Livro II
não usa ruge algum.
Sainte-Beuve
GRATIUS
PARA UM RECÉM-CHEGADO QUE, por orgulho, jamais fazia perguntas, Julien não cometeu asneiras muito grandes. Um dia, levado a um café da rua Saint-Honoré por uma chuva súbita, um homem alto, vestindo sobrecasaca de castorina e surpreso com seu olhar sombrio, resolveu encará-lo, como o fizera outrora em Besançon o amante da srta. Amanda.
Julien reprovara-se muitas vezes ter deixado passar aquele primeiro insulto, para suportar esse olhar. Pediu explicações. O homem de sobrecasaca prontamente lançou-lhe as piores injúrias: todos os que estavam no café os cercaram, os passantes detinham-se à porta. Por uma precaução de provinciano, Julien sempre levava consigo pequenas pistolas; sua mão as apertava no bolso com um movimento convulsivo. No entanto, foi prudente, limitando-se a repetir ao homem, de minuto a minuto: Senhor, seu endereço! Eu o desprezo.
A constância com que repetia essas seis palavras acabou por impressionar os circunstantes: o outro que falava sozinho devia dar-lhe seu endereço.
Ouvindo essa decisão seguidamente repetida, o homem de sobrecasaca atirou-lhe à cara cinco ou seis cartões de visita. Felizmente nenhum atingiu-o no rosto, ele prometera-se somente usar as pistolas caso fosse atingido. O homem foi embora, não sem voltar-se de tempo em tempo para ameaçá-lo com o punho e lançar-lhe desaforos.
Julien viu-se banhado em suor. Com que então o último dos homens é capaz de perturbar-me a esse ponto!, pensou, com raiva. Como eliminar essa sensibilidade tão humilhante?
Onde buscar uma testemunha? Ele não tinha um amigo. Tivera vários conhecidos, mas todos, regularmente, ao cabo de algumas semanas de relações, afastavam-se dele. Sou insociável e estou sendo cruelmente punido por isso, pensou. Finalmente, teve a ideia de procurar um ex-tenente do 96o chamado Liévin, pobre diabo com quem costumava exercitar-se nas armas. Julien foi sincero com ele.
– Aceito ser sua testemunha, disse Liévin, mas com uma condição: se não ferir seu homem, você se baterá comigo logo a seguir.
– Certo, disse Julien encantado, e foram procurar o sr. C. de Beauvoisis no endereço indicado por seus cartões, num canto do bairro Saint-Germain.
Eram sete horas da manhã. Foi somente ao fazer-se anunciar na casa dele que Julien pensou que podia ser o jovem parente da sra. de Rênal, empregado outrora na embaixada de Roma ou de Nápoles, e que dera uma carta de recomendação ao cantor Geronimo.
Julien entregou a um camareiro um dos cartões lançados na véspera e um dos seus.
Fizeram-no esperar, a ele e à sua testemunha, três longos quartos de hora; por fim foram introduzidos num apartamento de admirável elegância. Encontraram um jovem alto, vestido como uma boneca; seus traços tinham a perfeição e a insignificância da beleza grega. Sua cabeça, notavelmente estreita, era coberta por uma pirâmide de lindos cabelos louros. Estavam frisados com muito esmero, nenhum fio de cabelo ultrapassava o outro. Foi para fazer frisar-se assim, pensou o tenente do 96o, que esse maldito nos fez esperar. O robe de chambre matizado, as pantalonas, até mesmo as pantufas bordadas, tudo era correto e maravilhosamente bem cuidado. Sua fisionomia, nobre e vazia, anunciava ideias convenientes e raras: o ideal do homem amável, o horror ao imprevisto e ao gracejo, e muita gravidade.
Julien, a quem o tenente do 96o explicara que fazer-se esperar por tanto tempo, depois de ter-lhe grosseiramente atirado à cara os cartões, era uma ofensa a mais, havia entrado bruscamente nos aposentos do sr. de Beauvoisis. Tinha a intenção de ser insolente, mas ao mesmo tempo gostaria de mostrar bom-tom.
Ficou tão admirado com a doçura das maneiras do sr. de Beauvoisis, com seu ar ao mesmo tempo compassado, importante e satisfeito de si, com a elegância admirável do que o cercava, que num piscar de olhos perdeu toda ideia de ser insolente. Não era o homem da véspera. Foi tal o espanto de deparar com um homem distinto em vez da figura grosseira encontrada no café que não pôde dizer uma só palavra. Apresentou um dos cartões que lhe foram atirados.
