Luaanda... Estória do Ladrão e do Papagaio
continuando...
A reunião era sempre aí na quitanda do Amaral, oito horas — oito e meia, hora que começavam sair nas cubatas, jantar já na barriga, depois de passar o dia à toa na Baixa, procurando emprego de verdade ou dormindo no quintal quando era dia seguinte dum trabalho. João Miguel é que estava sempre o primeiro a chegar e quando Dosreis entrava já o rapaz tinha bebido mais de meio-litro∗ com gasosa como ele gostava. Mas nessa noite dos patos tudo que começou, começou passar ao contrário, parecia já estava se adivinhar era diferente, alguma coisa que ia suceder.
Quando o Lomelino chegou, cansado do caminho no Rangel e mais para lá, o João Miguel ainda não tinha aparecido. Perguntou para menino Luís, o empregado, mas ele falou não, o Via-Rápida não tinha estado lá. Nove horas eram quase, cadavez o rapaz tinha ido no cinema com alguma pequena, mas sempre assim ele avisava primeiro. Só que hoje não podia faltar, tinha-lhe deixado um aviso na vizinha Mariquinha, para lhe dar encontro oito e meia no Amaral. Bem, esperar.
Sentado no canto deles, Lomelino acendeu o cigarro, mas a cabeça não queria ficar mais quieta, aguentar o jeito de esperar no amigo, também não era tarde ainda. Não, Os pensamentos não aceitavam e a preocupação enchia-lhe pouco-pouco com o virar do tempo. Porque ia ser pena se perdiam essa noite assim escura para fazer o trabalho dos patos do Ramalho da Silva, lá no Marçal. Já andava lhe estudar muito tempo, desde o dia João Miguel descobriu era um pouco fácil de fazer e o lucro certo. Mas lucro certo também só se o Lomelino ajudasse com os conhecimentos dele. Custou a convencer o Kabulu, o homem não gostava esse assunto de criação, só queria as coisas de guardar numa cubata sozinha sem ninguém para lhe tomar conta, bicho que mexe e fala é preciso tratar e sempre chama polícia. Dosreis falou agora as coisas quietas estavam bem guardadas e as patrulhas eram de mais e, depois ainda, nestes tempos, entrar em casa leia é perigoso, as pessoas põem logo tiro e a desculpa é que é terrorista e pronto, os casos ficam arrumados. Voltou então para receber resposta nesse dia, sete horas lá estava, encostado no balcão, bebendo seu meio-litro, fingindo. Sô Kabulu, gordo e encarnado, veio para ele, mas só lhe disse estas palavras:
— Carreguem-lhes na casa do Zeca Burro!
Melhor. No Zeca Burro conhecia-lhe bem: matador de cabritos roubados para vender a carne, uma vez fizeram-lhe até um negócio dumas cabrinhas que já estavam mesmo velhas e doentes e rendeu. Com ele era canja; o pior era o assunto quem tinha-lhe tratado era o Kabulu e esse gosmeiro é que ia tirar o lucro, apostava só ia lhes pagar os bicos preço do Kinaxixi∗ menos que metade e depois recebia mais que o dobro no Zeca Burro. E eram mesmo uns patos gordos, não andavam no lixo, vadiar nos musseques, não. Tinha um até, branco quase, que ele tinha-lhe visto bem, esse bicho cadavez ia rebentar se lhe engordavam mais, quatro quilos apostava.
Saiu embora na loja do Kabulu, no escuro veio vindo devagar para ganhar tempo e não cansar de mais, a respiração já estava lhe fazer partidas, nesses dias de trabalho o coração acelerava e o sangue, habituado à mangonha do trabalho quieto, corria logo com a ideia do escuro, do serviço, e também pensava cadavez o João Miguel ia refilar por ele não ter-se lembrado mais do Zeca Burro, assim iam perder um lucro de patos gordos. Mas com João Miguel ele aceitava, o menino era mesmo monandengue ainda, vinte e quatro anos só, obedecia-lhe como pai, respeito de mais velho. A não ser o rapaz tinha sonhado outra vez os casos antigos e estava na diamba. Talvez era isso para não estar lá na hora combinada, só porque adiantou fumar. E nem mesmo ao menos o Kam’tuta para lhe acompanhar, ali no sozinho. Mas esse, ele sabia o rapaz agora esses dias só rondava a quitanda da Viúva para ver a Inácia, parecia era um galo com aquela cabeça grande em cima do pescoço fino a arrastar a perna, Deus Nosso Senhor lhe perdoasse, não deve se fazer pouco um aleijado, mas era mesmo parecido um galo o Kam’tuta.
