segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Stendhal - O Vermelho e o Negro: A Mansão de La Mole (IV-2)

Livro II 

Ela não é galante,
não usa ruge algum.

Sainte-Beuve



Capítulo IV

A MANSÃO DE LA MOLE


Que faz ele aqui? Estaria satisfeito? Pensaria agradar?

RONSARD


continuando...



O conde Norbert, ele pensava, que vi fazer três rascunhos para uma carta de vinte linhas a seu coronel, ficaria bem feliz se tivesse escrito na vida uma página como as do sr. Sainclair. 
Passando despercebido por causa de sua pouca importância, Julien aproximou-se sucessivamente de vários grupos; seguia de longe o barão Bâton e queria ouvi-lo. Esse homem de tanto espírito tinha um ar inquieto, e Julien só o viu sossegar um pouco depois de encontrar três ou quatro frases espirituosas. A Julien pareceu que esse gênero de espírito tinha necessidade de espaço.
O barão não conseguia dizer palavras; precisava, pelo menos, de quatro frases de seis linhas cada uma para ser brilhante.

Esse homem não conversa, disserta, disse alguém atrás de Julien. Ele virou-se e corou de prazer ao ouvir o nome de conde Chalvet. Era o homem mais fino do século. Julien lera várias vezes seu nome no Memorial de Santa Helena e nos fragmentos de história ditados por Napoleão. O conde Chalvet era breve ao falar; suas observações eram relâmpagos, justas, vivas, profundas. Se falava de um assunto, na mesma hora a discussão avançava. Ele apresentava fatos, era um prazer ouvi-lo. De resto, em política era um cínico descarado.

– Sou independente, ele dizia a um senhor que exibia três medalhas, das quais aparentemente zombava. Por que querem que eu tenha hoje a mesma opinião de seis semanas atrás? Nesse caso, minha opinião seria meu tirano.

Quatro jovens austeros, que o cercavam, fizeram cara feia; esses senhores não gostam do tipo brincalhão. O conde percebeu que fora longe demais. Por sorte, avistou o honesto sr. Balland, tartufo da honestidade. Pôs-se a falar com ele; outros se aproximaram, compreendeuse que o pobre Balland ia ser imolado. À força de moral e de moralidade, embora horrivelmente feio, e depois de primeiros passos na sociedade difíceis de contar, o sr. Balland casara com uma mulher muito rica, que morrera; a seguir casara com outra mulher muito rica, nunca vista nas rodas sociais. Ele desfruta, com toda a humildade, de uma renda de sessenta mil libras, tendo ele próprio bajuladores. O conde Chalvet falou-lhe de tudo isso, e sem piedade. Umas trinta pessoas haviam se reunido em torno deles. Todos sorriam, mesmo os jovens austeros, a esperança do século.
Por que ele vem à casa do sr. de La Mole, onde é evidentemente o objeto de troça?, pensou Julien. Aproximou-se do abade Pirard para perguntar-lhe isso.
O sr. Balland retirou-se.

– Bem, disse Norbert, um dos espiões de meu pai já partiu. Agora só resta o coxo do Napier.

Seria essa a chave do enigma?, pensou Julien. Mas, nesse caso, por que o marquês recebe o sr. Balland?
O severo abade Pirard fazia cara feia num canto do salão, quando ouvia os lacaios anunciarem.

– Isto é um antro, ele dizia como Basílio, só vejo chegar gente corrupta.

É que o severo abade não conhecia o que está junto à alta sociedade. Mas, através de seus amigos jansenistas, tinha noções muito exatas sobre esses homens que só comparecem aos salões por sua extrema sagacidade a serviço de todos os partidos, ou por sua fortuna escandalosa. Durante alguns minutos, naquela noite, ele respondeu com franqueza às perguntas feitas por Julien, depois calou-se de repente, desolado por sempre falar mal de todo o mundo, e imputando-se pecado. Bilioso, jansenista, e acreditando no dever da caridade cristã, sua vida nas rodas sociais era um combate.

– Que cara tem esse abade Pirard! disse a srta. de La Mole, quando Julien voltou para junto do canapé.

