terça-feira, 31 de agosto de 2021

Gabriel G Márquez - Cem Anos de Solidão (3.2) - ... Não é hora de andar pensando em casamentos

 Cem Anos de Solidão


Gabriel Garcia Márquez


(3.2)



para jomí garcía ascot 

e maría luisa elío





continuando...



De repente — quando o luto existia há tanto tempo que já se tinham retomado as sessões de ponto de cruz — alguém empurrou a porta da rua às duas da tarde, no silêncio mortal do calor, e as colunas estremeceram com tal força nos cimentos que Amaranta e suas amigas que bordavam na varanda, Rebeca que chupava o dedo no quarto, Úrsula na cozinha, Aureliano na oficina e até José Arcadio Buendía sob o castanheiro solitário tiveram a impressão de que um tremor de terra estava desmontando a casa. Chegava um homem descomunal. Os seus ombros quadrados mal cabiam nas portas. Trazia uma medalhinha da Virgem dos Remedios pendurada no pescoço de búfalo, os braços e o peito completamente bordados de tatuagens enigmáticas, e na munheca direita o apertado bracelete de cobre dos niñosen- cruz [1].

[1] Explicação do autor à tradutora: “Segundo uma lenda popular, alguns homens fazem abrir o pulso e ali meter uma pequena cruz especial fechando-o depois com uma pulseira de ferro ou cobre. Isto, segundo a lenda, lhes dá uma força extraordinária.”

Tinha o couro curtido pelo sal da intempérie, o cabelo curto e aparado como a crina de uma mula, as mandíbulas férreas e o olhar triste. Usava um cinturão duas vezes mais largo que a barrigueira de um cavalo, botas com polainas e esporas, os saltos reforçados com chapinhas de metal, e a sua presença dava a impressão trepidante de um abalo sísmico. Atravessou a sala de visitas e a sala de estar, carregando na mão uns alforjes meio arrebentados, e apareceu como um trovão na varanda das begônias, onde Amaranta e suas amigas estavam paralisadas, com as agulhas no ar. “Olá”, disse a elas com a voz cansada, e atirou os alforjes sobre a mesa de trabalho e passou de largo para o fundo da casa. “Olá”, disse a ele a assustada Rebeca, que o viu passar pela porta do quarto. “Olá”, disse a Aureliano, que estava com os cinco sentidos alerta na mesa de ourivesaria. Não se entreteve com ninguém. Foi diretamente para a cozinha e ali parou pela primeira vez, ao fim de uma viagem que tinha começado do outro lado do mundo.

“Olá”, Úrsula ficou uma fração de segundo com a boca aberta olhou-o nos olhos, lançou um grito e pulou no pescoço gritando e chorando de alegria. Era José Arcadio. Voltava tão pobre como tinha ido, a ponto de Úrsula ter de lhe dar dois pesos para pagar o aluguel do cavalo. Falava o espanhol com gíria de marinheiros. Perguntaram-lhe onde tinha estado, e respondeu: “Por aí.” Pendurou a rede no quarto que lhe designaram e dormiu três dias. Quando acordou, e depois de tomar dezesseis ovos crus, saiu diretamente para a taberna de Catarino, onde a sua corpulência monumental provocou um pânico de curiosidade entre as mulheres. Ordenou música e aguardente para todos, por sua conta. Fez apostas de braço com cinco homens ao mesmo tempo.

“É impossível”, diziam, ao se convencerem de que não conseguiriam mover-lhe o braço.

“Tem niños-en-cruz.” Catarino, que acreditava em artifícios de força, apostou doze pesos que movia o balcão. José Arcadio arrancou-o do lugar, levantou-o equilibrando-o sobre a cabeça e o jogou na rua. Foram necessários onze homens para pô-lo pra dentro de volta. No calor da festa, exibiu sobre o balcão a sua masculinidade inverossímil, inteiramente tatuada num emaranhado azul de letreiros em vários idiomas. Às mulheres que o assediaram com a sua cobiça, perguntou quem pagava mais. A que tinha mais ofereceu vinte pesos. Então ele propôs se rifar entre todas, a dez pesos cada número. Era um preço exorbitante, porque a mulher mais solicitada ganhava oito pesos por noite, mas todas aceitaram. Escreveram os seus nomes em papeizinhos que puseram num chapéu, e cada mulher tirou um. Quando só faltava tirar dois papeizinhos, determinou-se a quem correspondiam.

— Cinco pesos a mais cada uma — propôs José Arcadio e me reparto entre as duas.

