sábado, 21 de março de 2020

Stendhal - O Vermelho e o Negro: Um ambicioso (XXX-2)

Livro I 

A verdade, a áspera verdade. 
Danton 


Capítulo XXX

UM AMBICIOSO




Não há mais senão uma só nobreza, é o título de duque; marquês é ridículo;à palavra duque todos voltam a cabeça. 

EDINBURGH REVIEW



continuando....



Essa recusa de um tratamento íntimo, essa maneira brusca de romper uma ligação tão terna, e com a qual ele ainda contava, levaram quase ao delírio o transporte de amor de Julien. 

– Quê! Será possível que não me ame mais?, ele perguntou com um daqueles acentos do coração tão difíceis de escutar friamente.

Ela não respondeu. Quanto a ele, não tinha mais força para falar; chorava amargamente.

– Então fui completamente esquecido pela única criatura que jamais amei? Para que viver então? Toda a coragem dele o abandonara tão logo deixara de temer o perigo de encontrar um homem; tudo desaparecera de seu coração, exceto o amor.

Chorou um longo tempo em silêncio. Pegou a mão dela, que quis retirá-la; no entanto, após alguns movimentos quase convulsivos, ela cedeu. A escuridão era extrema; os dois estavam sentados no leito da sra. de Rênal.
Que diferença com o que acontecia há catorze meses!, pensou Julien, e suas lágrimas redobraram. Assim a ausência destrói seguramente todos os sentimentos do homem!

– Digne-se dizer-me o que lhe aconteceu, disse enfim Julien, embaraçado com o silêncio dela e com uma voz embargada pelas lágrimas.

– Sem dúvida, respondeu a sra. de Rênal, com uma voz dura em cujo acento havia secura e reprovação a Julien, minhas loucuras eram conhecidas na cidade, no momento de sua partida. Houve tanta imprudência em suas atitudes! Algum tempo depois, estando eu desesperada, o respeitável sr. Chélan veio me ver. Foi em vão que, durante muito tempo, quis obter uma confissão. Um dia, ele teve a ideia de conduzir-me à igreja de Dijon onde fiz minha primeira comunhão. Lá, foi o primeiro a ousar falar... A sra. de Rênal foi interrompida pelas lágrimas. Que momento de vergonha! Confessei tudo. Aquele homem tão bom preferiu não me acabrunhar com o peso de sua indignação: afligiu-se comigo. Naquele momento, eu lhe escrevia diariamente cartas que não ousava enviar; escondia-as cuidadosamente e, quando estava muito infeliz, encerrava-me no quarto e relia minhas cartas. Finalmente, o sr. Chélan consentiu que as enviasse... Algumas, escritas com um pouco mais de prudência, foram enviadas; você jamais respondeu.

– Juro que nunca recebi uma carta tua no seminário.

– Ó Deus! Quem as terá interceptado?

– Imagina meu sofrimento. Até o dia em que te vi na catedral, não sabia se vivias ainda.

– Deus me deu a graça de compreender o quanto eu pecara em relação a ele, a meus filhos, a meu marido, prosseguiu a sra. de Rênal. Este nunca me amou como eu pensava então que você me amava.

Julien precipitou-se nos braços dela, realmente sem pensar no que fazia. Mas a sra. de Rênal o repeliu e continuou com bastante firmeza:

– Meu respeitável amigo, o sr. Chélan, fez-me com preender que, ao desposar o sr. de Rênal, eu lhe prometera todos os meus afetos, mesmo os que não conhecia e que jamais experimentara antes de uma ligação fatal... Depois do grande sacrifício dessas cartas, que me eram tão caras, minha vida transcorreu, se não de maneira feliz, ao menos com bastante tranquilidade. Não venha per turbá-la, seja um amigo para mim... o melhor de meus amigos. Julien cobriu suas mãos de beijos; ela sentiu que ele ainda chorava. Não chore mais, você me dá tanta pena... Diga-me agora o que fez. Julien não conseguia falar. Quero saber como vivia no seminário, ela repetiu, depois irá embora.