— Boas-noites, compadre Dosreis!
Era o Via-Rápida e sentou logo parecia nem podia mais com o corpo dele. Ficou olhar, banzado, na cara do Lomelino, parecia nunca tinha-lhe visto mais na vida, os olhos quase fechados, quietos, cheios de encarnado de sangue, respirando devagar, mas com força, sopro de vapor de comboio. Sempre que lhe via assim, Dosreis pensava o rapaz era uma máquina. Não era mais porque o serviço dele era agulheiro, no tempo que estava trabalhar no Cê-Efe-Bê∗, no Luso, nem das estórias que ele punha falando os casos da sua vida de ferroviário. Mas aqueles olhos assim quietos, vermelhos, pareciam eram mesmo as luzes da locomotiva. A força do vento da respiração, na boca, saía com o fumo do cigarro, e o nariz dele, largo e achatado como a frente da máquina, assobiava nessas horas. Forte e todo encolhido na cadeira, só a cabeça esticada por cima da mesa, parecia estava fazer uma força grande de rebocar muitos vagões de minério. Mas a verdade era só que o João Miguel estava chegar mas era de fumar a diamba. E não queria falar.
— Estás bom, João?
— Bem ‘brigado, mano Dosreis!
Silêncio outra vez. Custava engatar a conversa assim com ele, era preciso ainda deixar-lhe sozinho, o veneno da planta derreter no sangue com a velocidade que ele andava e sair embora na respiração. Perigoso até falar, mesmo que quase sempre João Miguel ficava mas é triste porque ele não queria mais fumar, só fumava mesmo quando os casos antigos começavam-lhe arreganhar, não deixavam dormir.
— Vai um copo, João?
— ‘brigado, vai.
O quente era bom dentro dele, a paz, uma vontade de não fazer mesmo nada, só sorrir, sorrir, pôr as coisas boas, cantar. Mas os casos não deixavam, estavam fundos, bem fundos, porque Félix era o grande amigo e lá não chegava o feitiço da diamba. Mesmo que lhe tirava a raiz deles, não conseguia apagar mais o sangue espalhado na linha, nas rodas da máquina, nem aquela figura do Félix, todo estragado, a cabeça do outro lado, dentro das linhas, em cima da brita, e o corpo, o corpo de miúdo ainda, torcido, as pernas, com o peso da roda no pescoço, tinham-se levantado, parecia até ele estava com elas no ar na hora da ginástica do clube, até dava vontade de rir. Não, esse sangue nada que lhe tirava no fundo dos olhos, esse cadáver do Félix falecido assim, matado por ele, ele mesmo, João Miguel. Lembra bem: a 205 vinha devagar, comboio da lenha; o Chaveco, maquinista, pôs um adeus de amigo e o Félix fazia-lhe caretas, abraçado no outro, gozando e avisando-lhe a rir:
— Logo nas cinco! Sai treino!
E parece mesmo pode ainda ver os risos dos homens no escuro da máquina, o fumo branco que lhes rodeava parecia grande cacimbo, sentir sempre nas orelhas esses risos. E depois?...
— Mano Dosreis, este vinho é uma merda!
— É igual dos outros, João.
— Mas é uma merda!
— Já sei o que vais falar...
— Pois é! Estou pensar isso mesmo: uma boa via-rápida, um copo bem cheio, a gente bebe essa aguardente, senta no chão, fica com os companheiros, conversa da vida, conversa do serviço, conversa de pequenas, a mutopa∗ aí bem carregada... Aiuê! Saudade, mano! A mu-topa cheinha, tabaco bom, a água a cantar na cabaça, chupa, chupa... Não é essa porcaria da diamba, não é essa merda desse vinho de brancos...
E o grande silêncio outra vez, só o arder dos cigarros e o sangue e a voz dos capatazes a correr, o chefe, o guarda-fios∗, fator∗, fiel∗, todos a porem-lhe socos, sacana de negro e mais coisas, bêbado, bandido... Mas quem gostava o Félix mais do que ele, quem? Pois é, mas foi a sua mão, João Miguel, que mandou a 205 contra o comboio do ferro; foi a sua mão que pôs a roda da 205 em cima do pescoço do Félix, menino fraquinho, nem que aguentou a pancada do choque, caiu logo cá embaixo e a máquina, no pequeno arranque na frente, parou-lhe em cima do pescoço.