Disso vivia. Deu sessenta e cinco vezes a volta ao mundo metido numa tripulação de marinheiros apátridas. As mulheres que se deitaram com ele naquela noite, na taberna de Catarino, trouxeram-no inteiramente nu ao salão de baile, para que vissem que não tinha um milímetro do corpo sem tatuar, na frente e nas costas, e desde o pescoço até os dedos dos pés. Não conseguia se integrar na família. Dormia o dia inteiro e passava a noite no bairro de tolerância, fazendo apostas de força. Nas escassas ocasiões em que Úrsula pôde sentá-lo à mesa, demonstrou uma simpatia irradiante, sobretudo quando contava as suas aventuras em países longínquos. Tinha naufragado e permanecido duas semanas à deriva no mar do Japão, alimentando-se com o corpo de um companheiro que sucumbiu de insolação, cuja carne salgada e tornada a salgar e cozinhada ao sol tinha um sabor granuloso e doce. Num meio-dia radiante do golfo de Bengala, o seu navio vencera um dragão do mar em cujo ventre encontraram o elmo, as fivelas e as armas de um cruzado. Vira no Caribe o fantasma do navio pirata de Victor Hugues, com o velame solto pelos ventos da morte, os mastros carcomidos pelas baratas do mar, e perdido para sempre da rota de Guadalupe. Úrsula chorava na mesa como se estivesse lendo as cartas que nunca chegaram, nas quais José Arcadio relatava as suas façanhas e desventuras. “E tanto lugar aqui, meu filho”, soluçava. “E tanta comida jogada aos porcos!” Mas no fundo não podia conceber que o rapaz que os ciganos levaram fosse o mesmo alarve que comia meio leitão no almoço e cujas ventosidades murchavam as flores. Algo de semelhante acontecia com o resto da família. Amaranta não podia dissimular a repugnância que lhe produziam na mesa os seus arrotos bestiais. Arcadio, que nunca conheceu o segredo da sua filiação, mal respondia as perguntas que ele lhe fazia, com o propósito evidente de conquistar o seu afeto. Aureliano tentou reviver os tempos em que dormiam no mesmo quarto, procurou restaurar a cumplicidade da infância, mas José Arcadio se esqueceu de tudo porque a vida do mar lhe saturara a memória com coisas demais para recordar. Só Rebeca sucumbiu ao primeiro impacto. Na tarde em que o viu passar diante do seu quarto, pensou que Pietro Crespi era um almofadinha magricela junto daquele protomacho cuja respiração vulcânica se percebia em toda a casa. Procurava estar perto dele sob qualquer pretexto.

Certa ocasião, José Arcadio olhou para o seu corpo com atenção descarada e disse a ela: “Maninha, você é muito mulher”. Rebeca perdeu o domínio de si mesma. Voltou a comer terra e cal das paredes com a avidez dos outros tempos e chupou o dedo com tanta ansiedade que formou um calo no polegar. Vomitou um líquido verde com sanguessugas mortas. Passou noites em vigília, tiritando de febre, lutando contra o delírio, esperando até que a casa trepidasse com o regresso de José Arcadio ao amanhecer. Uma tarde, quando todos dormiam a sesta, não aguentou mais e foi ao seu quarto. Encontrou-o de cuecas, acordado, estendido na rede que pendurara nos ganchos com os cabos de amarrar navio. Impressionou-a tanto a sua enorme nudez sarapintada que teve ímpeto de retroceder. “Perdão”, se desculpou. “Eu não sabia você estava aqui.” Mas abaixou o tom de voz para não acordar ninguém. “Vem cá”, disse ele. Rebeca obedeceu. Deteve-se junto da rede, suando gelo, sentindo que se formavam nós nas tripas enquanto José Arcadio lhe acariciava os tornozelos com a polpa dos dedos, e depois a barriga das pernas e depois as coxas, murmurando: “Ah, maninha; ah maninha.” Ela teve que fazer um esforço sobrenatural para não morrer quando uma potência ciclônica, assombrosamente regulada levantou-a pela cintura e despojou-a da sua intimidade com três patadas, e esquartejou-a como a um passarinho. Conseguiu dar graças a Deus por ter nascido, antes de perder a consciência no prazer inconcebível daquela dor insuportável, chapinhando no lago fumegante da rede que absorveu como um mata-borrão a explosão do seu sangue.

Três dias depois, casaram-se na missa das cinco. José Arcadio tinha ido no dia anterior à loja de Pietro Crespi. Encontrara-o dando uma aula de cítara e nem ao menos o chamou de lado para falar. “Caso-me com Rebeca”, disse. Pietro Crespi ficou pálido, entregou a citara a um dos discípulos e deu a aula por encerrada. Quando ficaram sozinhos no salão abarrotado de instrumentos musicais e brinquedos de corda, Pietro Crespi disse:

— Ela é sua irmã.

— Não me importa — respondeu José Arcadio.

Pietro Crespi enxugou a testa com um lenço impregnado de alfazema.

— É contranatura — explicou — e, além disso, a lei proíbe.

José Arcadio se impacientou, não tanto com a argumentação como com a palidez de Pietro Crespi.

— Estou cagando pra essa tal de natura — disse. — E venho dizer isso a você para que não se dê o trabalho de ir perguntar nada a Rebeca. Mas o seu comportamento brutal se quebrantou, ao ver que os olhos de Pietro Crespi se umedeciam.

— Agora — disse a ele em outro tom — se você gosta é da família, ainda lhe resta Amaranta.