Julien ficou irritado, no entanto ela tinha razão. O sr. Pirard era incontestavelmente o homem mais honesto do salão, mas seu rosto avermelhado, que se agitava com as contorções de sua consciência, tornava-o horrendo naquele momento. Depois disso, como acreditar nas fisionomias?, pensou Julien; é no momento em que a delicadeza do abade Pirard censura-se algum pecadilho que ele tem o aspecto mais atroz; enquanto no rosto desse Napier, espião conhecido de todos, lê-se uma felicidade pura e tranquila. Contudo, o abade Pirard fizera grandes concessões, contratara um criado e estava muito bem-vestido.
Julien notou algo de singular no salão: era um movimento de todos os olhos em direção à porta e um semi-silêncio súbito. O lacaio anunciava o famoso barão de Tolly, em torno do qual as eleições acabavam de criar um caso. Julien avançou e o observou bem. O barão presidia um colégio eleitoral e teve a ideia luminosa de escamo tear as cédulas com os votos de um partido. Para que houvesse compensação, ele as substituía por outras com um nome que lhe fosse agradável. Essa manobra decisiva foi percebida por alguns eleitores que se apressaram a cumprimentar o barão de Tolly. O bom homem ainda estava pálido em consequência desse caso. Espíritos malformados haviam pronunciado a palavra “cadeia”. O sr. de La Mole recebeu-o friamente. O pobre barão logo foi embora.

– Se ele nos deixa tão depressa, é para ir à casa do sr. Comte, disse o conde Chalvet; e todos riram.

Entre alguns grandes senhores calados, intrigantes e, na maior parte, corruptos, mas todos homens de espírito que, naquela noite, compareciam sucessivamente ao salão do sr. de La Mole (ele era cogitado para um ministério), o pequeno Tanbeau fazia suas primeiras armas. Embora não tivesse ainda a capacidade de síntese, procurava compensá-la, como se verá, pela energia das palavras.

– Por que não condenar esse homem a dez anos de prisão?, ele dizia no momento em que Julien se aproximou de seu grupo; é no fundo de uma masmorra que os répteis devem ser confinados; eles devem morrer à sombra, caso contrário seu veneno se exacerba e ficam mais perigosos. De que adianta condená-lo a uma multa de mil escudos? Ele é pobre, vá lá, tanto melhor; mas seu partido pagará por ele. Era preciso quinhentos francos de multa e dez anos de masmorra.

Santo Deus! Quem é o monstro de que falam?, pensou Julien, que admirava o tom veemente e os gestos bruscos do colega. O rosto magro e repuxado do sobrinho favorito do acadêmico estava medonho naquele momento. Logo Julien ficou sabendo que se tratava do maior poeta da época.

– Ah! Monstro!, exclamou Julien a meia voz, e lágrimas generosas umedeceram-lhe os olhos. Ah! Seu patife! Farei que engula essas palavras.

Eis aí, continuou a pensar, os rebotalhos do partido do qual o marquês é um dos chefes! E esse homem ilustre que ele calunia, quantas condecorações, quantas sinecuras não teria acumulado, se tivesse se vendido, não digo ao ministério vulgar do sr. de Nerval, mas a alguns desses ministros passavelmente honestos que vemos sucederem-se?
O abade Pirard fez de longe um sinal a Julien; o sr. de La Mole acabava de lhe dizer alguma coisa. Mas quando Julien, que nesse momento escutava, de olhos baixos, as lamúrias de um bispo, ficou livre enfim e pôde aproximar-se do amigo, encontrou-o monopolizado pelo abominável Tanbeau. Aquele monstrinho o execrava como a fonte do favor de Julien, e vinha cortejá-lo.
Quando a morte nos livrará dessa velha podridão? Era nesses termos, de uma energia bíblica, que o homenzinho de letras falava naquele momento do respeitável lorde Holland. Seu mérito era saber perfeitamente a biografia dos homens vivos, e ele acabava de passar rapidamente em revista todos os homens que podiam aspirar a alguma influência sob o reinado do novo rei da Inglaterra.
O abade passou a um salão vizinho; Julien o acompanhou:

– O marquês não gosta de escrevinhadores, estou avisando; é sua única antipatia. Saiba o latim, o grego, se puder, a história dos egípcios, dos persas etc., e ele o honrará e o protegerá como a um sábio. Mas, se escrever uma página em francês, e principalmente sobre matérias graves e acima de sua condição na sociedade, ele o chamará de escrevinhador e porá mau olhado em você. Como não conhece, habitando a mansão de um grande senhor, a frase do duque de Castries sobre d’Alembert e Rousseau: “Essa gente quer pensar sobre tudo e não tem mil escudos de renda”?
Tudo se sabe, pensou Julien, tanto aqui como no seminário! Ele escrevera oito ou dez páginas bastante enfáticas: era uma espécie de elogio histórico do velho cirurgião-mor que, dizia, o fizera homem. E meu caderno sempre esteve fechado à chave! Subiu a seus aposentos, queimou o manuscrito e voltou ao salão. Os patifes brilhantes haviam-no deixado, restavam apenas os homens com condecorações.
Ao redor da mesa, que os criados haviam trazido já servida, achavam-se sete ou oito mulheres muito nobres, muito devotas e afetadas, com idades de trinta a trinta e cinco anos. A brilhante marechala de Fervaques entrou, desculpando-se pelo atraso. Era mais de meia-noite; ela foi tomar seu lugar junto à marquesa. Julien ficou profundamente emocionado; ela possuía os olhos e o olhar da sra. de Rênal.
O grupo da srta. de La Mole continuava animado. Ela ocupava-se, com os amigos, de zombar do infeliz conde de Thaler. Era o filho único de um famoso judeu, célebre pelas riquezas que adquirira emprestando dinheiro aos reis para fazerem a guerra aos povos. O judeu morrera havia pouco, deixando ao filho cem mil escudos de renda por mês e um nome, infelizmente, muito conhecido! Essa posição singular teria exigido simplicidade de caráter ou muita força de vontade.
Desgraçadamente, o conde era apenas um bom homem ornado de todo tipo de pretensões que seus aduladores lhe inspiraram.
O sr. de Caylus dizia que lhe haviam sugerido a vontade de pedir em casamento a srta. de La Mole (a qual era cortejada pelo marquês de Croisenois, que futuramente seria duque com uma renda de cem mil libras).

– Ah! Não o acusem de ter uma vontade, dizia Norbert, com lástima.

O que talvez mais faltasse a esse pobre conde de Thaler era a facul dade de querer. Por esse lado de seu caráter, seria digno de ser rei. Buscando sempre conselho com todo o mundo, não tinha a coragem de seguir nenhum até o fim.
Sua fisionomia bastaria por si só, dizia a srta. de La Mole, para inspirar-lhe uma alegria eterna. Era uma mistura singular de inquietude e de desapontamento; mas de vez em quando nela se distinguiam claramente impulsos de importância e aquele tom categórico que deve ter o homem mais rico da França, sobretudo quando se tem uma boa aparência e trinta e seis anos incompletos. Ele é timidamente insolente, dizia o sr. de Croisenois. O conde de Caylus, Norbert e dois ou três jovens de bigode escarneceram dele quanto quiseram, sem que ele suspeitasse, e por fim fizeram-no ir embora, quando soava uma hora:

– São seus famosos cavalos árabes que o esperam à porta com o tempo que está fazendo?, disse-lhe Norbert.

– Não, é uma nova parelha bem menos cara, respondeu o sr. de Thaler. O cavalo da esquerda custou-me cinco mil francos, e o da direita vale apenas cem luíses; mas acredite que só o atrelam à noite. É que seu trote é perfeitamente semelhante ao do outro.

A reflexão de Norbert fez o conde pensar que convinha, para um homem como ele, ter paixão por cavalos, e que ele não devia deixar os seus se molharem. Ele partiu, e os outros saíram um instante depois, zombando dele.
Assim, pensava Julien ao vê-los na escada, rindo, foi-me dado ver o outro extremo de minha situação! Não tenho vinte luíses de renda e estive ao lado de um homem que tem vinte luíses de renda por hora, e zombavam dele... Uma visão como essa cura da inveja.




continua página 185...
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ADVERTÊNCIA DO EDITOR

Esta obra estava prestes a ser publicada quando os grandes acontecimentos de julho [de 1830] vieram dar a todos os espíritos uma direção pouco favorável aos jogos da imaginação. Temos motivos para acreditar que as páginas seguintes foram escritas em 1827.

