terça-feira, 3 de novembro de 2020

Contos Africanos : Luandino Vieira - Vavó Xíxi... No silêncio da cubata ... (07)

  Luaanda... Vavó Xíxi e Seu Neto Zeca Santos




Luandino Vieira





terminando...


No silêncio da cubata, com a luz da tarde a misturar no escuro da noite, vavó Xíxi sente os passos do neto chegar, empurrar a porta com jeito, devagar, como o neto nunca fazia. A figura dele, alta e magra, ficou desenhada na entrada com a luz da rua nas costas. Zeca teve de abrir bem os olhos para habituar no escuro e andou muito cauteloso.

— Vavó?! Vavó, onde está?

Deitada na esteira, vavó continuou gemer e o neto correu no canto onde ela estava tapada a tremer.

— O que é então, vavó? Diz ainda! Está doente? É o quê?

— Aiuê, minha vida! Aiuê, minha barriga! Morro!...

Zeca foi na porta outra vez e abriu-lhe bem. A luz da rua, luz do dia morrendo misturada na outra claridade dos refletores, olhos grandes acesos em cima das sombras de todos os musseques, entrava com medo naquele escuro tão feio. Vavó já tinha se encostado na parede, o cobertor a tapar as pernas e a barriga.

— Então, menino, conta só! Não tenho nada, fala!...

O neto percebeu nessas palavras o mesmo desses dias todos, a razão que sempre fazia vavó perguntar, adiantar saber se tinha encontrado serviço, se já tinha ganhado qualquer coisa para comer. E ficou com vergonha ali, na frente dela, de falar aquele trabalho, serviço de monan-gamba do porto e mesmo assim o vencimento de dividir com o homem da praça. O melhor era calar a boca, não falar esses casos; ir ao trabalho; receber dinheiro e adiantar comprar coisas de comer; depois, pôr uma mentira de outro serviço.

— Nada que arranjei ainda vavó. Procurei, procurei, nada! Mano Maneco ainda m’ajudou... Meu azar, vavó!

— Comeste, menino?

— Ih!? Comi o quê então? Nada, vavó!

— Aiuê, minha barriga! Menino tinha razão mesmo. Mas a lombriga estava me roer, não pude mais parar...

Contou então, com as lamentações dela, sempre a falar também ele não tinha mais juízo, senão nada disso que ia suceder, é assim, uma pessoa fica velha e pronto! os mais novos pensam é trapo de deitar fora, pessoa tem fome, come mesmo o que aparece e depois, no sono, lhe atacam essas dores na barriga, parecia estava mesmo arder lá dentro, pior que jindungo∗, mais pior que fogo...

Zeca Santos ouvia sem atenção, na cabeça não saía mas é Delfina, aquele quissende dela, essa confusão sem querer, assim à toa mesmo, como ia lhe desfazer mesmo? Agora, apostava, a rapariga não aceitava mais conversa dele, quando desculpasse que estava doente não ia lhe aceitar, ia lhe chamar de mentiroso e vadio. Uma tristeza pesada agarrava-se, teimosa dentro dele. E o olho vermelho e inchado da chapada, estava doer, piscar, tudo na frente dele eram duas coisas. Vavó continuava:

— Pois é! Eu não lhe avisei, menino? Não lhe avisei para ir na missa, no domingo? Padre Domingos perguntou o menino, eu é que desculpei a doença.

— Sukuama! Mas padre Domingos ia me dar de comer? Ia me dar o serviço, vavó?

A dor do olho a inchar zangou Zeca, começou tirar a camisa amarela, depressa, quase lhe descosia, e vavó aproveitou logo:

— Isso, menino! Agora rasga, não é? Comeste o dinheiro aí na camisa de suingue∗, agora rasga?!... Aiuê, minha vida, estes meninos não têm juízo, não têm mais respeito nos mais velhos...

Zeca Santos quis acalmar, a cabeça começava também a doer muito:

— Mas vavó, ouve então! Não começa assim me disparatar só à toa. Verdade eu fiquei dormir, não fui na missa, e depois?...

Vavó Xíxi quase saltou, encostou bem na parede, para levantar faltava pouco:

— E depois? E depois? O menino ainda pergunta não lembra já todos os dias está me chatear: “Vavó, comida então?”, “vavó, matete onde está?”, “vavó, vamos comer é o quê?” Não lembras? Anh!... E padre Domingos, ele mesmo podia te arranjar emprego.

— Ora, possa! Serviço de varrer a igreja, não é? Não preciso!

— Cala-te a boca, menino! Coisas da igreja não falas assim!