O Padre Nicanor revelou, no sermão de domingo, que José Arcadio e Rebeca não eram irmãos. Úrsula não perdoou nunca o que considerou como uma inconcebível falta de respeito, e quando voltaram da igreja proibiu aos recém-casados de voltar a pisar na sua casa. Para ela, era como se estivessem mortos. De modo que alugaram uma casinha defronte do cemitério e nela se instalaram sem mais mobília que a rede de José Arcadio. Na noite de núpcias, Rebeca teve o pé mordido por um escorpião que se metera nas suas pantufas. Ficou com a língua dormente, mas isso não impediu que passassem uma lua-de-mel escandalosa. Os vizinhos se assustavam com os gritos que acordavam o bairro inteiro até oito vezes por noite, e até três vezes durante a sesta, e rogavam para que uma paixão tão desaforada não fosse perturbar a paz dos mortos. Aureliano foi o único que se preocupou com eles. Comprou-lhes alguns móveis e lhes proporcionou dinheiro, até que José Arcadio retomou o sentido da realidade e começou a trabalhar as terras de ninguém que terminavam no quintal da casa. Amaranta, pelo contrário, não conseguiu superar nunca o seu rancor contra Rebeca, embora a vida lhe oferecesse uma satisfação com que não havia sonhado: por iniciativa de Úrsula, que não sabia como reparar a vergonha, Pietro Crespi continuou almoçando às terças-feiras na sua casa, superior ao fracasso, com uma serena dignidade. Conservou a fita preta no chapéu como um sinal de apreço à família, e se comprazia em demonstrar o seu afeto a Úrsula, levando-lhe presentes exóticos: sardinhas portuguesas, geleia de rosas turcas, e, em certa ocasião um primoroso xale oriental. Amaranta o atendia com diligência. Adivinhava os seus gostos, arrancava-lhe os fios descosidos dos punhos da camisa, e bordou uma dúzia de lenços com as suas iniciais, para o dia do seu aniversário. As terças-feiras, depois do almoço, enquanto ela bordava na varanda, ele lhe fazia uma alegre companhia. Para Pietro Crespi, aquela mulher a quem sempre considerara e tratara como uma menina foi uma revelação. Embora seu tipo carecesse de graça, possuía uma refinada sensibilidade para apreciar as coisas do mundo, e uma ternura secreta. Numa terça-feira, quando ninguém duvidava de que mais cedo ou mais tarde teria de acontecer, Pietro Crespi pediu-lhe que se casasse com ele. Ela não interrompeu o trabalho. Esperou que passasse o quente rubor das orelhas e imprimiu a serena ênfase de maturidade.

— Claro que sim, Crespi — disse — mas quando a gente se conhecer melhor. Não convém precipitar as coisas.

Úrsula ficou confusa. Apesar do apreço que sentia por Pietro Crespi, não conseguia discernir se a sua decisão era boa do ponto de vista moral, depois de prolongado e ruidoso noivado com Rebeca. Mas acabou por aceitá-lo como um fato sem classificação, porque ninguém compartilhou das sua dúvidas. Aureliano, que era o homem da casa, confundiu-as ainda mais, com a sua enigmática e conclusiva opinião:

— Não é hora de andar pensando em casamentos.




continua página 62...


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Leia também:


Gabriel G Márquez - Cem Anos de Solidão (1.1) - Muitos anos depois...
Gabriel G Márquez - Cem Anos de Solidão (1.2) - Quando os ciganos voltaram...
Gabriel G Márquez - Cem Anos de Solidão (1.3) - Quando o pirata Francis Drake assaltou
Gabriel G Márquez - Cem Anos de Solidão (1.4) - O pai deu-lhe com as costas da mão
Gabriel G Márquez - Cem Anos de Solidão (1.5) - O filho de Pilar Ternera
Gabriel G Márquez - Cem Anos de Solidão (1.6) - Foi Aureliano quem concebeu
Gabriel G Márquez - Cem Anos de Solidão (1.7) - O tempo aplacou o seu propósito
Gabriel G Márquez - Cem Anos de Solidão (2.1) - A nova casa...
Gabriel G Márquez - Cem Anos de Solidão (2.2) - Aureliano foi o único..
Gabriel G Márquez - Cem Anos de Solidão (2.3) - ... as suas nove noites de velório
Gabriel G Márquez - Cem Anos de Solidão (3.1) - ... puberdade antes de superar os hábitos infantis
Gabriel G Márquez - Cem Anos de Solidão (3.2) - ... Não é hora de andar pensando em casamentos
Gabriel G Márquez - Cem Anos de Solidão (3.3) - ... Ele mesmo diante do pelotão de fuzilamento

Chico Buarque - Ópera do Malandro (prefácio e nota)

Ópera do malandro


Chico Buarque 
 

Ópera do malandro
americanismo: da pirataria à modernização autoritária (e o que se pode seguir)
 

"A multidão vai estar é seduzida" — Teresinha Fernandes de Duran



Nós, os brasileiros, desde há algum tempo temos cultivado paixão pelo moderno e uma persistente adesão à ideologia do progresso. Talvez, por isso, ao menos os homens com mais de 30 anos deste país sejam capazes de reconhecer algo da sua experiência nos filmes em que Fellini recorda sua juventude sob o fascismo. Principalmente nos flashes intrigantes que sublinham o mágico interesse pelo cinema americano, pela tecnologia e pela máquina, ou naqueles momentos carregados de sentido em que vielas estreitas e seculares são cruzadas rapidamente por possantes carros de corrida numa competição automobilística. Os efeitos bizarros da justaposição do moderno ao tradicional, e sobretudo de uma forma singular de modernização que aparenta ser produzida em nome do passado e para sua perpetuação.

A velocidade, a simultaneidade, a valorização de um ritmo de vida intenso, os novos espaços urbanos — aqui, o americanismo tem sido também uma estética. Largas avenidas, edifícios, automóveis, a idéia de limpeza associada ao moderno. Velhas cidades coloniais de rara beleza demolidas sem remorso, como que para apagar a presença constrangedora da memória social. A pirataria do capital imobiliário que destruiu a arquitetura de nossas principais cidades contou com nosso compassivo silêncio, às vezes até entusiasmados por sua substituição pelas novas ascéticas fachadas, tão desejadas em segredo quanto a esperança fantasista do esbranquiçamento racial.