Sem pensar no que relatava, Julien falou das intrigas e dos incontáveis ciúmes que encontrou inicialmente, depois de sua vida mais tranquila quando foi nomeado professor auxiliar.

– Foi então, acrescentou, depois de um longo silêncio certamente destinado a fazer-me compreender o que vejo claramente hoje, que não sou mais amado e que me tornei indiferente a você... e a sra. de Rênal apertou-lhe as mãos, foi então que me enviou uma quantia de 500 francos.

– Jamais, disse a sra. de Rênal.

– Era uma carta selada de Paris e assinada Paul Sorel, para dissimular qualquer suspeita.

Seguiu-se uma pequena discussão sobre a origem possível daquela carta. A posição moral mudou. Sem perceberem, a sra. de Rênal e Julien haviam abandonado o tom solene e recuperado o de uma terna amizade. Eles não se viam, tamanha era a escuridão, mas o som da voz dizia tudo. Julien passou o braço em volta da cintura da amiga; esse movimento tinha muitos perigos. Ela tentou afastar o braço de Julien que, com bastante habilidade, chamou-lhe a atenção, nesse momento, para uma circunstância interessante de seu relato. Esse braço ficou como esquecido e permaneceu onde estava.
Depois de muitas conjeturas sobre a origem da carta com os 500 francos, Julien retomara sua narrativa; tornava-se um pouco mais seguro ao falar de sua vida passada, que, perto do que lhe acontecia naquele instante, pouco lhe interessava. Sua atenção fixou-se inteiramente na maneira como ia terminar sua visita. Você vai sair, ela continuava a dizer-lhe de tempo em tempo, com um acento breve.
Que vergonha se eu for mandado embora! Será um remorso a envenenar toda a minha vida, ele pensava. Ela nunca me escreverá. Deus sabe quando voltarei aqui! A partir desse momento, tudo que havia de celeste na posição de Julien desapareceu rapidamente de seu coração. Sentado ao lado de uma mulher que ele adorava, estreitando-a quase nos braços, nesse quarto onde fora tão feliz, no meio de uma escuridão profunda, percebendo muito bem que, de uns momentos para cá, ela chorava, sentindo, pelo movimento de seu peito, que ela soluçava, ele teve a desgraça de tornar-se um político frio, quase tão frio e calculista como quando, no pátio do seminário, via-se exposto aos gracejos de um dos colegas mais fortes que ele. Julien fazia durar seu relato e falava da vida infeliz que levara desde a partida de Verrières. Assim, pensava a sra. de Rênal, após um ano de ausência, privado quase inteiramente de marcas de lembrança, enquanto eu o esquecia, ele ocupava-se apenas dos dias felizes que tivera em Vergy. Seus soluços aumentaram. Julien percebeu o sucesso de seu relato. Compreendeu que devia tentar o último recurso: chegou bruscamente à carta que acabava de receber de Paris.

– Pedi ao monsenhor bispo a autorização para afastar-me.

– Como! Não retorna a Besançon? Vai nos deixar para sempre?

– Sim, respondeu Julien num tom resoluto; sim, abandono um lugar onde fui esquecido até por quem mais amei na vida, e abandono-o para não mais revê-lo. Vou a Paris...

– Vais a Paris!, exclamou bastante alto a sra. de Rênal.

Sua voz estava quase sufocada pelas lágrimas e mostrava toda a sua perturbação. Julien tinha necessidade desse estímulo: ia tentar um passo que podia decidir tudo contra ele que, antes dessa exclamação, não vendo nada, ignorava absolutamente o efeito que conseguia produzir. Não hesitou mais; o medo do remorso dava-lhe um completo domínio sobre si; ele acrescentou friamente, levantando-se:

– Sim, senhora, deixo-a para sempre, seja feliz. Adeus.

