quinta-feira, 8 de outubro de 2020

Úrsula - III A declaração de amor (1)

 Maria Firmina dos Reis




III - A declaração de amor 



Muitos dias se passaram já, e Túlio, menos preocupado, mostrava-se feliz e comunicativo. Luísa B. o tinha incumbido do serviço exclusivo do seu hóspede, que começava a recobrar as forças, o que ele atribuía aos cuidados do jovem negro e da formosa donzela, e ao ar puro que ali respirava. Com efeito ele ia a melhor, e cada dia dava esperanças de próxima convalescença. Aprazia-se com essa notícia a boa senhora Luísa B.; mas a encantadora Úrsula, melancólica, e mais bela que nunca, sentia um indefinível pesar ao lembrar-se que em breve volveria para o seu antigo exulamento, e ainda maior que dantes: o cavaleiro falava de sua próxima partida.

Túlio acompanhava-o.

Tinha-se alforriado. O generoso mancebo, assim que entrou em convalescença, dera-lhe dinheiro correspondente ao seu valor como gênero, dizendo-lhe:

— Recebe, meu amigo, este pequeno presente que te faço, e compra com ele a tua liberdade.

Túlio obteve pois por dinheiro aquilo que Deus lhe dera, como a todos os viventes. Era livre como o ar, como o haviam sido seus pais, lá nesses adustos sertões da África; e, como se fora a sombra do seu jovem protetor, estava disposto a segui-lo por toda a parte. Agora Túlio daria todo o seu sangue para poupar ao mancebo uma dor sequer, o mais leve pesar; a sua gratidão não conhecia limites. A liberdade era tudo quanto Túlio aspirava; tinha-a – era feliz!

E Úrsula invejava vagamente a sorte de Túlio e achava maior ventura do que a liberdade poder ele acompanhar o cavaleiro.

Pobre menina! Toda entregue a uma preocupação, cuja causa não podia conhecer ainda, engolfava-se de dia para dia em mais profunda tristeza, que lhe tingia de sedutora palidez as frescas rosas de suas faces aveludadas. Pouco e pouco desbotava-se-lhe o carmim dos lábios, e os olhos perdiam seus vívidos reflexos, sem que nem ela própria desse fé dessa transformação!

Alguém havia, porém, que reparava nessa mudança, que o coração já lho havia denunciado, fazendo-lhe vibrar nas suas cordas todos os simpáticos eflúvios que emanavam do peito cândido e descuidoso da virgem. Esse alguém amava a palidez de Úrsula, esse alguém adorava-lhe a suave melancolia, e o doce langor de seus negros olhos. Mas ela nem sequer descobrira tal, não sabendo explicar na sua inocência o que sentia.

À proporção que se adiantavam as melhoras do seu hóspede, Úrsula com precaução ocultava-se às suas vistas, limitando-se unicamente a informar-se com Túlio da sua saúde, e empregando as horas de seu mortal enfado no generoso desempenho de sua filial solicitude.

Dias inteiros estava à cabeceira do leito de sua mãe, procurando com ternura roubar à pobre senhora os momentos da angustiada aflição: mas tudo em vão porque seu mal progredia, e a morte se lhe aproximava a passo lento e impassível; porém firme e invariável.

À noite, após compridas horas de vigília ao pé desse leito materno, onde ela consumia seus primeiros anos de juventude, a donzela, recolhida em seu gabinete, meditava profundamente. Ela antes tão descuidosa, ela no arrebol da vida, no primeiro despontar da existência, tão bela, tão pura, tão ingênua e tão louçã; porque sentia esse desejo irresistível de engolfar-se em tristes pensamentos, que lhe davam a um tempo prazer e pena?! Onde a levava o ardor da mente? Úrsula, interrogada, mal o saberia dizer.

E as noites tornavam-se para ela longas e fatigantes; porque o sono não lhe abreviava as horas do cismar acerbo, nem lhe reparava as forças, e por isso a aparição da aurora era-lhe quase uma felicidade.

À hora em que os pássaros despertam alegres e amorosos, em que o vento mais queixoso cicia por entre as franças das árvores, em que a relva, orvalhada pela noite, ergue suas folhinhas mais verdes e mais belas, à essa hora mágica em que toda a criação louva ao Senhor, e que o coração sente que nasceu para amar, a donzela, procurando fugir a suas meditações, saía a respirar a pureza da aragem matutina.

