quinta-feira, 5 de novembro de 2020

Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (25)

 Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Vol 1



1
Estudos de Costumes 
- Cenas da Vida Privada




Memórias de duas jovens esposas





PRIMEIRA PARTE



XXV – RENATA DE L’ESTORADE A LUÍSA DE CHAULIEU 


Outubro 

Impertinente! Para que havia de escrever-te? Que poderia dizer-te? Durante essa vida animada por festas, pelas angústias do amor, por suas cóleras e suas flores que me descreves, e à qual assisto como a uma peça teatral bem representada, eu levo uma vida monótona e regrada, à semelhança da vida de convento. Deitamo-nos sempre às nove horas e levantamo-nos com o sol. Nossas refeições são sempre servidas com exatidão desesperadora. Nem o mais insignificante acidente. Acostumei-me, e sem grande dificuldade, a essa divisão do tempo. Isso é talvez natural: que seria da vida sem essa sujeição a regras fixas que, segundo os astrônomos e no dizer de Luís, regem os mundos? A ordem não cansa. De resto, impus-me cuidados de toilette que me tomam o tempo entre a hora de levantar-me e o almoço: faço questão de comparecer a este encantadora, em obediência aos meus deveres de mulher, o que me traz satisfação além do vivo contentamento que proporciono ao bom do velho e a Luís. Depois do almoço passeamos. Quando chegam os jornais, eu desapareço para entregar-me aos trabalhos domésticos, ou para ler, pois leio muito, ou senão para te escrever. Volto uma hora antes do jantar, e depois jogamos, recebemos ou fazemos visitas. Passo assim meus dias entre um ancião feliz, sem desejos, e um homem para quem sou a felicidade. Luís vive tão contente que sua alegria acabou aquecendo minha alma. A felicidade, para nós, não deve ser com certeza o prazer. Algumas vezes, à noite, quando não sou indispensável para a partida e mergulho numa poltrona, meu pensamento tem forças suficientes para fazer-me penetrar em ti; desposo então tua bela vida tão fecunda, tão matizada, tão violentamente agitada, e a mim mesma pergunto: aonde te levarão esses turbulentos prefácios; não irão eles matar o livro? Podes ter as ilusões do amor, tu, minha mimosa; mas para mim restam apenas as realidades domésticas. Sim, teus amores parecem-me um sonho! Por isso sinto dificuldade em compreender como os tornas tão românticos. Queres um homem que tenha mais alma do que sentidos, mais grandeza e virtude do que amor; queres que o sonho das donzelas ao alvorecer da vida se corporifique; pedes sacrifícios para recompensá-los; submetes teu Felipe a provas, para saber se o desejo, a esperança e a curiosidade serão duráveis. Mas, filhinha, por trás das tuas fantásticas ornamentações ergue-se um altar no qual se prepara uma união eterna. No dia seguinte ao casamento, o ato terrível, que faz da donzela uma mulher e do enamorado um marido, pode derrubar os andaimes de tuas sutis precauções. Precisas saber, pois, finalmente, que dois namorados, da mesma forma que duas pessoas casadas, como eu e Luís, vão buscar, sob as alegrias de uma boda, segundo a expressão de Rabelais, “um grande talvez”.[1]

Não te censuro, embora haja alguma leviandade, de ir conversar com dom Felipe no fundo do jardim, de o interrogar, de passar uma noite na tua sacada, com ele em cima do muro; mas, criança, estás brincando com a vida, e tenho receio de que a vida brinque contigo. Não me atrevo a aconselhar-te o que a experiência me sugere para a tua felicidade; deixa-me, porém, repetir-te ainda uma vez, do fundo de meu vale, que o viático do casamento está contido nestas palavras: resignação e devotamento! Porque, vejo, não obstante tuas provas, apesar do teu coquetismo e tuas observações, tu te casarás absolutamente como eu. Ao ampliar o desejo, cava-se um pouco mais profundo o abismo, eis tudo.

Oh! Como eu quisera ver o barão de Macumer e falar-lhe durante algumas horas de tanto que desejo a tua felicidade.




continua pág 296...

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[1] Buscar, segundo a expressão de Rabelais, um grande talvez: a expressão que a tradição atribui a Rabelais moribundo refere-se à morte: “Je m’en vais chercher un grand peut-être”; aqui é aplicada ao casamento.

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Honoré de Balzac (Tours, 20 de maio de 1799 — Paris, 18 de agosto de 1850) foi um produtivo escritor francês, notável por suas agudas observações psicológicas. É considerado o fundador do Realismo na literatura moderna.[1][2] Sua magnum opus, A Comédia Humana, consiste de 95 romances, novelas e contos que procuram retratar todos os níveis da sociedade francesa da época, em particular a florescente burguesia após a queda de Napoleão Bonaparte em 1815.

Entre seus romances mais famosos destacam-se A Mulher de Trinta Anos (1831-32), Eugènie Grandet (1833), O Pai Goriot (1834), O Lírio do Vale (1835), As Ilusões Perdidas (1839), A Prima Bette (1846) e O Primo Pons (1847). Desde Le Dernier Chouan (1829), que depois se transformaria em Les Chouans (1829, na tradução brasileira A Bretanha), Balzac denunciou ou abordou os problemas do dinheiro, da usura, da hipocrisia familiar, da constituição dos verdadeiros poderes na França liberal burguesa e, ainda que o meio operário não apareça diretamente em suas obras, discorreu sobre fenômenos sociais a partir da pintura dos ambientes rurais, como em Os Camponeses, de 1844.[1] Além de romances, escreveu também "estudos filosóficos" (como A Procura do Absoluto, 1834) e estudos analíticos (como a Fisiologia do Casamento, que causou escândalo ao ser publicado em 1829).

Balzac tinha uma enorme capacidade de trabalho, usada sobretudo para cobrir as dívidas que acumulava.[1] De certo modo, suas despesas foram a razão pela qual, desde 1832 até sua morte, se dedicou incansavelmente à literatura. Sua extensa obra influenciou nomes como Proust, Zola, Dickens, Dostoyevsky, Flaubert, Henry James, Machado de Assis, Castelo Branco e Ítalo Calvino, e é constantemente adaptada para o cinema. Participante da vida mundana parisiense, teve vários relacionamentos, entre eles um célebre caso amoroso, desde 1832, com a polonesa Ewelina Hańska, com quem veio a se casar pouco antes de morrer.


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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)
(Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)

Balzac, Honoré de, 1799-1850. 
          A comédia humana: estudos de costumes: cenas da vida privada / Honoré de Balzac;                            orientação, introduções e notas de Paulo Rónai; tradução de Vidal de Oliveira; 3. ed. – São                  Paulo: Globo, 2012. 

          (A comédia humana; v. 1) Título original: La comédie humaine ISBN 978-85-250-5333-1                    0.000 kb; ePUB 

1. Romance francês i. Rónai, Paulo. ii. Título. iii. Série. 

12-13086                                                                               cdd-843 

Índices para catálogo sistemático: 
1. Romances: Literatura francesa 843

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