Deu alguns passos em direção à janela; já a estava abrindo quando a sra. de Rênal lançouse para ele e precipitou-se em seus braços.
Assim, depois de três horas de diálogo, Julien obteve o que desejara com tanta paixão durante as duas primeiras. Chegados um pouco mais cedo, o retorno aos sentimentos ternos, o eclipse dos remorsos na sra. de Rênal teriam sido uma felicidade divina; assim obtidos com arte, não foram mais que um prazer. Julien fez questão, contra as instâncias da amiga, de acender a lamparina.

– Então queres, ele dizia, que não me reste nenhuma lembrança de ter-te visto? O amor que existe nesse olhos encantadores ficará perdido para mim? a brancura dessa mão bonita me será invisível? Pensa que te deixo talvez por muito tempo!

A sra. de Rênal nada conseguia opor a essa ideia que a fazia romper em lágrimas. Mas a aurora já começava a desenhar o contorno dos pinheiros na montanha a oriente de Verrières. Em vez de ir embora, Julien, embriagado de volúpia, pediu à sra. de Rênal para passar o dia inteiro escondido em seu quarto e só partir na noite seguinte.

– E por que não?, ela respondeu. Essa recaída fatal tira-me toda a estima por mim e faz minha desgraça para sempre, acrescentou, apertando-o contra o peito. Meu marido não é mais o mesmo, tem suspeitas; acredita que o conduzi em todo esse caso e mostra-se muito irritado contra mim. Se ele ouvir o menor ruído, estou perdida, serei expulsa como a desgraçada que sou.

– Ah! Eis aí uma frase do sr. Chélan, disse Julien; não terias me falado assim antes de minha cruel partida para o seminário: então me amavas.

Julien foi recompensado pelo sangue-frio que pusera nessa frase: viu sua amiga esquecer rapidamente o perigo que a presença do marido lhe fazia correr, para pensar no perigo bem maior de ver Julien duvidar de seu amor. O dia avançava rapidamente e iluminava vivamente o quarto; Julien reencontrou todas as volúpias do orgulho quando pôde rever em seus braços, e quase a seus pés, essa mulher encantadora, a única que ele amara e que, poucas horas antes, entregava-se inteiramente ao temor de um Deus terrível e ao amor de seus deveres. Resoluções fortalecidas por um ano de constância não tinham podido resistir diante da coragem dele.
Logo ouviu-se um ruído na casa; uma coisa na qual não havia pensado veio perturbar a sra. de Rênal.

– A maldosa Elisa entrará no quarto, que fazer dessa enorme escada?, ela disse ao amigo; onde escondê-la? Vou levá-la ao sótão, exclamou de repente, com uma espécie de jovialidade.

– Mas é preciso passar pelo quarto do criado, disse Julien, surpreso.

– Deixarei a escada no corredor, chamarei o criado e lhe darei uma ordem.

– Pense numa explicação, caso o criado perceber a escada ao passar pelo corredor.

– Sim, meu anjo, disse a sra. de Rênal dando-lhe um beijo. Quanto a ti, procura te esconder depressa debaixo da cama se, durante minha ausência, Elisa entrar aqui.

