em Trieste e mais tarde em Civitavecchia, enquanto se entregava sem reservas à literatura.
Em 1830 aparece sua primeira obra-prima: O Vermelho e o Negro, uma crónica analítica da sociedade francesa na época da Restauração, na qual Stendhal representou as ambições da sua época e as contradições da emergente sociedade de classes, destacando sobretudo a análise psicológica das personagens e o estilo direto e objetivo da narração. Em 1839 publicou A Cartuxa de Parma, muito mais novelesca do que a sua obra anterior, que escreveu em apenas dois meses e que por sua espontaneidade constitui uma confissão poética extraordinariamente sincera, ainda que só tivesse recebido o elogio de Honoré de Balzac.
Ambas são novelas de aprendizagem e partilham rasgos românticos e realistas; nelas aparece um novo tipo de herói, tipicamente moderno, caracterizado pelo seu isolamento da sociedade e o seu confronto com as suas convenções e ideais, no que muito possivelmente se reflete em parte a personalidade do próprio Stendhal.
Outra importante obra de Stendhal é Napoleão, na qual o escritor narra momentos importantes da vida do grande general Bonaparte. Como o próprio Stendhal descreve no início deste livro, havia na época (1837) uma carência de registos referentes ao período da carreira militar de Napoleão, sobretudo a sua atuação nas várias batalhas na Itália. Dessa forma, e também porque Stendhal era um admirador incondicional do corso, a obra prioriza a emergência de Bonaparte no cenário militar, entre os anos de 1796 e 1797 nas batalhas italianas. Declarou, certa vez, que não considerava morrer na rua algo indigno e, curiosamente, faleceu de um ataque de apoplexia, na rua, sem concluir a sua última obra, Lamiel, que foi publicada muito depois da sua morte.
O reconhecimento da obra de Stendhal, como ele mesmo previu, só se iniciou cerca de cinquenta anos após sua morte, ocorrida em 1842, na cidade de Paris.
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Leia também:
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Os Prazeres do Campo (I-2)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Entrada na Sociedade (II)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Os Primeiros Passos (III)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: A Mansão de La Mole (IV-1)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: A Mansão de La Mole (IV-2)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: A Sensibilidade e uma Grande Dama Devota (V)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Maneira de Pronunciar (VI)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Maneira de Pronunciar (VI)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Um ataque de Gota (VII)
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