Maria Firmina dos Reis
Úrsula
Corri para ela chorando: esse choro, que eu não sabia reprimir, arrancava-me o sofrer profundo daquela criatura angélica.
E ela também chorava; mas era um pranto sentido e terno, que contrastava com o meu, que era provocado mais pela indignação mal sufocada no coração, ao passo que o dela era o de uma santa.
— Que humilhação! – exclamei pálido de comoção – Que humilhação, minha mãe!
— Amo as humilhações, meu filho – disse com brandura, que me tocou as últimas fibras da alma – o mártir do Calvário sofreu mais por amor de nós.
Meus joelhos vergaram instintivamente ante essa mulher de tão sublimes virtudes, e eu disse-lhe:
— Ao menos o sacrifício do filho de Deus não foi inútil, minha mãe, e o vosso?!... Lágrimas e desesperança!...
— Paciência, meu filho, Deus assim o quer!
— Eu tudo ouvi, minha mãe, tudo. – e ajuntando as mãos sobre seus joelhos, que tremiam de aflição, continuei soluçando – Por amor de mim quisestes sacrificar-vos!... E reprimindo o pranto continuei – Meu pai...
— Silêncio! – exclamou ela interrompendo-me – Meu filho, não levantes a voz para acusar aquele que te deu a vida. Adelaide, que estava presente, pálida e abatida, disse com voz grave e melancólica; porém firme, que revelava dignidade:
— Para que repetirem-se estas cenas de humilhação e de pranto, que me magoam? Cessem elas, senhora, para sempre.
E voltando-se para mim, com acento breve; mas trêmulo e amargurado, concluiu: — Tancredo, eu te restituo teus votos.
E depois, com voz mais tocante e mais dolorosa, que me cortou o coração, prosseguiu:
— Agradeço-te, generoso mancebo, o afeto desinteressado, que animou teu coração; mas se me é permitido pedir-te ainda um último favor: – Tancredo, pelo amor do céu não desafies a cólera de teu pai!
— Mulher angélica! – bradei comovido por tão sublime expressão.
— Que me pedes? Posso por ventura esquecer-te? Poderei viver um só dia sem ver-te? Sem ouvir o harmonioso som da tua voz? Oh! Adelaide... Esse sacrifício fora demais para mim – nunca o farei!... Deixasses embora de amar-me, que ainda assim eu te amaria loucamente.
— E eu, – disse ela com amargura; mas tão baixo que só eu lhe ouvi – triste de mim! amar-te-ei sempre; mas em silêncio – basta que só Deus o saiba.
E um turbilhão de lágrimas borbulharam de seus olhos e sufocaram-na.
— Úrsula... minha Úrsula, – só agora sei que essa mulher mentia, que suas lágrimas eram encadeadas aleivosias e suas palavras refalsadas como o seu coração.
Tresloucado, porque essas lágrimas feriam a minha alma, arranquei-me à triste cena que tão dolorosamente me magoava, e fui procurar meu pai.
Apenas fiz-me anunciar, fui logo introduzido em seus aposentos.
Nesse quarto, onde brilhava o luxo e a opulência, tudo era triste e sombrio.
Cruzava-o meu pai com passos rápidos e incertos; seus olhos refletiam o ódio que lhe dominava nesse momento o pensamento. Notei que suas feições estavam transtornadas, e que baça palidez lhe anuviava o rosto. Semelhava o leão ferido, que despede chama dos olhos, e eu julguei que ia prorromper em insensatos brados. Enganei-me.
Apenas viu-me, serenou um pouco, assentou-se, e acenou-me para a cadeira, que estava ao lado.
Houve então um momento de profundo silêncio, nesse momento, meu pai observava atento minha fisionomia, que devia estar bastante alterada; porque eu sofria horrivelmente.
Entretanto, depois de minucioso e aturado exame, deixou errar nos lábios um sorriso meio animador, e meio escarnecedor, e disse-me com irônico acento que esmagava:
— Por mais que tenha cogitado, não atinei ainda, meu Tancredo, com o motivo, que te obriga a assim obsequiar-me. Não ousava contar com este favor.
Inclinei-me, e ele prosseguiu:
— Dispunha-me agora mesmo a ir procurar-te; porque tenho notícias de alta importância para comunicar-te.
— Estou às vossas ordens, meu pai – disse-lhe com sequidão.