Zeca Santos aceitou, já sabia nessas horas não adiantava falar em vavó. Se continuava ainda iam se zangar. Sentia o coração pesado desse dia de confusão e o olho magoado picava, doía, inchado, mas o que fazia mais sofrer era o medo que Delfina não ia lhe perdoar, mesmo que não tinha culpa, ia lhe trocar por João Rosa e isso punha-lhe triste. Na barriga, o bicho antigo já não roía mais. Era só uma dor quieta, funda, parecia estavam-lhe queimar ali. Com a camisa na mão procurou prego de lhe pendurar e, num instante, a cara dele, magra e comprida, ficou na claridade da porta.

— Ená, Zeca! — vavó tinha agora outra voz, admirada, mais amiga. — Chega aqui então...

Sorria; na sua cabeça velha as ideias começaram a se juntar devagar, a arranjar sua significação, a lembrar essa conversa, nem deu importância, até já tinha-se esquecido, é verdade Delfina, aquela menina de nga Joana, esteve passar ali na cubata, seis horas quase, adiantou perguntar o neto Zeca e quando vavó gemeu que não tinha voltado ainda do serviço, a menina saiu nas corridas, nem obrigada nem nada, não pôs mais explicações...

— Sente ainda, Zeca?!... O olho assim encarnado, é o quê? Pelejaste?

Zeca levou logo-logo a mão na cara para esconder, mas já era tarde: vavó tinha visto bem e, na cabeça dela, as ideias começaram brincar.

— In! Então não disse na vavó, o branco sô Souto...

— Sukuama! O branco sô Souto você falaste foi o chicote nas costas, Zeca!...

— Pois é, vavó. É nas costas. Vavó viu bem. Mas o rabo do chicote passou aqui em cima, de manhã não estava doer, agora parece mesmo a falta de luz está-lhe fazer inchar...


Mas vavó Xíxi já estava levantada. A cara dela, amachucada e magra, toda cheia de riscos, ria, enrugando ainda mais a pele, quase as pessoas não podiam saber o que é nariz, o que é beiços. Só os olhos, uns olhos outra vez novos, brilhavam.

— Ai, menino! Menino anda mesmo com seu azar, Zeca! Até mesmo no olho, chicote te apanhou-te! Azar quando chega...

Zeca Santos percebeu, dentro destas palavras, a troça de vavó Xíxi. Não podia jurar mesmo, mas aquela cara assim, a pressa de levantar na esteira, as palavras que não falavam direito, mostravam vavó já sabia Delfina tinha-lhe posto aquela chapada na cara. Mas como, então? Quem podia lhe contar? Ninguém que assistiu. Só se foi mesmo Fina que passou ali na cubata. Com esse pensamento, uma mentira grande que ele sabia afinal, Fina não tinha mesmo confiança com vavó para lhe pôr essas conversas, o coração de Zeca ficou mais leve, bateu mais com depressa e os olhos procuraram para ver bem na cara a confirmação da sua sorte. Mas nga Xíxi já estava outra vez abaixada, remexendo as panelas vazias de muitos dias e Zeca deixou-se ficar distraído, gozando a felicidade de pensar Delfina tinha passado ali.

Diferente, outra vez macia e amiga, a voz de vavó perguntou do meio das panelas e quindas∗ vazias:

— Olha só, Zeca!? O menino gosta peixe d’ontem? Espantado, nem pensou mais nada, respondeu só, guloso:

— Ai, vavó! Está onde, então?... Diz já, vavó, vavó sabe eu gosto. Peixe d’ontem...

A língua molhada fez festas nos beiços secos, lembrou as postas de peixe assado, gordo como ele gostava, garoupa ou galo tanto faz, no fundo da panela com molho dele, cebola e tomate e jindungo e tudo quanto, como vavó sabia cozinhar bem, para lhe deixar dormir tapado, só no outro dia, peixe d’ontem, é que se comia. Os olhos de Zeca correram toda a cubata escura, mas não descobriu; só vavó estava acocorada entre panelas, latas, quindas vazias.

— Ai, vavó, diz já então! A lombriga na barriga está me chatear outra vez! Diz, vavó. Está onde então, peixe d!ontem?

De pé na frente do neto, as mãos na cintura magra, vavó não podia guardar o riso, a piada. De dedo esticado, as palavras que estavam guardadas aí na cabeça dela saíram:

— Sente, menino! Se gosta peixe d’ontem, deixa dinheiro hoje, para lhe encontrar amanhã!