— Não! Não quero mais isto! Não posso, mano Dosreis, não posso...
— Calma, então! Olha: vamos ainda lá fora, preciso te falar, assunto sério, temos um serviço...
O vento frio do cacimbo corria às gargalhadas com os papéis pelo musseque fora. As luzes da rua, lá mais longe, pareciam estavam derretidas, descia a espuma no chão ou subia no ar como fumo de fogueira que arde bem, sem lenha verde.
— Então, arranjaste?
— Arranjei. O mesmo. Falou sim, podemos entregar. Só que fica mais longe, não quer lá em casa. Qu’até meia-noite o homem espera. É o Zeca, não sei se lhe conheces...
— Zeca Burro?
— É ele, ele mesmo;
— Não é teu amigo, esse gajo?
— Não, nada mesmo, nem que lhe cumprimento... — mentiu Dosreis. — E que o resto é com a gente.
— Está bem. Vamos combinar.
Sentia-se o ar fresco e a conversa estava fazer melhor no Via-Rápida. Falava mais direito, guardava aqueles olhos grandes mais abertos, mas na cabeça começava trabalhar bem, todos os porquês e como ele resolvia logo-logo, também conhecia o quintal como a cara dele e o plano era fácil, a casa ficava nuns fundos de cubatas, só beco estreitinho é que tinha para lá, caminho das patrulhas um bocado longe.
— E a hora?
— Onze e meia é bom. Acabamos-lhe rápido e depois você pode mesmo andar no meio das pessoas que vão sair no cinema...
Dosreis estava guardar, com receio, a pergunta mais especial para fazer só no fim. Nesses dias de diamba ninguém que sabia por quê, o João não gostava mais o Garrido; eles, que todos dias eram braço embaixo, braço em cima, falando conversas diferentes das pessoas e das maneiras de viver a vida, até admirava. Mas era mesmo a verdade: sempre que Via-Rápida lembrava Félix não gostava a amizade do Garrido e quase escapava passar luta.
— João!... E o Kam’tuta, levamos-lhe?
Mal que tinha posto a pergunta o não do rapaz foi alto, com força, via-se não admitia resposta ao contrário.
— Mas vê ainda... Ele podia ficar no fim do beco para assobiar as patrulhas...
— Não! Não precisa! Eu vou lá; você vigia. Depois você carrega-lhes no saco e pronto. Não quero aleijado agarrado nas minhas pernas!
— Deixa então, não se zanga. Cada vez também não lhe levamos noutros casos e o rapaz sempre aceita...
— Não, não quero esse coxo da merda, já disse! Até ando a desconfiar ele vai ser é bufo, com aquelas conversas de mudar a vida, para amigar...
— Elá, Via! Qu’é isso, então? Pôr falsos assim? Conheço-lhe de miúdo, João, e você é amigo dele também...
— Amigo, eu!? Eu só gosto as pessoas inteiras, meio-homem eu não acompanho...
— Não pensei falavam as pessoas nas costas, amigos!
João não acabou falar, essa voz saiu no escuro, já lá estava à espera, gelou o coração bom do Lomelino, parecia o sangue tinha fugido todo com a vergonha, naquela hora. No peito de João Miguel é que não: cresceu a raiva, aqueceu a vontade de bater à toa, rasgar-se, arranhar-se em todo o corpo...
Puxando a perna, sempre parecia ia ficar atrás, Garrido saiu do escuro da esquina da quitanda e veio, com devagar, a cabeça levantada e os olhos. Dosreis avançou para ele; João Miguel recuou, encostou na parede.
— Escuta ainda, Garrido! Eu explico...
— Não adianta, amigo Dosreis. Eu ouvi tudo. Na hora que eu cheguei; vocês falavam a hora de atacar e fiquei ali a espiar...
João Miguel saltou, raivoso.
— Não dizia? Não te dizia? Bufo é que você vai ser!
Dosreis aguentou-lhe, meteu no meio, separando com o seu corpo velho.
— Não m’insulta só, João! Por acaso sou teu amigo, mas não vou deixar mais que me façam pouco à toa... Jurei!