Julien ficou espantado com essa alegria súbita. A proximidade de um perigo material, pensou, longe de perturbá-la, devolve-lhe a alegria porque ela esquece seus remorsos! Mulher verdadeiramente superior! Ah! Eis um coração no qual é glorioso reinar! Julien estava embevecido.
A sra. de Rênal foi pegar a escada; era evidentemente muito pesada para ela. Julien quis ajudá-la; ele admirava aquele corpo elegante e que estava tão longe de anunciar força, quando, de repente, sem ajuda, ela pegou a escada e levantou-a como teria feito com uma cadeira. Rapidamente levou-a até o corredor do terceiro andar, onde a encostou contra a parede. Chamou o criado e, enquanto dava-lhe o tempo de vestir-se, subiu até o pombal. Cinco minutos depois, ao voltar ao corredor, não encontrou mais a escada. Que fora feito dela? Se Julien não estivesse na casa, esse perigo não a teria preocupado muito. Mas, naquele momento, se o marido visse a escada! o incidente podia ser abominável. A sra. de Rênal corria por toda parte. Por fim, descobriu a escada debaixo do telhado, para onde o criado a levara e mesmo a escondera. Essa circunstância era singular, e em outros tempos a teria alarmado.
Que importa, pensou, o que pode acontecer nessas vinte e quatro horas, até que Julien tenha partido? Para mim, tudo não será então remorso e horror?
Tinha uma vaga ideia de dever deixar a vida, mas que importa! Depois de uma separação que ela acreditara eterna, ele fora-lhe restituído, ela o revia, e o que ele fizera para chegar até ela mostrava tanto amor!
Contou o episódio da escada a Julien:

– Que responderei a meu marido, disse ela, se o cria do contar-lhe que encontrou essa escada? Ela pensou por um instante; ele precisará de vinte e quatro horas para descobrir o camponês que a vendeu a ti; e, lançando-se nos braços de Julien, apertando-o num movimento convulsivo: Ah! Morrer, morrer assim!, exclamou, cobrindo-o de beijos. Mas não é preciso que morras de fome, acrescentou, rindo.
Vem, primeiro vou te esconder no quarto da sra. Derville, que fica sempre fechado à chave. Ela foi vigiar na extremidade do corredor e Julien passou correndo. Cuida de não abrir se baterem, disse ela, trancando-o à chave; em todo caso, seria só uma brincadeira dos meninos, brincando entre si.

– Faz que eles venham ao jardim, sob a janela, gostaria de vê-los e de ouvir suas vozes.

– Sim, sim, disse a sra. de Rênal, afastando-se.

Logo retornou com laranjas, biscoitos, uma garrafa de vinho de Málaga; fora-lhe impossível roubar pão.

– Que está fazendo teu marido?, perguntou Julien.

– Está tratando de negócios com camponeses.

Mas já eram oito horas, havia muito ruído na casa. Se não vissem a sra. de Rênal, passariam a procurá-la em toda parte; ela foi obrigada a deixá-lo. Logo retornou, contra toda prudência, trazendo-lhe uma taça de café; ela temia que ele morresse de fome. Depois do desjejum, ela conseguiu levar os filhos até debaixo da janela da sra. Derville. Ele os achou muito crescidos, mas haviam adquirido um aspecto vulgar, ou então suas ideias haviam mudado.
A sra. de Rênal falou-lhes de Julien. O mais velho lembrou com afeição e saudade o expreceptor; mas os mais jovens pareciam tê-lo quase esquecido.
O sr. de Rênal não saiu naquela manhã; subia e descia a todo momento pela casa, ocupado em negociar com camponeses, aos quais vendia sua colheita de batatas. Até o almoço, a sra. de Rênal não pôde conceder um instante a seu prisioneiro. Servido o almoço, ela teve a ideia de roubar para ele uma travessa de sopa. Quando se aproximava sem ruído da porta do quarto que ele ocupava, viu-se frente a frente com o criado que escondera a escada de manhã. Nesse momento, ele também avançava sem ruído pelo corredor, como quem escutasse. Provavelmente Julien caminhara com imprudência. O criado afastou-se um pouco confuso. A sra. de Rênal entrou ousadamente no quarto de Julien; esse encontro o fez estremecer.

– Estás com medo, disse ela; quanto a mim, enfrentaria todos os perigos do mundo e sem pestanejar. Só temo uma coisa, é o momento em que estarei sozinha depois de tua partida. E ela o deixou, correndo.