O getulismo, o PTB e o latifúndio, o chiclete, a Coca-Cola, o nylon e os cines Metro. Mas para além da dimensão cultural, do mimetismo da moda, que também indicavam a falta de raízes das elites, o americanismo consistiu numa adequada práxis que em meio século transformou o país. Afirmou o predomínio da indústria sobre a agricultura, remarcou a composição demográfica e trouxe o eixo de gravitação para os centros urbano-industriais. Nas condições brasileiras, porém, sua inserção se produziu num contexto certamente diferenciado da sua imposição original nos Estados Unidos.

No final dos anos 20, a indústria se encontrava em fase incipiente, avançando marginalmente no interior da ordem oligárquica agro-exportadora. Constitui-se a nova fração burguesa através de um processo substitutivo de importações de bens de consumo não-duráveis, cujo impulso tinha como matriz as vicissitudes do mercado internacional para nosso principal produto de exportação — o café —, e situações de emergência, como a Primeira Guerra Mundial. A defesa cambial do sistema agroexportador, como se sabe, reverteu em favor da industrialização encarecendo os bens importados, e a diminuição do fluxo de mercadorias nos anos 1914 - 1918 atuava no sentido de fortalecer essa tendência.

Embora o Estado e o sistema da ordem no pré-30 assumissem uma forma liberal, a versão restritiva e excludente do liberalismo praticada pela oligarquia agrário-exportadora somente em parte atendia às necessidades de classe dos industriais. Assim com a mercantilização da força de trabalho disponível por meio do assalariamento, com as instituições, códigos e leis que proclamavam o triunfo burguês e da sua concepção do mundo. Mas havia claras disfuncionalidades para sua expansão, quer na imensa faixa da mão-de-obra retida pelos latifúndios, aí submetida a relações pré-capitalistas, quer no alto preço dos bens agrícolas, ambas as circunstâncias onerando o custo da força de trabalho industrial. Mais que tudo, o fato do Estado se achar sob apropriação da oligarquia agrária. Dado que não gozava de poder de concorrência com a produção estrangeira, sua plena imposição dependia de uma política protecionista do poder estatal, que só ocasional e indiretamente os negócios da agroexportação podiam conceder.

Por outro lado, o caráter oligárquico do sistema político não dava passagem ao atendimento das reivindicações acumuladas dos setores emergentes, que incluíam as camadas médias e os militares — "os tenentes" —, a burguesia industrial e a classe operária. Sem deter o poder do Estado, sem submeter ao movimento do seu capital a parte majoritária do estoque de força de trabalho, ainda vinculada a uma ordem de tipo patrimonial, a ordem liberal dos agrários não se comportava como meio próprio para a ascensão da fração burguesa industrial.. Ademais, havia outra séria razão — de uma ou de outra forma, o liberalismo facultava a mobilização, a organização e a ação da classe operária, de que as greves gerais de 1917 e 1918 e a fundação do PCB em 1922 se fariam exemplo. O difícil processo da sua acumulação, portanto, também se via ameaçado "por baixo".

Duas eram as modalidades possíveis de trânsito para sua hegemonia. A primeira, a ser construída pela expansão crescente das fábricas e da generalização da concepção do mundo fabril, num processo transformista onde a força do especificamente econômico desfizesse as relações pré-capitalistas no campo — submetendo todas as outras formas de capital pré-existente, bem como a força de trabalho, ao capital industrial —, e lhe abrisse uma generosa participação no poder estatal. Praticamente se inviabilizava pela ativa resistência do setor agro-exportador em manter o monopólio do Estado e da sua política econômica — lembre-se que a indústria brasileira era acusada de atividade "artificial" — a que vinha se juntar o crescente aguerrimento do sindicalismo.

A segunda, de natureza revolucionária, apontava para um terreno incerto e perigoso. Débil como era, o enfrentamento com as frações oligárquicas agrárias em seu conjunto implicava numa aliança com o campesinato, com a média e pequena propriedades rurais, setores intermediários urbanos radicalizados, e inclusive com a classe operária. Não contava com maturidade política para dirigir um processo de tal envergadura, que aliás jamais concebeu, para não se mencionar o estágio igualmente atrasado, em termos de consciência social, das demais classes e estratos cogitáveis para uma coalizão desse tipo. Contra a utopia revolucionária, contava com a boa certeza de que no atacado a ordem oligárquica atendia à burguesia como um todo, garantindo ademais um eficaz sistema de dominação sobre as classes subalternas.

A natureza distintiva do movimento político-militar de 1930 se constitui exatamente pela solução peculiar que impôs ao dilema burguês. Sem incluir a participação da fração dos industriais e sem conduzi-la diretamente ao poder, veio dar expressão às suas necessidades elementares, fornecendo pela intermediação do Estado, da política, os meios e os modos para sua conversão em dominante. O papel da classe reinante cabia à oligarquia agrária dissidente, que se soltará da sua antiga solidariedade com o setor agro-exportador. O moderno vinha à luz pelo ventre do arcaico e do tradicional. As elites do latifúndio em dissidência» este "Brasil negro", é que portavam os papéis de condução política da imposição do moderno. O americanismo aqui surgirá como forma particular de salvação de todas as frações burguesas, inclusive da que perdeu em 30, e não como resultado do triunfo de uma concepção do mundo burguesa-progressista. O passado reverenciará o moderno, ínstalando-o, mas cobrando o pedágio da sua conservação. Entre nós também os vivos seriam governados pelos mortos — Teresinha Fernandes de Duran é filha do sr. Duran e se casa com Max Overseas.