– É meu nome, disse o homem elegante, a quem o traje preto de Julien, às sete da manhã, inspirava muito pouca consideração; mas não compreendo, palavra de honra...
A maneira de pronunciar estas últimas palavras fez Julien voltar em parte à sua disposição anterior.
– Venho bater-me consigo, senhor, e explicou brevemente o caso.
O sr. Charles de Beauvoisis, após observar com atenção, estava bastante satisfeito com o corte do traje preto de Julien. É do Staub, não resta dúvida, ele pensava ao escutá-lo falar; esse colete é de bom gosto, as botas são elegantes; mas, por outro lado, esse traje preto já de manhã cedo!... Deve ser para escapar melhor à bala, pensou o cavaleiro de Beauvoisis.
Assim que se deu essa explicação, ele voltou a mostrar uma polidez perfeita e quase de igual para igual em relação a Julien. O colóquio foi bastante longo, o assunto era delicado; mas, por fim, Julien não pôde recusar-se à evidência. O jovem tão bem-nascido que estava à sua frente não tinha a menor semelhança com a figura grosseira que na véspera o insultara.
Julien sentia uma invencível repugnância em ir embora; prolongava a explicação. Ele observava a suficiência do cavaleiro de Beauvoisis, assim ele próprio nomeara-se, chocado com o fato de Julien chamá-lo simplesmente de senhor.
Ele admirava sua gravidade, mesclada de uma certa fatuidade modesta, mas que não o abandonava um só instante. Estava espantado com sua maneira singular de mover a língua ao pronunciar as palavras... Mas em tudo isso, enfim, não havia a menor razão para buscar querela.
O jovem diplomata oferecia bater-se de boa vontade, mas o ex-tenente do 96o, sentado já há algum tempo, de pernas afastadas, mãos sobre as coxas e cotovelos para fora, decidiu que seu amigo, sr. Sorel, não era de buscar querela com um homem só porque haviam roubado a esse homem seus cartões de visita.
Julien saiu de muito mau humor. A carruagem do cavaleiro de Beauvoisis esperava-o no pátio, diante da escadaria; por acaso, Julien ergueu os olhos e reconheceu seu homem da véspera no cocheiro.
Vê-lo, puxá-lo pela jaqueta, fazê-lo cair do assento e golpeá-lo com chicotadas foi obra de um instante. Dois lacaios quiseram defender o colega; Julien recebeu alguns socos, mas conseguiu armar uma das pistolas e disparar contra eles, que fugiram. Tudo isso passou-se em menos de um minuto.
O cavaleiro de Beauvoisis descia as escadas com a gravidade mais divertida, repetindo com sua pronúncia de grande senhor: Que é isso? Que é isso? Estava evidentemente muito curioso, mas a importância diplomática não lhe permitia demonstrar mais interesse. Quando soube do que se tratava, a altivez disputou ainda em seus traços com o sangue-frio levemente jocoso que um rosto de diplomata nunca deve perder.
O tenente do 96o compreendeu que o sr. de Beauvoisis estava disposto a bater-se: também diplomaticamente, quis conservar para o amigo as vantagens da iniciativa. – Desta feita, exclamou, há razão para duelo! – Eu diria o mesmo, respondeu o diplomata.
– Esse patife está despedido, disse ele aos lacaios; que um outro suba. Abriram a portinhola da carruagem, e o cavaleiro fez questão absoluta de fazer as honras a Julien e à sua testemunha. Foram buscar um amigo do sr. de Beauvoisis, que indicou um lugar tranquilo. A conversa, durante o trajeto, foi muito correta. Só havia de singular o diplomata em robe de chambre.
Esses senhores, embora muito nobres, pensou Julien, não são enfadonhos como as pessoas que vêm jantar na casa do sr. de La Mole; e vejo por que, acrescentou um instante depois, eles se permitem ser indecentes. Falava-se das dançarinas que o público aplaudira num balé oferecido na véspera. Os dois senhores faziam alusão a anedotas picantes que Julien e sua testemunha, o tenente do 96o, ignoravam completamente. Julien não cometeu a tolice de afirmar conhecê-las; confessou de boa vontade sua ignorância. Essa franqueza agradou ao amigo do cavaleiro, que contou essas anedotas nos mínimos detalhes, e muito bem.
