Maria Firmina dos Reis
Úrsula
Úrsula, amando vê-lo, arrependia-se, e quase que maldizia o sentimento de seu coração, que a obrigara a ir tão longe, e a ter, a seu pesar, aquela entrevista que tanto começava a inquietá-la, e lembrando-se de sua mãe, que tudo ignorava, exprobava-se a si acremente de tão leve procedimento.
— Úrsula, – continuou o mancebo, reconhecendo sua perturbação – Úrsula, mimosa filha da floresta, flor educada da tranquilidade dos campos, porque tremeis de me ouvir a voz?! Julgais acaso que vos possam ofender as minhas palavras?! Sossegai, em nome do céu, Úrsula, sossegai!... Donzela! Eu vos juro que sou leal, e que o respeito que vos consagro, e de que sois digna, nem o silêncio deste bosque, nem a solidão do lugar o quebrará jamais.
— O que sinto por vós – continuou comovido – é veneração, e a mulher a que se venera rende-se um culto de respeitosa adoração, ama-se sem desejos, e nesse amor não entra a satisfação dos sentidos.
— Úrsula, – prosseguiu com voz que inspirava confiança – compreendo, e avalio a perturbação em que vos achais; porque é inocente e pura vossa alma; mas se me escutardes, se vos dignardes ouvir-me, conhecereis que também puras são as minhas intenções, e que o amor que inspirastes é cândido como a vossa alma.
Então Úrsula, erguendo as mãos com aflição, disse:
— Oh! Senhor, por quem sois, deixai-me voltar agora mesmo para ao pé de minha mãe! – e deu um passo; mas esse passo foi vagaroso e trêmulo, e o mancebo eletrizado, encantado por essa cândida timidez, que revelava a mais angelical pureza, correu para ela com indefinível transporte, misturado de amorosa veneração, e docemente obrigando-a a sentar-se, curvou-se-lhe aos pés, e mudo, e contemplativo, e enlevado no rubor que tingia as faces da donzela, guardou silêncio por alguns instantes, e depois rompendo-o, disse-lhe:
— Úrsula, casto é o meu amor, e se o não fora, por prêmio de tanto desvelo e generosidade, não vo-lo oferecera. No meu delírio, Úrsula, não credes vós quem me aparecia. Oh! Não. Uma outra mulher eu via! Era terrível essa visão infernal, e julguei morrer de desesperação; porque dia e noite ela, implacável, desdenhosa, e fria estava ante meus olhos!... Sim, julguei morrer; mas vós aparecestes junto ao meu leito, vi-vos, e as dores se amodorraram, e como se eu visse a Senhora dos Aflitos levando à minha cabeceira um dos anjos que a rodeiam, e que lançou bálsamo divinal em minhas feridas, que cicatrizaram e o coração serenou, a alma ficou livre. Então a imagem odiosa, que me perseguia, desapareceu para sempre. Úrsula, pude esquecê-la para sempre, sim! Esquecê-la! E esquecer com ela não o amor que sentia; porque essa há muito que me morreu no coração, mas o ódio, o ódio, que lhe votava.
A vossa bondade deu-me forças para esquecê-la, talvez mesmo para perdoá-la!...
— Eu tinha o coração dilacerado por cruentas dores, – prosseguiu o moço, com voz pausada, após um momento de silêncio – e esse estado de penosa angústia ocasionou a enfermidade que me deu a ventura de conhecer-vos, e se vos não houvesse visto, se prolongaria até o extremo da vida, que não poderia tardar. Vós, Úrsula, aparecestes, e espantastes as trevas de tão apurado sofrimento. Fostes o meu anjo salvador. Úrsula, eu vos amo! E se vossa alma simpatizar com a minha, meu coração vos tem escolhido para a companheira dos meus dias.
— Amais-me, Úrsula?!...
Um súbito rubor, melhor que a rosa, tingiu as faces da delicada virgem, e ela baixando os olhos, disse-lhe:
— Talvez!... – a voz era tão débil que semelhou o doce murmúrio de queixoso ribeiro.
Mas, enquanto os lábios diziam simplesmente talvez, o coração desfeito em transportes de inefáveis doçuras sonhava as venturas do paraíso. E sua inquietação, e suas noites de vigília, já não eram para ela um penoso mistério, ou uma forçada dissimulação. Úrsula confessou a si mesma, que aquilo que sentira, era verdadeiro e ardente amor.