Zeca, banzado, boca aberta, olhava vavó mas não lhe via mais. Só a boca secava com o cuspo que queria fugir na barriga, o sangue começava bater perto das orelhas e a tristeza que chegava dessa mentira de nga Xíxi apagou toda a alegria que tinha-lhe posto o pensamento de Delfina passando ali na cubata. O olho da chapada doía. No estômago, a fome calou, deixou de mexer, só mesmo a língua queria crescer na boca seca. Envergonhado, se arrastou devagar até na porta, segurando as calças que tinha tirado para dobrar.

Por cima dos zincos baixos do musseque, derrotando a luz dos projetores nas suas torres de ferro, uma lua grande e azul estava subir no céu. Os monandengues brincavam ainda nas areias molhadas e os mais velhos, nas portas, gozavam o fresco, descansavam um pouco dos trabalhos desse dia. Nos capins, os ralos e os grilos faziam acompanhamento nas rãs das cacimbas e todo o ar estava tremer com essa música. Num pau perto, um matias∗ ainda cantou, algumas vezes, a cantiga dele de pão-de-cinco-tostões.

Com um peso grande a agarrar-lhe no coração, uma tristeza que enchia todo o corpo e esses barulhos da vida lá fora faziam mais grande, Zeca voltou dentro e dobrou as calças muito bem, para aguentar os vincos. Depois, nada mais que ele podia fazer já, encostou a cabeça no ombro baixo de vavó Xíxi Hengele e dasatou a chorar um choro de grandes soluços parecia era monandengue, a chorar lágrimas compridas e quentes que começaram a correr nos riscos teimosos as fomes já tinham posto na cara dele, de criança ainda.




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∗ jindungo — pimenta malagueta pequena.
∗ suingue — suinguista: farrista; bailarino.
∗ quinda — o mesmo que balaio; pequena cesta de carga.
∗ matias — pássaro.

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José Luandino Vieira -

Com José Luandino Vieira a literatura angolana adquire dimensão internacional. Nascido a 4 de maio de 1935 e criado à vontade nos velhos musseques da Luanda antiga, o escritor recria linguagens de origens diversas e, através de sua prosa extraordinária, fixa o fato cultural local, universalizando-o. Suas atividades literárias e políticas no quadro da luta pela libertação nacional levam-no diversas vezes à prisão, num total de onze anos.

As três narrativas aqui reunidas retratam a dura realidade dos musseques angolanos - os bairros pobres de Luanda, onde o próprio autor viveu. "Minha preocupação era ser o mais fiel possível àquela realidade. [...] Se a fome, a exploração, o desemprego, surgem com muita evidência [...] é porque isso era - digamos assim - o aquário onde meus personagens e eu circulávamos", afirma Luandino.

E, dura realidade à parte, Luandino cria personagens memoráveis. Como "Vavó" Xíxi e seu neto, que, sem trabalho e sem dinheiro, não dispensa a camisa florida ou o amor de Delfina, para desespero da avó (Vavó Xíxi e seu neto Zeca Santos). Ou o Garrido Kam'tuta, atormentado pelo papagaio que ganhava as carícias que Inácia lhe recusava (Estória do ladrão e do papagaio). Ou nga Zefa e sua vizinha, que disputam a posse de um ovo de galinha (Estória da galinha e do ovo).

Essas histórias curtas, narradas com grande maestria e um colorido muito especial, buscam na oralidade inspiração para recriar a linguagem e nos fazem lembrar da nossa própria trajetória literária.



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Luuanda 
Estórias 

Escritas no Pavilhão Prisional da PIDE e nas masmorras da l.a Esquadra da P.S.P.A., em Luanda, durante o ano de 1963. 

1.a ed. — Luanda, “ABC”, 1964. 
2.a ed. (revista) — Lisboa, Edições 70, 1972 (com uma tiragem especial de 500 + XXV exemplares). 
3.a ed. — Lisboa, Edições 70, 1974. 
4.a ed. — Lisboa, Edições 70, 1974. 
5.a ed. — Lisboa, Edições 70, 1976. 
6.a ed. — Lisboa/Luanda, Edições 70 — U.E.A., 1977. 
7.a ed. (livro de bolso) — Luanda, U.E.A., 1978.

— Circulou em Lisboa, em 1965, uma edição clandestina, com a indicação (falsa) de ter sido feita           em Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil, 
— Prêmio literário angolano Mota Veiga em 1964. 
— Grande Prêmio de Novelística da Sociedade Portuguesa de Escritores, 1965. 
— Tradução russa por Helena Riáusova: Luanda, na revista Innostranaya Literatura, Moscou,              1968. 


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