Ah!, pensou Julien, exaltado, o remorso é o único perigo que essa alma sublime teme!
Finalmente anoiteceu. O sr. de Rênal foi ao Cassino. Sua mulher alegou uma forte enxaqueca, retirou-se em seu quarto, apressou-se a dispensar Elisa e tornou a levantar-se bem depressa para ir abrir a porta a Julien. Acontece que ele realmente morria de fome. A sra. de Rênal foi à dispensa buscar pão. Julien ouviu um grito. A sra. de Rênal voltou e contou-lhe que, entrando na dispensa às escuras, ao aproximar-se do armário onde estava o pão e ao estender a mão, tocara um braço de mulher. Era Elisa, que soltara o grito ouvido por Julien.

– O que ela estava fazendo ali?

– Roubava guloseimas ou então nos espionava, disse a sra. de Rênal com uma indiferença completa. Mas, felizmente, encontrei patê e um grande pão.

– Então o que é isso aí? perguntou Julien, apontando-lhe os bolsos do avental.

A sra. de Rênal tinha esquecido que, desde o almoço, eles estavam cheios de pão.
Julien estreitou-a nos braços com a mais viva paixão; ela nunca lhe parecera tão bela. Mesmo em Paris, ele dizia-se confusamente, não poderei encontrar melhor caráter. Ela possuía toda a inabilidade de uma mulher pouco acostumada a esse tipo de cuidados e, ao mesmo tempo, a verdadeira coragem de uma criatura que teme apenas os perigos de uma outra ordem, bem mais terríveis.
No momento em que Julien comia com grande apetite, e sua amiga zombava da simplicidade dessa refeição, pois tinha horror de falar seriamente, a porta do quarto foi, de repente, sacudida com força. Era o sr. de Rênal.

– Por que chaveou a porta? ele gritava. Julien teve tempo apenas de esgueirar-se para debaixo do canapé.

– Como! Está toda vestida, disse o sr. de Rênal ao entrar; está ceando e fecha a porta à chave?

Nos dias comuns, essa pergunta, feita com toda a secura conjugal, teria perturbado a sra. de Rênal; mas ela sentia que o marido precisava apenas baixar-se um pouco para ver Julien; pois o sr. de Rênal lançara-se sobre a cadeira que Julien ocupava um momento antes, defronte ao canapé.
A enxaqueca serviu de escusa a tudo. Enquanto o marido contava-lhe longamente os incidentes da aposta que ganhara no bilhar do Cassino, uma aposta de 19 francos, palavra!, ele acrescentava, ela percebeu sobre uma cadeira, a três passos deles, o chapéu de Julien. Com redobrado sangue-frio, pôs-se a despir-se e, num certo momento, passando rapidamente por trás do marido, lançou uma peça de roupa sobre a cadeira com o chapéu.
O sr. de Rênal partiu, enfim. Ela pediu a Julien para recomeçar o relato de sua vida no seminário. Ontem eu não te escutava, enquanto falavas, só pensava em conseguir mandar-te embora.
Ela era a imprudência mesma. Eles falavam muito alto; deviam ser duas horas da madrugada quando foram interrompidos por uma batida violenta à porta. Era outra vez o sr. de Rênal.

– Abra depressa, há ladrões na casa!, ele dizia. Saint-Jean encontrou a escada deles esta manhã.

– Eis o fim de tudo, exclamou a sra. de Rênal, lançando-se nos braços de Julien. Ele vai nos matar a ambos, não acredita em ladrões; vou morrer em teus braços, mais feliz em minha morte do que fui em vida. Não respondia absolutamente nada ao marido, que se irritava; ela beijava Julien com paixão.

– Salva a mãe de Stanislas, ele disse com um olhar de comando. Vou saltar no pátio pela janela do quarto de vestir e escaparei, os cães me reconheceram. Faz um pacote de minhas roupas e atira-o no jardim assim que puderes. Enquanto isso, deixa que forcem a porta. Sobretudo, nada de confissões, proíbo-te, é preferível que ele tenha suspeitas do que certezas.