E tinha uma vontade diferente nos olhos azuis do rapaz, Lomelino nunca tinha-lhes visto assim. Parecia até a perna era já boa, a sair direita do calção. Garrido estava todo em pé, o corpo magro levantado, mas o que admirava mais era ainda a calma daquela cara de monandengue, os olhos bem de frente no João Miguel, ele nem lhes aguentou, teve de baixar a grande cabeça de máquina de comboio e o Kam’tuta repetia devagar, cada palavra sua vez:
— Todos me fazem pouco, mas acabou, compadre Dosreis! E você ainda, João Miguel, meu amigo! É a você eu quero avisar primeiro; você ganhaste raiva de mim, não te fiz mal. Sempre que vou nos serviços, faço como vocês. Não têm culpas para mim. Quando vieste, já m’encontraste com meu compadre Dosreis. Por que agora eu é que saio? É porque sou aleijado, coxo, meio-homem, como você falou? Não admito mais ninguém me faz pouco. Luto, juro que luto! Nem que você me mata com a porrada, não faz mal... Ouviste? Ouviste, João Miguel?
Parecia o rapaz estava maluco mesmo. Sacudiu o Dosreis do caminho, ele deixou-lhe passar, admirado com este Garrido novo, levantado. Mas não tinha mais medo, nada que ia suceder, o João nunca que aceitava pelejar com o Kam’tuta.
— Ouve bem! Por acaso você é meu amigo, é por isso eu te aviso, sabes? Não tenho medo, fica sabendo. Nem de você nem de nenhum sacana neste musseque... Sukua’! Aleijado, meio-homem! Olha: você é grande, mas não presta; o seu corpo está crescido, mas o coração é pequeno, está raivoso, cheio de porcarias.
— Cala-te a boca! Cala-te a boca, mano Garrido, senão...
— Bate, se você é capaz. Arreia! É isso que eu quero com você, não percebeste ainda? Quero pelejar! Ao menos um dia luta com um homem, um que não tem medo. Arreia, bate, se você tem coragem!
Direito, no meio da noite, o Garrido Kam’tuta crescia, não estava mais o rapaz torto, sempre a cabeça no peito, escondendo em todos os cantos, fugindo as berridas dos monas que lhe insultavam:
Kam’tuta, sung’ó pé!... Sung’ó pé...
E João Miguel via nascer na frente dele, outra vez, o Félix. Era ainda o seu amigo que estava lhe falar ali, nascia dentro do Kam’tuta com aquelas frases corajosas que sempre soubera, aquela maneira de ficar ganhar mesmo quando lhe davam uma boa surra de pancada. Fechou as mãos grossas escondendo-lhes nos bolsos, elas queriam sair sozinhas para atacar o Garrido, se ele não ia se calar, não podia mais ouvir, não podia deixar mais entrar aquelas palavras que ele falava e estavam estragar todo o trabalho bom, paciente, da diamba. Não podia sentir assim a verdade a queimar-lhe as orelhas, por dentro, por fora da cabeça, era mesmo melhor fugir senão ia esborrachar o mulato, ele era um fraco no corpo...
— Cala o Garrido, Dosreis cala-lhe a boca, senão mato-lhe!
— És um cobarde, João! Você tem medo da verdade! Você, no seu coração, tens é um ninho de ratos medrosos. Aceita o que sucedeu, vence essa culpa que você tem. Não fica medroso, não foge da diamba, luta com a dor, luta com a vida, não foge, seu cagunfas∗, só sabe pôr chapadas e socos nos outros, nos mais fracos, mas contigo mesmo não podes lutar, tens medo... És um merda! Tenho vergonha de ser mais seu amigo!
Lomelino correu para lhe agarrar, mas falhou. O mulato mexia parecia tinha feitiço, correu mesmo com a perna parecia já nem era aleijado nem nada, vuzou∗ uma cabeçada no João Miguel.
— Deixa-lhe, João! O rapaz está bêbado!
Mas João Miguel não aceitava, nem mesmo as palavras sempre boas do amigo Dosreis serviam, nessa hora em que a raiva estava nas mãos a torcer dentro dos bolsos, a pensar apertar mesmo o pescoço do mulato, aquele pescoço magro de osso saliente parecia até com o feitio das mãos. Mas, no coração, uma chuva de cacimbo subia, ele sentia-lhe chegar nas janelas dos olhos; nas orelhas dele aquelas palavras que nunca ninguém tinha-se atrevido a falar-lhe, roíam, punham eco em todos os cantos do corpo; e a cabeça pesada, estalava, parecia os ossos eram pequenos para guardar tudo o que estava pensar, tudo o que as falas do Kam’tuta tinha-lhe soltado lá dentro, já ninguém que lhe amarrava mais.