Quantas vezes ela, sentada sobre a relva ou recostada a algum tronco colossal, que decepado e meio combusto brada contra a barbaria e rotina da nossa lavoura semisselvática, via despontar o sol por sob a orla azul dos horizontes, espalhando com seus raios de fogo a luz por toda a parte e destruindo como por encantamento a neblina, que qual denso véu encobria aos olhos madrugadores toda aquela paisagem!...

Aí de novo entregue a seus pensamentos, Úrsula perguntava a si própria a causa de seus sofrimentos, e às vezes chegava a persuadir-se que seu fim estava próximo, e sorria-se. Pobre menina!...

Quando o sol tingia de cor dourada os cocares das palmeiras, ela voltava ao lar materno para continuar a desempenhar a penosa tarefa de que se havia incumbido. E a pobre mãe exultava de vê-la tão meiga, tão generosa, e tão compassiva.

Ninguém em casa sabia dos seus passeios matinais, e ninguém os adivinhava, e por isso esperava com ânsia o romper do dia: e a hora em que a natureza desperta, só, e sem temor, tomava o caminho que bem lhe convinha e ia conversar com a solidão, essa conversa que só Deus compreende, e quando voltava achava-se mais aliviada.

Úrsula enganava-se – cada dia mais se agravavam seus males.

E o cavaleiro, quase que inteiramente restabelecido, apenas ressentindo-se algum tanto do pé, dispunha-se com efeito para a partida; e em seu coração havia bem profundas saudades; porque nessa habitação encontrara vida e acolhimento. Aí alguém lhe prendera o coração, e o mancebo, cheio de amor e de gratidão, sentia deslizarem-se-lhe os dias breves e risonhos. Entretanto a sua partida era infalível; mas ele não podia afastar-se daqueles lugares sem ter uma explicação. Era preciso ver Úrsula, e Úrsula fugia-lhe como a caça foge ao caçador. E o dia passava, e vinha a noite, e sucedia-se outro, e mais outro dia, e o moço dilatava a sua viagem.

Em uma madrugada, contudo, após uma noite de atribulada vigília, mais cedo ainda que de costume, a mimosa donzela entranhou-se por acaso no mais espesso da mata, onde não bulia a mais pequena folha, e onde apenas o reflexo do sol nascente penetrava a custo. Divagando por ela sem tino, vencida pelo cansaço sentou-se, ou deixou-se cair sobre as raízes de um jatobá, cuja altura chamaria a atenção de outra que não fora Úrsula, de outra que não sentira, como ela, o coração oprimido por mortal desassossego. Este jatobá, sobre cujas raízes Úrsula se deixara cair, parecia em anos rivalizar com a criação; sua copa altaneira, balançando-se no espaço, derramava grata sombra em larga distância. Aí em seu tronco, a natureza, melhor que um hábil artista, entalhara em derredor espaçosos degraus, como outros tantos assentos preparados para descanso dos que à sua sombra buscassem uma hora de repouso, ou de meditativo cismar.

Úrsula sentou-se sem o menor reparo num desses degraus, e continuou nos seus pensamentos loucos, ou talvez inocentes como a sua alma; mais profundos, penosos para ela, que pela vez primeira sentia a necessidade de uma alma que compreendesse a sua, de um pensamento que se harmonizasse como o seu.

Mas amava ela a alguém? Ao cavaleiro? Talvez! Úrsula sentia uma vaga necessidade de ser amada, de amar mesmo; mas em quem empregar esse amor, que devia ser puro como a luz do dia, ardente como o fogo de madeira resinosa?! Em quem? Não o sabia ainda.

Úrsula, malgrado seu, experimentava todo o fogo de um primeiro amor, bem o conhecia, e revoltava-se contra esse sentimento, que supunha não ser compartilhado, e atribuía-o a simples amizade. Embalde o coração lhe gritava, esclarecendo-a, ela julgava-se humilhada, reassumia toda a sua dignidade em face do cavaleiro, e só na solidão derramava o pranto de amargo e oculto padecer.