— Que reserva! – exclamou mordendo os beiços. — Que reserva, Tancredo! Que quer isto dizer? Desconheço-te.
— Senhor... – redargui confuso por aquela interpelação que não esperava.
— Tancredo! – bradou com voz de trovão. — Vens por acaso questionar comigo? Também tu!... – E sorriu-se com desdém, e depois continuou: — De há muito que conheço que o amor que me dedicas não excede aos limites que te impõe a sociedade, e a decência. Bem; nem outra coisa podia esperar: entretanto para provar-te o meu desvelo, não hei poupado fadigas, nem desdenhado meios para oferecer-te um lugar distinto entre os homens.
— Meu pai! – disse-lhe com dignidade – Agradeço-vos os desvelos de que me tendes cercado; mas senhor...
— Cala-te, – interrompeu ele mudando de tom – nada de recriminações. Podes seguir – continuou – as tuas inclinações, teu pai não te estorvará a carreira.
E com certo sorriso, meio fagueiro, perguntou-me:
— Poderei saber o que aqui te trouxe?
— Então, não atinastes ainda com o motivo da minha visita? – disse-lhe. — Pois bem, explicá-lo-ei se o permitirdes.
— Fala. – disse-me friamente.
— Já não podeis ignorar, senhor – comecei – que amo com paixão a jovem Adelaide, e que é ela digna da minha mão: uma só palavra vossa bastará agora para a minha completa ventura. O vosso consentimento, senhor, para desposá-la, que o meu reconhecimento será eterno e profundo.
— Deveras? – interrogou, fitando em mim seus olhos com indefinível altivez, e depois cravando-os no chão, guardou profundo silêncio, que eu não ousei quebrar; porém mais tarde compondo o rosto avermelhado e severo, objetou com voz firme; mas pausada, grave, e sem cólera:
— Meu filho, tenho pensado madura e longamente sobre os teus amores – são uma loucura!
— Loucura! – exclamei com ânsia – Loucura, meu pai? Porque o dizeis? Porque é ela pobre! Oh! A um tesouro de riquezas é preferível seu coração.
Escutou-me sem alterar-se, e depois perguntou-me pesando cada uma de suas palavras.
— Sabes tu quem era o pai dessa menina? Não te falarei, – continuou – de seus cofres vazios de ouro pelo seu péssimo proceder; mas, Tancredo, sobre o nome desse homem pesa uma...
— Perdão, meu pai. – atalhei com aflição – Amo-a. Que me importa o nome de seu pai? Dar-lhe-ei o meu; e se alguma nódoa houve sobre esse homem, purificou-a o gelo do sepulcro. Meu pai, Adelaide está pura dessa mancha como de toda a culpa.
Esperava uma explosão de cólera; mas contra toda a expectativa sorriu-se com bondade e disse-me:
— Tancredo, tens o meu consentimento. Adelaide será tua esposa, mas hás de permitir que te imponha uma condição.
A estas palavras, Úrsula, eu estava de joelhos aos pés desse homem, que pela vez primeira se mostrava bondoso.
— Falai, meu pai, – disse-lhe – qualquer que ela seja aceito-a.
— Pois bem – tornou ele rindo-se tão expansivamente, que, Deus meu! Acreditei que vinha tudo aquilo do coração, que se lhe expandia pela minha felicidade: e eu transportado de reconhecimento beijava-lhe as mãos, e sentia que o amava, porque era feliz. Mas esta ilusão passou, e o despertar foi doloroso.
— Tancredo, és o desposado de Adelaide. – disse-me. – Doravante esse tesouro, que hás amado, será por mim vigiado como a mais preciosa esperança da tua suprema ventura; Adelaide, porém, é ainda uma criança, e a experiência de uma já longa existência obriga-me a impor-te a condição de esperar por essa união um ano.
— Oh! Meu pai!...