Uma coisa deixou Julien muito espantado. Um altar construído no meio da rua, para a procissão de Corpus Christi, deteve por um instante a carruagem. Os dois senhores permitiram-se vários gracejos; o pároco, segundo eles, era filho de um arcebispo. Jamais o marquês de La Mole, que queria ser duque, teria dito tal coisa.
O duelo foi concluído num instante: Julien recebeu um tiro no braço, ataram-no com lenços embebidos em aguardente, e o cavaleiro de Beauvoisis pediu muito cortesmente a Julien a permissão de reconduzi-lo à sua casa, na mesma carruagem que o trouxera. Quando Julien indicou a mansão de La Mole, houve uma troca de olhares entre o jovem diplomata e seu amigo. O fiacre de Julien estava ali, mas ele achava a conversação daqueles senhores infinitamente mais divertida que a do bom tenente do 96o.
Meu Deus! Um duelo é só isso?, pensava Julien. Como estou feliz de ter reencontrado aquele cocheiro! Que desgraça se tivesse que suportar mais uma injúria num café! A conversa divertida quase não fora interrompida. Julien compreendeu então que a afetação diplomática serve para alguma coisa.
Então o tédio não é inerente, ele pensava, a uma conversa entre pessoas de alto nascimento! Estes gracejam da procissão de Corpus Christi, ousam contar em detalhes pitorescos anedotas escabrosas. Não lhes falta senão o raciocínio político, mas essa falta é mais do que compensada pela graça do tom e a perfeita justeza das expressões. Julien sentia uma forte inclinação por eles. Como eu seria feliz se os visse com frequência!
Assim que se separaram, o cavaleiro de Beauvoisis apressou-se em tomar informações: elas não foram brilhantes. Ele estava muito curioso de conhecer seu homem; podia decentemente fazer-lhe uma visita? As poucas informações obtidas não eram encorajadoras.
– Isso é terrível!, ele disse à sua testemunha. Não posso confessar que me bati com um simples secretário do sr. de La Mole, e ainda mais porque meu cocheiro roubou-me os cartões de visita.
– Seguramente haveria nisso tudo a possibilidade de ridículo.
Na mesma noite, o cavaleiro de Beauvoisis e o amigo disseram em toda parte que aquele sr. Sorel, aliás um jovem perfeito, era filho natural de um amigo íntimo do marquês de La Mole, o que foi aceito sem dificuldade. Uma vez estabelecido isso, o jovem diplomata e o amigo dignaram-se fazer algumas visitas a Julien, durante os quinze dias em que passou em seu quarto. Julien confessou-lhes que só fora uma vez na vida ao Teatro da Ópera.
– É espantoso, disseram-lhe, todos vão até lá; é preciso que assista, em sua primeira saída, ao Conde Ory.
No Teatro da Ópera, o cavaleiro de Beauvoisis apresentou-o ao famoso cantor Gerônimo, que gozava então de imenso sucesso.
Julien quase cortejava o cavaleiro; aquela mistura de respeito por si próprio, de importância misteriosa e de fatuidade de homem jovem encantava-o. Por exemplo, o cavaleiro gaguejava um pouco porque tinha a honra de ver com frequência um grande senhor que tinha esse defeito. Julien nunca havia encontrado numa única pessoa o ridículo que diverte e a perfeição das maneiras que um pobre provinciano deve buscar imitar.
Ele era visto no Teatro da Ópera com o cavaleiro de Beauvoisis; essa ligação fez seu nome ser citado.
– Muito bem!, disse-lhe um dia o sr. de La Mole, eis então o filho natural de um rico fidalgo do Franco-Condado, meu amigo íntimo!
O marquês cortou a palavra a Julien, que protestava não haver contribuído de forma alguma para dar crédito a esse boato.
– O sr. de Beauvoisis não aceitou ter duelado com o filho de um carpinteiro.
– Eu sei, eu sei, disse o sr. de La Mole; cabe a mim agora dar consistência a essa história, que me convém. Mas tenho um favor a pedir, que só lhe custará uma meia hora de seu tempo: vá diariamente ao Teatro da Ópera, às onze e meia, assistir no vestíbulo à saída da gente fina. Você ainda tem hábitos de provinciano; precisa desfazer-se deles; aliás, não é ruim conhecer, ao menos de vista, grandes personalidades junto às quais posso um dia enviá-lo em missão. Passe no escritório do teatro para identificar-se e obter os ingressos.
continua página 191...
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