A crise de 1929 do mercado internacional deixara transparecer que a agroexportação não mais reunia condições de solidarizar em torno de si sequer os restantes setores das classes dominantes, estimulando a aberta contestação da classe operária e principalmente da juventude militar. O caráter da profundidade da rebelião conheceu seu testemunho heroico no sacrifício dos "18 do Forte", confirmado em extensão e importância pelo levante de 1924, em São Paulo, pela saga da Coluna Prestes e pela forma claramente hesitante com que esta foi combatida pelas forças federais. Apenas a indústria e a modernização capitalista poderiam refazer a solda burguesa, tendo ainda capacidade integrativa para acolher numa nova ordem a grande maioria dos descontentes. Ao Estado cumpria estabelecer os suportes que facultassem a reorientação da economia a fim de fundar a primazia do modo de produção especificamente capitalista a partir da fábrica moderna.

Tratava-se de uma vasta tarefa, a requerer medidas preparatórias como a construção de ciclópicas usinas produtoras de energia, a criação da siderurgia, a exploração e o refino do petróleo, a elevação da capacidade de importar e, em conseqüência, a de exportar, e na regulação do mercado interno, em especial do mercado da força de trabalho. Declarava-se como objetivo essencial do Estado a invenção pelo uso de recursos políticos de uma burguesia industrial de novo tipo, quer pelo aperfeiçoamento e depuração da pré-existente, quer pela indução de outras através de regias benesses concedidas pelo Estado para a realização de projetos de interesse geral da modernização que dirigia.

A busca desses fins estava condicionada à eficácia dos mecanismos de coerção acionados pelo aparato do poder. Sobre a noção de federação, suporte do liberalismo oligárquico, se afirmam pela força das armas, como em 1932, os ideais unitários. Sobre o liberalismo econômico, ideologia da agro-exportação, o dirigismo estatal. Tarefa enorme essa, a de reconstituir a ordem burguesa, atualizá-la face à nova realidade do mercado externo e ao realinhamento, no plano interno, das classes e camadas sociais. A política antecederá a economia e, para melhor servi-la, não poderá dispensar a violência.

Ao contrário do padrão clássico de americanismo, a hegemonia burguesa não "nascerá das fábricas". Seu ponto de partida virá das chamadas regiões supra-estruturais, do Estado, da política, do Direito, que irão traçar "de fora" pelas mãos dos nossos "junkers" caboclos as linhas mestras do processo de modernização. E tempo há de rolar até que parte das novas frações burguesas se sinta em condições — suprema audácia — de reivindicar para si o controle do arsenal político do Estado.

A ordem corporativa consistiu no formato institucional encontrado para a imposição do americanismo, aí compreendidas as alterações psico-físicas por que passam as classes subalternas para seu ajustamento ao trabalho industrial. O Estado se postaria numa posição acima das classes sociais, encarnação da razão e único sujeito do devir histórico, interpretando por mandato tácito a substância da vontade nacional. Politizando com exasperação suas funções econômicas, o Estado fazia decretar a abolição da prática da política por parte da sociedade civil. O universo do liberalismo seria o da divisão da sociedade por interesses egoísticos e insanavelmente contraditórios, uma verdadeira ante-sala do socialismo — escreviam os corifeus da modernização autoritária.

O interesse, para se expressar com legitimidade, deveria se recobrir do ideal da "grandeza nacional", o indivíduo se subordinar às necessidades e imperativos do Estado-nação. A democracia substantiva sucederia os degenerados formalismos da democracia liberal. A diferenciação entre classes sociais, uma perversão do liberalismo, substituída por uma ordem harmoniosa e orgânica em que os diferentes agentes da produção — as personas do capital e do trabalho — se reuniriam em sindicatos corporativos comungando da mesma identificação quanto a fins edificantes e patrióticos.

Historicamente é constatável na implantação do industrialismo o recurso à coerção, como meio de ressocialização para o trabalho fabril das massas rurais que, após serem expropriadas da posse da terra, acorrem aos centros urbanos em busca de meios de subsistência. O que varia é seu grau, e o modo particular como se combina com elementos consensuais. Gramsci, que dominava com maestria esse assunto, observava que no socialismo o consenso deveria predominar sobrea coerção na fase de trânsito para a indústria — onde esse processo ainda não tivesse ocorrido. No fordismo, forma superior da sua imposição numa ordem burguesa, os elementos consensuais se expressam na política de altos salários e na disseminação da ética puritana.

Nos países de capitalismo tardio, o uso da coerção tem se verificado em grande escala, entre outras razões de natureza geral, pelo fato da indústria desde seu início se ver confrontada pelo sindicalismo organizado, e em razão da direta inclusão do trabalhador na fábrica moderna sem o estágio prévio da cooperação e da manufatura. A modernização sob instituições corporativas se constitui numa forma exaltada de constrangimento, que visa simular entre os explorados no processo de trabalho a inexistência da exploração, apagando sua identidade na ideologia de comunhão entre o capital e o trabalho.

O Estado Novo de 1937 suprime a liberdade e a autonomia dos sindicatos, transformando-os em aparatos de Estado. Extrai-se da sociedade civil tudo que diga respeito à vida operária. Onde antes havia o conflito e a possibilidade de desintegração social, a razão do autoritarismo iluminado intervém para fundar a paz e a cooperação. Mas algo da fórmula consensual será preservada através da regulamentação dos direitos elementares do trabalho — limitação da jornada de trabalho, férias, descanso semanal, etc. —, fazendo as vezes de contrapartida da liberdade perdida pelo movimento operário.