E Adelaide – essa mulher, esse nome proferido em delírio, que lhe aparecia em seus sonhos como uma visão que incomodava, deixava de agora em diante de ocupar-lhe o pensamento; porque o mancebo havia dito: — Esqueci-a, perdoei-a por amor de vós. Mas, inda assim, quem seria ela que tanto amor lhe tinha merecido?
Que lhe importava? Era feliz; porque era amada, e sua vida inteira teria dado por esse momento de ventura.
Amor! Esse sentimento novo – ardente como o sol do seu país, arrebatador como as correntes, que se despenham no vale – foi a varinha mágica que lhe transformou a existência. Julgou tudo um sonho encantador, cujas doçuras começava apenas a apreciar.
Extasiada e louca de amor, a donzela embalde procurava reaver a razão; e mais embalde procurava interrogar-se a si mesma – quem seria aquele homem, que assim atraía o seu coração? Porque este só lhe dizia: – Amá-lo é viver, e a vida assim vivida é a eternidade no gozo.
— Úrsula, – disse o mancebo, comovido, após de um longo silêncio – devo-vos a fiel narração de minha vida. O homem que vos ama, que vos idolatra, o homem que vos escolhe para sua esposa, não vos deve ocultar a mínima particularidade da sua triste existência; e depois que me tiverdes ouvido, depois que souberdes quem é o cavaleiro que tendes ao vosso lado, dai-lhe o vosso coração, dizei-lhe que o amais, e ele será uma vez feliz, uma só na vida; mas esta felicidade deve ser tão grande, que o seu passado cairá para sempre em um abismo de profundo esquecimento. Porém, Úrsula, se me recusardes essa ventura, a única que almejo, a minha vida tornar-se-á um prolongado martírio, e quem sabe se a poderei suportar!?...
— Oh! – exclamou a donzela com interesse – pesa-vos acaso no coração tão pungente mágoa?!
— Sim – tornou ele comovido – sim, grande tem sido o meu sofrimento. Julguei, Úrsula, nunca mais amar, e morrer amaldiçoando meu primeiro amor; mas eu vo-lo disse já – vi-vos e meu coração cobrou nova vida, e novo amor curou-lhe as feridas, que o destruíam. Agora, decidireis da minha sorte: feliz, ou desgraçado, Úrsula, só vós sereis o meu amor.
Então os olhos da donzela desferiram brilhantes reflexos de amor, e cedendo a um transporte de indefinível entusiasmo, exclamou:
— Sejais vós, senhor, quem quer que fordes, quaisquer que sejam os precedentes da vossa vida, que generosamente prometeis confiar-me, aqui, na solidão silenciosa e grave desta mata, onde só Deus nos ouve, onde só a natureza nos contempla, juro-vos pela vida de minha mãe, que vos amarei agora e sempre, com toda a força de um amor puro e intenso, e que zombará de qualquer oposição donde quer que parta.
— Vós?! Repeti, repeti ainda uma vez essas inebriantes palavras que me transportam!
— Sim – tornou ela, cujos olhos cintilavam como dois astros luminosos e diziam mais que os lábios, e cujo coração arfava de amor e de felicidade – sim juro-vos pelo céu, que nos escuta, que hei de amar-vos sempre! Feliz, ou desgraçada, lembrai-vos que por amar-vos desprezarei a vida.
— Oh! – exclamou o jovem convalescente – Eu agradeço-vos, meu Deus, de todo o meu coração!... É verdade então que para mim ainda pode haver felicidade?! Meu Deus, Senhor meu Deus, como sois bom!... – e olhava a donzela com inexprimível transporte.
— Úrsula, – prosseguiu – vós me erguestes do abismo da desesperação em que uma outra mulher me havia despenhado, e apagais da minha alma a derradeira lembrança do seu funesto amor!
E eu amei-a, Úrsula, amei-a com todas as veras de um primeiro amor. Não vos pode ofender esta confissão; porque esse amor tão apaixonado varreu-se da minha alma como a nódoa pela límpida água da fonte cristalina.
Depois de tão longo e apurado sofrimento, depois de ter esgotado até as fezes o meu cálice de amargura, votei ódio àquela que fora tão cara.
Excessivo era o meu afeto; mas ela quebrou-o, deliu-o do meu coração, e hoje sinto por essa mulher fundo e inextinguível desprezo.