Entretanto, nessa madrugada em que Úrsula, ferida pela mais profunda angústia, sentara-se junto ao altivo jatobá que ficava a cavaleiro às demais árvores, pensava em que o mancebo ia nesse mesmo dia partir, e esse pensamento era-lhe como o leito de Procusto. O coração desfalecia-lhe de dor, a vida parecia-lhe agora inútil e fastidiosa. Sentiu leve arruído de folhas secas como que calcadas sob os pés que se moviam cautelosos, e despertou. E o arruído não cessou. Então a jovem donzela, meio assustada levantou os olhos, e perscrutou em derredor; mas nada viu. Seria talvez alguma fugaz cotia que atravessa o bosque correndo. Então Úrsula de novo voltou aos seus sonhos; mas um momento depois os passos eram já mais próximos, ela tornou o olhar, e mais amedrontada, quis erguer-se, quis sair correndo; porém uma força oculta, irresistível, a deteve, e os passos muito perto estavam dela. Úrsula, temerosa, e sem poder atinar com quem seria, estremeceu, mas não de verdadeiro medo, antes por um pressentimento incompreensível e que às vezes pressagia vagamente algum acontecimento futuro da nossa vida. Úrsula tudo ignorava; mas alguém com íntima satisfação descobriu seus passeios matinais, alguém, que sentia a necessidade de vê-la, de falar-lhe um momento, e que devassou-lhe o retiro e foi perturbá-la em sua meditação.

E de repente ela ouviu uma voz, que a essa hora do amanhecer, nesse lugar, onde se julgava só, a surpreendeu, assustou-a, e lhe arrancou um grito.

— Úrsula! – dizia-lhe a pessoa que estava ante seus olhos. – Úrsula, perdoar-me-eis?

— Oh! Pelo céu, Senhor! – exclamou a moça a tremer. – Que viestes aqui fazer?!

E levantou-se resolvida a deixá-lo, castigando assim tanta ousadia. O mancebo, antevendo a sua resolução, caiu-lhe aos pés e, suplicante, disse-lhe:

— Oh! Não, não, Úrsula, por amor de vossa mãe, não me deixeis sem ouvir-me.

E tanta singeleza havia nestas palavras, e tanta expressão nos olhos do mancebo, que a donzela estacou indecisa e confusa.

Era o cavaleiro convalescente o homem que assim falava, como o leitor perspicaz tê-lo-á já adivinhado.

Nesse momento tão solene para Úrsula, sentiu profundo arrependimento de seus passeios da alvorada, e rápido pela mente repassou todos os últimos atos de sua vida, sem atinar com o motivo que a levou tão longe de sua morada, e a um bosque que nunca vira, e porque fatalidade aquele homem a viera aí surpreender.



continua pág 42...


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Maria Firmina dos Reis nasceu em São Luís, no Maranhão, no dia 11 de outubro de 1825. Filha bastarda de João Pedro Esteves e Leonor Felipe dos Reis. Foi uma escritora brasileira, considerada a primeira romancista brasileira.

Em 1847, aos 22 anos, ela foi aprovada em um concurso público para a Cadeira de Instrução Primária, sendo assim a primeira professora concursada de seu Estado. Maria demonstrou sua afinidade com a escrita ao publicar “Úrsula” em 1859, primeiro romance abolicionista, primeiro escrito por uma mulher negra brasileira.

O romance “Úrsula” consagrou Maria Firmina como escritora e também foi o primeiro romance da literatura afro-brasileira, entendida esta como produção de autoria afrodescendente. Em 1887, no auge da campanha abolicionista, a escritora publica o livro “A Escrava”, reforçando sua postura antiescravista.


Ao aposentar-se, em 1880, fundou uma escola mista e gratuita. Maria morre aos 92 anos, na cidade de Guimarães, no dia 11 de novembro de 1917.

Em 1975, Maria recebe uma homenagem de José Nascimento Morais Filho que publica a primeira biografia da escritora, Maria Firmina: fragmentos de uma vida.

A importância da obra de Firmina, primeira escritora negra de que se tem notícia em nossa literatura, se deve ao pioneirismo na denúncia da opressão a negros e mulheres no Brasil do século XIX. Antes do Navio negreiro de Castro Alves, declamado pela primeira vez em 1868, Firmina já descrevia em seu livro Úrsula, de 1859, a crueldade do tráfico de pessoas sequestradas na África e transportadas nos porões dos “tumbeiros”. Neste mesmo romance, a crítica da escritora abrange o retrato lamentável da condição feminina da época ao delinear personagens como o pai de Tancredo ou o comendador, tiranos não só de escravos, mas também de mulheres. 

Maria Firmina foi uma voz profundamente legítima e dissonante que não encontrou acolhida e reconhecimento em seu tempo. Longe de fracassar, essa voz ressoa hoje cheia de significado, recriminando males que ainda assombram e permeiam nossa sociedade.

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