No papel, igualavam-se empregadores e empregados, patrões e operários, submissos todos à severidade das mesmas leis e à realização da grandeza nacional. Como não podia deixar de acontecer, os industriais distinguiram o real da fantasia — aí, foram eles o malandro — e mandaram às favas a panacéia corporativa para evitar a luta de classes e o sonho milenarista de uma ordem burguesa sem conflitos, explorando sem piedade uma força de trabalho inerme, num capitalismo pirata e selvagem como de poucos se têm notícia.

Ao se iniciar a redemocratização em 45, esse regime de tutela do movimento sindical e operário aparentemente se aproxima do seu fim. Contudo, quando terminam os trabalhos da Constituinte em 1946, mais uma vez o liberalismo se faz acompanhar de disposições restritivas. Negou-se voto aos analfabetos, aos praças de pré, a elegibilidade aos sargentos e se manteve intocada a propriedade da terra. As formas reticentes em que se cuidou da liberdade e da autonomia sindicais e do direito de greve, a que se aliou a conservação da Justiça do Trabalho com as mesmas funções designadas pelo Estado Novo, permitiram, com algumas modificações, a continuidade do corporativismo sindical.

O segredo de Polichinelo da nova ordem liberal fazia-se visível quando, ao tratar da representação no Parlamento, criava mecanismos de sobrerepresentação para os Estados menos urbanizados, em geral os menos desenvolvidos industrialmente. Plus ça change, plus ça reste comme ça. Como é óbvio, se viam assim diminuídas as possibilidades dos setores emergentes dos grandes centros urbano-industriais de ganharem lugares no poder legislativo. A continuidade da ordem burguesa se faria com a preservação do compromisso entre a fração industrial e agrária, esta já uma sócia menor, apesar de seguir desempenhando importantes papéis políticos no sistema de dominação.

Tornou-se trivial separar — a ordem estado-novista projetou sua sombra por sobre a liberal. Na forma, essa transfiguração política era indicada a princípio pela coalizão entre o PSD e o PTB — o primeiro, herdeiro do sistema de controle característico nos campos; o segundo, da estrutura corporativista sindical — e, no conteúdo, pela sobrevida concedida à modernização autoritária. No fundamental, a via prussiana encontrará confirmação no regime do liberalismo político.

É menos comum, todavia, notar do que dependiam as instituições de 46 para fundarem uma ordem estável. Não de pouco, certamente. Sob sua vigência, um presidente da república foi levado ao suicídio, um renunciou apenas sete meses depois de eleito e outro foi apeado do poder pela força. A contrario sensu, a estabilização conseguida por JK se faz reveladora. Em seu período, não só se integram consensualmente as diferentes frações burguesas num projeto de modernização, como se mantêm as classes subalternas dos campos e das cidades sob suas formas tradicionais de controle.

A precariedade das instituições vigentes vinha à tona quando, ao lado da dissidência nos grupos dominantes em relação à natureza do projeto de expansão burguesa, produzia-se um afrouxamento — por razões que variavam no tempo — no uso desses controles. Tornava-se mais patente ao coincidir com um movimento genuíno que, irrompendo "de baixo", reivindicasse pela autonomia e direitos fundamentais, como o de acesso à propriedade da terra.

Nessas ocasiões os termos da ordem se mostravam incapazes de conter e processar as demandas existentes, não porque expressassem a legalidade e a concepção burguesa do mundo, mas precisamente por se identificarem com uma forma singular e recessiva de implantação capitalista — a autoritária, a prussiana. Intensificadas as aspirações por reformas, não encontrariam passagem no legislativo em função da sobre-representação dos Estados atrasados. Reivindicasse a classe operária aumentos salariais através de greve, essas se chocariam contra a legislação trabalhista, para não se falar nos camponeses, acusados de atentar contra o direito da propriedade. O novo se mantinha preso ao passado. Nosso capitalismo continuava com um pé na Lapa, em escusos galpões de fundo de praia, enlevado pelas mamatas, e nostálgico da capatazia de fazenda.

Dessa verdadeira perversão do quadro institucional-legal, decorria que as demandas desatendidas, impossibilitadas de correr no interior de canais legítimos, saturavam o sistema político, e acabavam por contorná-lo exigindo serem satisfeitas a qualquer preço. Sob forma bruta, por fora da percepção do espaço político produzida pelos partidos políticos, patenteavam a instabilidade do sistema da ordem ao mesmo tempo em que a agravavam. Por certo que não se desejava infiltrar aqui a justificação das várias concepções golpistas e aventureiras que se fizeram presentes no pré-64. Muito ao contrário, entende-se que, apesar de tudo, o jogo político liberal de 1946 era algo a ser conservado com todos os custos, mas essa é uma outra história, com personagens de carne e osso, que só irão aparecer poucas páginas adiante, no fim dessa apresentação.

Hoje, nessa hora parda de transição para a democracia, defrontamo-nos com problemas semelhantes aos de 45. Ao longo dessas últimas décadas, o americanismo vingou. Sub-sistema setores burgueses tradicionais e pré-capitalistas, de reduzida significação econômica mas com expressivo peso político. Vide a intrigante participação do Piauí. Ajustadas as contas com o regime autoritário, que liberalismo sobreviverá?

A resolução do enigma aguarda a forma com que o grande capital — caso siga dirigindo, como está, as condições do trânsito para o liberalismo político — se situará diante das frações burguesas recessivas e caudatárias. E também de como se posicionará face à questão social — o urbano, a saúde, a educação, e sobretudo o tema crítico da liberdade de movimentos da classe operária, dos assalariados urbanos e rurais, e do campesinato.