– Vais te matar saltando! foi a única resposta e a única inquietude dela.

Foi com ele à janela do quarto de vestir; depois, pro curou sem pressa esconder suas roupas. Abriu finalmente a porta ao marido que fervia de raiva. Ele examinou o quarto, o quarto de vestir, sem dizer nada, e desapareceu. As roupas de Julien foram atiradas, ele as recolheu e partiu rapidamente em direção à base do jardim, junto ao Doubs.
Enquanto corria, ouviu assobiar uma bala e em seguida o ruído de um disparo de fuzil.
Não foi o sr. de Rênal, pensou, ele atira muito mal para isso. Os cães corriam em silêncio a seu lado, um segundo disparo atingiu aparentemente a pata de um cão, que se pôs a ganir. Julien saltou o muro de um terraço, andou protegido uns cinquenta passos e tornou a fugir numa outra direção. Ouviu vozes que se chamavam e viu distintamente o criado, seu inimigo, disparar um tiro de fuzil; um caseiro veio também fazer disparos do outro lado do jardim, mas Julien já havia alcançado a margem do Doubs, onde se vestia.
Uma hora depois, ele estava a uma légua de Verrières, na estrada de Genebra; se tiverem suspeitas, pensou Julien, é na estrada de Paris que me buscarão.




Fim do Livro I



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O VERMELHO E O NEGRO





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ADVERTÊNCIA DO EDITOR

Esta obra estava prestes a ser publicada quando os grandes acontecimentos de julho [de 1830] vieram dar a todos os espíritos uma direção pouco favorável aos jogos da imaginação. Temos motivos para acreditar que as páginas seguintes foram escritas em 1827.


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Henri-Marie Beyle, mais conhecido como Stendhal (Grenoble, 23 de janeiro de 1783 — Paris, 23 de março de 1842) foi um escritor francês reputado pela fineza na análise dos sentimentos de seus personagens e por seu estilo deliberadamente seco.


Órfão de mãe desde 1789, criou-se entre seu pai e sua tia. Rejeitou as virtudes monárquicas e religiosas que lhe inculcaram e expressou cedo a vontade de fugir de sua cidade natal. Abertamente republicano, acolheu com entusiasmo a execução do rei e celebrou inclusive a breve detenção de seu pai. A partir de 1796 foi aluno da Escola central de Grenoble e em 1799 conseguiu o primeiro prêmio de matemática. Viajou a Paris para ingressar na Escola Politécnica, mas adoeceu e não pôde se apresentar à prova de acesso. Graças a Pierre Daru, um parente longínquo que se converteria em seu protetor, começou a trabalhar no ministério de Guerra.

Enviado pelo exército como ajudante do general Michaud, em 1800 descobriu a Itália, país que tomou como sua pátria de escolha. Desenganado da vida militar, abandonou o exército em 1801. Entre os salões e teatros parisienses, sempre apaixonado de uma mulher diferente, começou (sem sucesso) a cultivar ambições literárias. Em precária situação econômica, Daru lhe conseguiu um novo posto como intendente militar em Brunswick, destino em que permaneceu entre 1806 e 1808. Admirador incondicional de Napoleão, exerceu diversos cargos oficiais e participou nas campanhas imperiais. Em 1814, após queda do corso, se exilou na Itália, fixou sua residência em Milão e efetuou várias viagens pela península italiana. Publicou seus primeiros livros de crítica de arte sob o pseudônimo de L. A. C. Bombet, e em 1817 apareceu Roma, Nápoles e Florença, um ensaio mais original, onde mistura a crítica com recordações pessoais, no que utilizou por primeira vez o pseudônimo de Stendhal. O governo austríaco lhe acusou de apoiar o movimento independentista italiano, pelo que abandonou Milão em 1821, passou por Londres e se instalou de novo em Paris, quando terminou a perseguição aos aliados de Napoleão.