Avançou para o Garrido; enxotou com uma só mão o Dosreis, foi bater na parede; depois parou mesmo na frente do mulato, só ficou ouvir-se a respiração assustada. A cabeçada na barriga era nada mesmo, mas aqueles olhos azuis, fundos, numa cara de miúdo, esses é que ele não admitia, não podia-lhes consentir assim arreganha-dores na cara dele, não podiam continuar a dizer tudo assim calados. Levantou a mão fechada, grande, pesada biela de locomotiva, em cima da cabeça do Kam’tuta para lhe esborrachar.
— Bate! — falou, cheio de calma, o Garrido.
Nada. Silêncio de vento a correr cafucambolando∗ pelo meio das cubatas.
— Bate, cobarde! — repetiu-lhe Kam’tuta.
O braço grande, pau de imbondeiro∗ levantado no ar e Lomelino rezava para dentro, nada que podia fazer mais nessa hora, para João não lhe deixar cair, era a morte de Garrido.
— Bate, se tens coragem!
Já tremia a voz de Garrido, mas os olhos eram ainda os mesmos, colados na cara de João Miguel, ele não podia fugir naquela luz, estava preso, amarrado naquela coragem nova dum homem fraco, não precisava mais ter o corpo grande para lhe desafiar assim, mostrar uma pessoa aguenta de frente os casos da vida, quando é preciso.
— Deixa o rapaz, Via! Favor...
Foi um soco no João, a voz assim a pedir, de Dosreis, doeu mais que tudo, um mais velho como ele não pedia, mandava. A vergonha veio mais depressa, o sangue fugiu todo, a voz rouca um pouco, do Lomelino, é que abaixou o braço, os olhos, todo o grande corpo do João. Com raiva de bater mas era no Lomelino, sem saber ainda o que podia fazer nessa hora, João Miguel desatou fugir no areal, pelo frio adiante, na direção das luzes derretidas no meio do cacimbo, com o Lomelino dos Reis atrás dele.
Garrido Kam’tuta virou então no escuro, com devagar, arrastando outra vez a perna aleijada. Toda coragem tinha fugido embora com os amigos e, assim, só foi encostar-se na parede da quitanda sem força para nada. Sentou no chão e desatou chorar com choro silencioso.
Na mesma hora que a patrulha dava encontro com o cap’verde Lomelino dos Reis e lhe agarrava com um saco cheio de patos gordos, o Garrido Fernandes Kam’tuta estava roubar o papagaio Jacó.
continua página 68...
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José Luandino Vieira -
Com José Luandino Vieira a literatura angolana adquire dimensão internacional. Nascido a 4 de maio de 1935 e criado à vontade nos velhos musseques da Luanda antiga, o escritor recria linguagens de origens diversas e, através de sua prosa extraordinária, fixa o fato cultural local, universalizando-o. Suas atividades literárias e políticas no quadro da luta pela libertação nacional levam-no diversas vezes à prisão, num total de onze anos.
As três narrativas aqui reunidas retratam a dura realidade dos musseques angolanos - os bairros pobres de Luanda, onde o próprio autor viveu. "Minha preocupação era ser o mais fiel possível àquela realidade. [...] Se a fome, a exploração, o desemprego, surgem com muita evidência [...] é porque isso era - digamos assim - o aquário onde meus personagens e eu circulávamos", afirma Luandino.
E, dura realidade à parte, Luandino cria personagens memoráveis. Como "Vavó" Xíxi e seu neto, que, sem trabalho e sem dinheiro, não dispensa a camisa florida ou o amor de Delfina, para desespero da avó (Vavó Xíxi e seu neto Zeca Santos). Ou o Garrido Kam'tuta, atormentado pelo papagaio que ganhava as carícias que Inácia lhe recusava (Estória do ladrão e do papagaio). Ou nga Zefa e sua vizinha, que disputam a posse de um ovo de galinha (Estória da galinha e do ovo).
Essas histórias curtas, narradas com grande maestria e um colorido muito especial, buscam na oralidade inspiração para recriar a linguagem e nos fazem lembrar da nossa própria trajetória literária.
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Luuanda
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