Rebaixando-se persistentemente o grau de coerção, tendência hoje estabelecida, não haverá ordem duradoura e estável que possa conviver com as desigualdades sociais existentes e com as formas perversas e autoritárias de controle das classes subalternas. O documento dos "oito empresários" reconhece a necessidade de um aggiornamento do capitalismo brasileiro ao tema social e à questão democrática. É alguma coisa, mas não é tudo.

Vários indicadores atestam que o projeto de liberalização do grande capital pretende palmilhar o surrado caminho da excludência política das classes subalternas. O tratamento inédito, ora em curso, parece se aplicar numa intempestiva conversão do sindicalismo ao sistema de valores liberais de pauta economicista. Tem-se como objetivo a diáspora operária, a perda da sua unidade e a criação de sindicatos incapazes de reparar em algo que não seus próprios umbigos. O passo final para a abertura estaria a depender do êxito desse sediço apostolado liberal, privando-se a classe operária da sua cidadania.

Em que pese a possibilidade de tal ou qual fração do movimento sindical se deixar levar por esse canto de sereia, consiste em mero exercício da razão utópica burguesa pensar em realizar, no Brasil contemporâneo, a fórmula americana de hegemonia. É bom lembrar que o voluntarísmo em política não se constitui em deformação monopolizada pela esquerda. Convivemos, com uma intensidade que os italianos, os franceses, os portugueses e os espanhóis jamais conheceram, com uma problemática "nacional" cuja materialidade, em longa tradição, se faz garantir pelo fato de ser sustentada por segmentos da corporação militar. Há o problema da terra, e esse caldo de cultura já de si explosivo se precipita numa sociedade onde se manifestam as complexas contradições próprias ao capitalismo moderno.

Administrar os conflitos daí resultantes, nem sempre unidirecionados, frequentemente cruzados, por meio de instituições carentes de plasticidade, supõe que se deseja sentar sobre um vulcão. A estabilidade da democracia se associa à sua capacidade não só de formular o consenso, como de formar canais legítimos para o dissenso social. A noção de instituições democráticas estáveis não traz consigo a eliminação do seu reverso — a instabilidade. Ao contrário, viabiliza a expressão do que é diverso, discordante. Quanto mais flexível na negociação das divergências, mais consciente delas, mais apta a regular e presidir a concorrência entre projetos alternativos de sociedade, maior sua solidez.

A Teresinha da ópera do Chico aparenta maturidade e domínio de si para enfrentar riscos e situações ainda não vividos, impondo ao seu pai e ao marido novos padrões de conduta. Nos idos de 40, não se podia dizer o mesmo das moças que trabalhavam com o sr. Duran — mas serão as mesmas hoje? Quanto ao malandro da canção final — e pur si muove —, por formação e tradição aprendeu que conversa é trabalho, não é coisa de se jogar fora. Está aí, somos modernos, e agora?

Luiz Werneck Vianna



A "Ópera do Malandro" estreou no Teatro Ginástico, Rio de Janeiro, em julho de 1978, com o seguinte elenco:


O produtor ...... Ary Fontoura
A Patronesse..... Maria Alice
Vergueiro João Alegre ...... Nadinho da Ilha
Duran .......... Ary Fontoura
Vitória .......... Maria Alice Vergueiro
Teresinha ........ Marieta Severo
Max ............ Otávio Augusto
Chaves .......... Tony Ferreira
Lúcia ........... Elba Ramalho
Geni ........... Emiliano Queirós
Dóris Pelanca.......... Uva Nino
Barrabás :......... Ivens Godinho
Fichinha........... Cidinha Milan
Johnny Walker . . Vander de Castro
Dorinha Tubão . . . Elza de Andrade
Phillip Morris ... Paschoal Villamboim S
hirley Paquete ..... Neuza Borges
Big Ben......... Ivan de Almeida Jussara
Pé de Anjo . .. Maria Alves
General Electric . . Vicente Barcelos
Mimi Bibelô...... Cláudia Jiménez
O Juiz .......... Cléber Thomaz
Jarbas ........... Genival Calixto
Bonifácio ........ Vera Cruz


Direção: Luís Antônio Martinez Corrêa
Assistência de Direção: João Carlos Motta
Cenografia & Figurinos: Maurício Sette
Assistência Figurinos: Rita Murtinho
Direção Musical: John Neschling
Assistência de Direção musical: Paulo Sauer
Arranjos: John Neschling & Paulo Sauer
Direção Vocal Interpretativa: Glorinha Beutenmüller
Direção Corporal: Fernando Pinto
Iluminação: Jorge Carvalho
Programa: Maurício Arraes


NOTA 

O texto da "Ópera do Malandro" ê baseado na "Ópera dos Mendigos" (1728), de John Gay, e na "Ópera dos Três Vinténs" (1928), de Bertolt Brecht e Kurt Weill. O trabalho partiu de uma análise dessas duas peças conduzida por Luís Antônio Martinez Corrêa e que contou com a colaboração de Maurício Sette, Marieta Severo, Rita Murtinho, Carlos Gregório e, posteriormente, Maurício Arraes. A  equipe também cooperou na realização do texto final através de leituras, críticas e sugestões. Nessa etapa do trabalho, muito nos valeram os filmes "Ópera dos Três Vinténs", de Pabst, e "Getúlio Vargas", de Ana Carolina, os estudos de Bernard Dort ("O Teatro e Sua Realidade"), as memórias de Madame Satã, bem como a amizade e o testemunho de Grande Otelo. Contamos ainda com a orientação do prof. Manoel Maurício de Albuquerque para uma melhor percepção dos diferentes momentos históricos em que se passam as três "óperas". E o prof. Luiz Werneck Vianna contribuiu com observações muito esclarecedoras. Esta peça é dedicada à lembrança de Paulo Pontes. 