"Dandy" afamado, frequentava os salões de maneira assídua, enquanto sobrevivia com os rendimentos obtidos com as suas colaborações em algumas revistas literárias inglesas. Em 1822 publicou Sobre o amor, ensaio baseado em boa parte nas suas próprias experiências e no qual exprimia ideias bastante avançadas; destaca a sua teoria da cristalização, processo pelo que o espírito, adaptando a realidade aos seus desejos, cobre de perfeições o objeto do desejo.

Estabeleceu o seu renome de escritor graças à Vida de Rossini e às duas partes de seu Racine e Shakespeare, autêntico manifesto do romantismo. Depois de uma relação sentimental com a atriz Clémentine Curial, que durou até 1826, empreendeu novas viagens ao Reino Unido e Itália e redigiu a sua primeira novela, Armance. Em 1828, sem dinheiro nem sucesso literário, solicitou um posto na Biblioteca Real, que não lhe foi concedido; afundado numa péssima situação económica, a morte do conde de Daru, no ano seguinte, afetou-o particularmente. Superou este período difícil graças aos cargos de cônsul que obteve primeiro em Trieste e mais tarde em Civitavecchia, enquanto se entregava sem reservas à literatura.

Em 1830 aparece sua primeira obra-prima: O Vermelho e o Negro, uma crónica analítica da sociedade francesa na época da Restauração, na qual Stendhal representou as ambições da sua época e as contradições da emergente sociedade de classes, destacando sobretudo a análise psicológica das personagens e o estilo direto e objetivo da narração. Em 1839 publicou A Cartuxa de Parma, muito mais novelesca do que a sua obra anterior, que escreveu em apenas dois meses e que por sua espontaneidade constitui uma confissão poética extraordinariamente sincera, ainda que só tivesse recebido o elogio de Honoré de Balzac.

Ambas são novelas de aprendizagem e partilham rasgos românticos e realistas; nelas aparece um novo tipo de herói, tipicamente moderno, caracterizado pelo seu isolamento da sociedade e o seu confronto com as suas convenções e ideais, no que muito possivelmente se reflete em parte a personalidade do próprio Stendhal.

Outra importante obra de Stendhal é Napoleão, na qual o escritor narra momentos importantes da vida do grande general Bonaparte. Como o próprio Stendhal descreve no início deste livro, havia na época (1837) uma carência de registos referentes ao período da carreira militar de Napoleão, sobretudo a sua atuação nas várias batalhas na Itália. Dessa forma, e também porque Stendhal era um admirador incondicional do corso, a obra prioriza a emergência de Bonaparte no cenário militar, entre os anos de 1796 e 1797 nas batalhas italianas. Declarou, certa vez, que não considerava morrer na rua algo indigno e, curiosamente, faleceu de um ataque de apoplexia, na rua, sem concluir a sua última obra, Lamiel, que foi publicada muito depois da sua morte.

O reconhecimento da obra de Stendhal, como ele mesmo previu, só se iniciou cerca de cinquenta anos após sua morte, ocorrida em 1842, na cidade de Paris.



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Leia também:

Stendhal - O Vermelho e o Negro: O Primeiro Adjunto (XVII)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Um Rei em Verrières (XVIII)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Pensar faz sofrer (XIX)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: As Cartas Anônimas (XX)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Diálogo com um Mestre (XXI - 1)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Maneiras de Agir em 1830 (XXII - 1)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Maneiras de Agir em 1830 (XXII - 2)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Desgostos de um funcionário (XXIII -1)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Desgostos de um funcionário (XXIII -2)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Uma Capital (XXIV)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: O Seminário (XXV)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: O Mundo, Ou o Que Falta ao Rico (XXVI)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: A Primeira Promoção (XXIX - 1)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Um ambicioso (XXX - 1)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Um ambicioso (XXX - 2)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Os Prazeres do Campo (I-1)


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