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Henri-Marie Beylemais conhecido como Stendhal (Grenoble, 23 de janeiro de 1783 — Paris, 23 de março de 1842) foi um escritor francês reputado pela fineza na análise dos sentimentos de seus personagens e por seu estilo deliberadamente seco.
Órfão de mãe desde 1789, criou-se entre seu pai e sua tia. Rejeitou as virtudes monárquicas e religiosas que lhe inculcaram e expressou cedo a vontade de fugir de sua cidade natal. Abertamente republicano, acolheu com entusiasmo a execução do rei e celebrou inclusive a breve detenção de seu pai. A partir de 1796 foi aluno da Escola central de Grenoble e em 1799 conseguiu o primeiro prêmio de matemática. Viajou a Paris para ingressar na Escola Politécnica, mas adoeceu e não pôde se apresentar à prova de acesso. Graças a Pierre Daru, um parente longínquo que se converteria em seu protetor, começou a trabalhar no ministério de Guerra.
Enviado pelo exército como ajudante do general Michaud, em 1800 descobriu a Itália, país que tomou como sua pátria de escolha. Desenganado da vida militar, abandonou o exército em 1801. Entre os salões e teatros parisienses, sempre apaixonado de uma mulher diferente, começou (sem sucesso) a cultivar ambições literárias. Em precária situação econômica, Daru lhe conseguiu um novo posto como intendente militar em Brunswick, destino em que permaneceu entre 1806 e 1808. Admirador incondicional de Napoleão, exerceu diversos cargos oficiais e participou nas campanhas imperiais. Em 1814, após queda do corso, se exilou na Itália, fixou sua residência em Milão e efetuou várias viagens pela península italiana. Publicou seus primeiros livros de crítica de arte sob o pseudônimo de L. A. C. Bombet, e em 1817 apareceu Roma, Nápoles e Florença, um ensaio mais original, onde mistura a crítica com recordações pessoais, no que utilizou por primeira vez o pseudônimo de Stendhal. O governo austríaco lhe acusou de apoiar o movimento independentista italiano, pelo que abandonou Milão em 1821, passou por Londres e se instalou de novo em Paris, quando terminou a perseguição aos aliados de Napoleão.
"Dandy" afamado, frequentava os salões de maneira assídua, enquanto sobrevivia com os rendimentos obtidos com as suas colaborações em algumas revistas literárias inglesas. Em 1822 publicou Sobre o amor, ensaio baseado em boa parte nas suas próprias experiências e no qual exprimia ideias bastante avançadas; destaca a sua teoria da cristalização, processo pelo que o espírito, adaptando a realidade aos seus desejos, cobre de perfeições o objeto do desejo.
Estabeleceu o seu renome de escritor graças à Vida de Rossini e às duas partes de seu Racine e Shakespeare, autêntico manifesto do romantismo. Depois de uma relação sentimental com a atriz Clémentine Curial, que durou até 1826, empreendeu novas viagens ao Reino Unido e Itália e redigiu a sua primeira novela, Armance. Em 1828, sem dinheiro nem sucesso literário, solicitou um posto na Biblioteca Real, que não lhe foi concedido; afundado numa péssima situação económica, a morte do conde de Daru, no ano seguinte, afetou-o particularmente. Superou este período difícil graças aos cargos de cônsul que obteve primeiro em Trieste e mais tarde em Civitavecchia, enquanto se entregava sem reservas à literatura.
Em 1830 aparece sua primeira obra-prima: O Vermelho e o Negro, uma crónica analítica da sociedade francesa na época da Restauração, na qual Stendhal representou as ambições da sua época e as contradições da emergente sociedade de classes, destacando sobretudo a análise psicológica das personagens e o estilo direto e objetivo da narração. Em 1839 publicou A Cartuxa de Parma, muito mais novelesca do que a sua obra anterior, que escreveu em apenas dois meses e que por sua espontaneidade constitui uma confissão poética extraordinariamente sincera, ainda que só tivesse recebido o elogio de Honoré de Balzac.
Ambas são novelas de aprendizagem e partilham rasgos românticos e realistas; nelas aparece um novo tipo de herói, tipicamente moderno, caracterizado pelo seu isolamento da sociedade e o seu confronto com as suas convenções e ideais, no que muito possivelmente se reflete em parte a personalidade do próprio Stendhal.
Outra importante obra de Stendhal é Napoleão, na qual o escritor narra momentos importantes da vida do grande general Bonaparte. Como o próprio Stendhal descreve no início deste livro, havia na época (1837) uma carência de registos referentes ao período da carreira militar de Napoleão, sobretudo a sua atuação nas várias batalhas na Itália. Dessa forma, e também porque Stendhal era um admirador incondicional do corso, a obra prioriza a emergência de Bonaparte no cenário militar, entre os anos de 1796 e 1797 nas batalhas italianas. Declarou, certa vez, que não considerava morrer na rua algo indigno e, curiosamente, faleceu de um ataque de apoplexia, na rua, sem concluir a sua última obra, Lamiel, que foi publicada muito depois da sua morte.
O reconhecimento da obra de Stendhal, como ele mesmo previu, só se iniciou cerca de cinquenta anos após sua morte, ocorrida em 1842, na cidade de Paris.


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Leia também:

Stendhal - O Vermelho e o Negro: Entrada na Sociedade (II)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Os Primeiros Passos (III)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: A Mansão de La Mole (IV-1)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: A Mansão de La Mole (IV-2)
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