— Escuta-me. Bem sabia eu que te ias afligir; porém atende-me. A esposa que tomamos é a companheira eterna dos nossos dias. Com ela repartimos as nossas dores, ou os prazeres que nos afagam a vida. Se é ela virtuosa, nossos filhos crescem abençoados pelo céu; porque é ela que lhes dá a primeira educação, as primeiras ideias de moral; é ela enfim que lhes forma o coração, e os mete na carreira da vida com um passo, que a virtude marca. Mas, se pelo contrário, sua educação abandonada torna-a uma mulher sem alma, inconsequente, leviana, estúpida ou impertinente, então do paraíso das nossas sonhadas venturas despenhamo-nos num abismo de eterno desgosto. O sorriso foge-nos dos lábios, a alegria do coração, o sono das noites, e a amargura nos entra na alma e nos tortura. Amaldiçoamos sem cessar essa mulher que adorávamos prostrados; porque se nos figura agora o anjo perseguidor dos nossos dias. Vês, meu filho, – continuou – Adelaide é apenas uma criança; é tão nova... Tão pouco conheces suas qualidades que...
— Mas, meu pai! – interrompi-lhe – Que dotes faltam ao espírito de Adelaide? Não a tem educado minha mãe!?
Franziu ligeiramente os supercílios, e disse:
— Sua educação não está completa; ademais – continuou apresentando-me um papel dobrado, e selado – eis aqui um despacho, que obtive para ti, meu filho. Honroso é o emprego que te oferecem, e eu ouso esperar que o meu Tancredo não só o não recusará, porque foi solicitado por seu pai, como não deixará de partir breve, obedecendo às ordens superiores que o mandam à cidade de ***.
Abri o fatal papel, li-o, e gelei de dor.
Era para longe da minha província que me desterravam.
— Meu pai! – exclamei pálido de comoção.
— Recusas? – perguntou-me desconcertando-se. — Recusas?
— Não, senhor. Mas...
— Mas... O quê?
— Meu pai, porque não desposarei Adelaide antes de partir para a terra do exílio? Oh! Não, não, hei de desposá-la; e depois irei contente.
Então ele mordeu asperamente os beiços, tornou-se rubro de cólera, e com voz, que mal disfarçava a raiva de ver-se assim contrariado, disse-me:
— Tancredo, dei-te a minha palavra, Adelaide será tua esposa, é um sacrifício: impus-te uma condição, aceitaste-a. É sacrifício por sacrifício. A condição é fácil de aceitar-se, mas...
Interrompeu-se e ficou em silêncio.
Velho cruel! Dizia eu a mim mesmo; porque semelhante procedimento para comigo?!
— Acabemos com isto: – tornou-me ele enfurecido – uma palavra somente. Aceitas, ou queres lutar comigo?
Revolveram-se-me então na mente abrasadas ideias, que mal se compadeciam com os sacros deveres prescritos a um filho pela sociedade e pela natureza.
Comprimido o coração, sentia estalar-me de agonia; e eu olhava esse velho implacável e frio, que embargava a minha ventura.
Baixei os olhos, meditei por largo tempo, e submeti-me à sua vontade férrea. Saí do seu quarto prostrado de amargura, e porque a dor era funda em meu coração.
continua pág 55...
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Maria Firmina dos Reis nasceu em São Luís, no Maranhão, no dia 11 de outubro de 1825. Filha bastarda de João Pedro Esteves e Leonor Felipe dos Reis. Foi uma escritora brasileira, considerada a primeira romancista brasileira.
Em 1847, aos 22 anos, ela foi aprovada em um concurso público para a Cadeira de Instrução Primária, sendo assim a primeira professora concursada de seu Estado. Maria demonstrou sua afinidade com a escrita ao publicar “Úrsula” em 1859, primeiro romance abolicionista, primeiro escrito por uma mulher negra brasileira.
O romance “Úrsula” consagrou Maria Firmina como escritora e também foi o primeiro romance da literatura afro-brasileira, entendida esta como produção de autoria afrodescendente. Em 1887, no auge da campanha abolicionista, a escritora publica o livro “A Escrava”, reforçando sua postura antiescravista.
Em 1975, Maria recebe uma homenagem de José Nascimento Morais Filho que publica a primeira biografia da escritora, Maria Firmina: fragmentos de uma vida.
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Úrsula - Apresentação
Úrsula - Maria Firmina dos Reis: uma voz em conflito
Úrsula - Prólogo
Úrsula - I Duas almas generosas (1)
Úrsula - I Duas almas generosas (2)
Úrsula - II O delírio (1)
Úrsula - II O delírio (2)
Úrsula - III A declaração de amor (1)
Úrsula - III A declaração de amor (2)
Úrsula - IV A primeira impressão
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