— Desprezo?! – continuou meditando sobre esta palavra – Sim, desprezo; mas o tempo e o meu coração, e todas as minhas faculdades revoltadas contra o mais hediondo proceder dessa criatura infame foram que o trouxeram, e agora votava-lhe ódio e maldição; mas tais sentimentos, tão pouco em harmonia com o meu ser, acabo de imolá-los ante os vossos pés, anjo bem-fadado!
— Cumpre que vos confesse como a amava... – aqui, recolheu-se a si, e fazendo um esforço sobre-humano, continuou – Oh! Amava-a como o cativo ama a liberdade, como o ébrio o vício que o mata; seguia-a como o colibri as flores, como a bússola o Norte, como o fiel lebréu a seu dono: era uma paixão que me prendia o coração e os sentidos, era um frenesi, um delírio próximo da loucura perene. Tudo ela destruiu em um momento, como a criança o brinco, cujo valor não sabe!... Via-a na escuridade da noite, no cair da tarde; via-a na erva do prado, no cálice de uma flor, no firmamento entre as estrelas mais brilhantes, no arrulho amoroso das aves, no canto sentido da sororina... Oh! Sempre ela, sempre ela, em todos os lugares, em todos os tempos, e sempre bela, sempre meiga e sedutora, sempre apaixonada!
E eu gemia de amor, e de saudades, e amaldiçoando a separação; porque esse afeto, que me escaldava e se apossara de todo o meu ser, julgava-o igual e tão intenso no seu peito. Engano, engano fatal!...
— Úrsula! Agora todo esse amor, ou inda amor mais sublime, mais digno de vós nutre o meu coração; agora poderei ter forças para contar-vos a história da minha vida.
E depois de breve pausa, prosseguiu, suspirando:
— Quisera que o meu passado fugisse como a sombra de uma ave inquieta, ou como a nuvem que o vendaval desfaz, para nunca mais invocá-lo; porque é triste e pungente, mas é preciso pedir-lhe recordações, que me rasgarão de novo feridas mal cicatrizadas, para patentear-vos todas as minhas longas e profundas dores.
Rogo-vos, pois, que não tomeis a minha narração, quando tenha de ser apaixonada, como desejo do passado e saudades dele. Podeis amar-me sem receio de que ele perturbe o nosso mútuo afeto. Ressentimento, ódio, maldição, tudo, tudo hei sacrificado ao vosso amor.
Oh! De novo jurai-me que sois minha, que o vosso amor é igual ao meu, doce e mimosa Úrsula, para que eu possa falar-vos daquela que foi casta e pura como vós, daquela que foi minha mãe.
E a voz tornou-se-lhe débil, e surda, e dolorosa, como um choro sentido, que fica no coração e não vem aos olhos.
continua pág 47...
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Maria Firmina dos Reis nasceu em São Luís, no Maranhão, no dia 11 de outubro de 1825. Filha bastarda de João Pedro Esteves e Leonor Felipe dos Reis. Foi uma escritora brasileira, considerada a primeira romancista brasileira.
Em 1847, aos 22 anos, ela foi aprovada em um concurso público para a Cadeira de Instrução Primária, sendo assim a primeira professora concursada de seu Estado. Maria demonstrou sua afinidade com a escrita ao publicar “Úrsula” em 1859, primeiro romance abolicionista, primeiro escrito por uma mulher negra brasileira.
O romance “Úrsula” consagrou Maria Firmina como escritora e também foi o primeiro romance da literatura afro-brasileira, entendida esta como produção de autoria afrodescendente. Em 1887, no auge da campanha abolicionista, a escritora publica o livro “A Escrava”, reforçando sua postura antiescravista.
Em 1975, Maria recebe uma homenagem de José Nascimento Morais Filho que publica a primeira biografia da escritora, Maria Firmina: fragmentos de uma vida.
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Úrsula - Apresentação
Úrsula - Maria Firmina dos Reis: uma voz em conflito
Úrsula - Prólogo
Úrsula - I Duas almas generosas (1)
Úrsula - I Duas almas generosas (2)
Úrsula - II O delírio (1)
Úrsula - II O delírio (2)
Úrsula - III A declaração de amor (1)
Úrsula - III A declaração de amor (2)
Úrsula - IV A primeira impressão
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