Chico Buarque Rio, junho de 1978




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Leia também:

Chico Buarque - Ópera do Malandro (prefácio e nota)
Chico Buarque - Ópera do Malandro (introdução)

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Chico Buarque - foi musicando o poema "Morte e Vida Severina", de João Cabral de Mello Neto, encenado pelo grupo universitário TUCA, que Chico Buarque se revelou como compositor, dois anos antes do sucesso de "A Banda", "Roda Viva", sua primeira peça, teve uma carreira tumultuada: estreou no Rio, em 1967, com um sucesso que desgostou a muita gente; em São Paulo, os atores foram espancados durante o espetáculo e, em Porto Alegre, sequestraram a atriz Elizabeth Gasper. A peça acabou proibida pela censura.
Chico só voltou ao teatro em 1972. OU melhor: tentou voltar.. Depois de muito tempo e dinheiro gastos com ensaios e produção, "Calabar - O Elogio da Traição", teve sua encenação vetada. E a censura foi além: proibiu a imprensa de fazer qualquer referência à obra, aos autores e até ao próprio Calabar. Mas, transcrita em livro, a peça esgotou-se rapidamente.
No ano seguinte, outro sucesso de venda: "Fazendo Modelo - Uma Novela Pecuária". E, em 1975, apesar de inúmeros cortes, "Gota d'Água" chegou aos palcos de Rio e São Paulo, onde ficou por dois anos. Agora, aí está a "Ópera do Malandro", que estreou no Rio  a 26 de julho de 1978, e que é mais uma prova do gênio de Chico Buarque de Hollanda.


segunda-feira, 30 de agosto de 2021

O Brasil Nação - V2: § 86 – ... até no materialismo - Manoel Bomfim

Manoel Bomfim



O Brasil Nação volume 2



SEGUNDA PARTE 
TRADIÇÕES



À glória de
CASTRO ALVES
Potente e comovida voz de revolução


capítulo 8


A Revolução Republicana



§ 86 – ... até no materialismo


As finanças desacreditaram-se, numa lastimável prova de incapacidade para a própria inferioridade de tesouraria e rendas. Contudo, é aí, no materialismo de receita e riqueza, que os patuscos estadistas da República ostentam o gênio de que se sentem possuídos, para o fluxo da grandeza que sonham, para si e para a pátria de que se fizeram senhores. E tanto forçaram na materialidade que, nela incorporados, tornaram a respectiva República incompatível com a superioridade da vida e o trato das coisas do espírito. No ideal, com cuja realização sonham, os anais da nação brasileira se fariam num livro-caixa. Anunciam-nos, agora mesmo, a renascença republicana, mas os seus pró-homens só se exaltam, em toda a dignidade da função política, quando se dilatam nas materialidades... E vemos o canastrão bem nutrido, a alargar-se no leito de lodaçal. Não pareça exagero, ou grosseira a imagem. A natureza animal tem o seu tipo de opulência material, forma viva reservada ao acúmulo de riqueza orgânica, o potentado da gordura, que é a própria riqueza armazenada no organismo – o porco. Assim fadado, prendeu-o a evolução à rasteirice do chão, à terra podre, onde o seu focinho, o mais potente da animalidade, revolverá, inclemente como o próprio destino, que, na rija cerviz inclinada, o condenou a nunca levantar o olhar. É o símbolo da objetividade da vida, encerrado no materialismo. Aí se acha, para eles, a política construtora e objetiva, superior a sentimentalismos e fórmulas de coração. Sim: ao sentir que lhe falam de generosos ideais, a política dominante deixa subir aos lábios toda a essencial degradação e se dá ao sorriso de imbecil desdém com que repele tudo que não sirva para riqueza tangível, verificavam em $$. Destarte, secos, antipáticos à verdadeira beleza da vida moral, rasteiros, na medida em que se supõem práticos, os evoluídos republicanos, ao fecharem na prosperidade material as suas aspirações, deram a si mesmos um preço de riqueza material. E foi possível, então, ao cabo dessa triste evolução, que um dos predestinados senhores se anuncie à criadagem sem-vergonha e sem dedicação, na ostensiva materialidade dos propósitos políticos: “O sentimentalismo é para as nacionalidades o mesmo que as substâncias entorpecentes para os viciados.” Sim: não há feitor que, irritado e ufano na sua condição, não despreze o sentimentalismo. Pois não é o sentimentalismo isto mesmo que, nos corações humanos, se exalta para o bem, e sofre da injustiça e condena o privilégio espoliador, e se retraí à vista de braços alçados em azorrague?... Como acabrunha e oprime o respirar o ambiente onde vive uma tal bestialidade de inspiração!...

Vida que ainda não saiu da paisagem de senzalas, a nossa política governamental timbra em manter-se na dureza vil de sempre. Qualquer que seja a fórmula de civilização, o homem humaniza-se na medida em que idealiza os interesses materiais, e sentimentaliza os próprios instintos. A necessidade da procriação é a mesma, mas para o humano, o sexo revela-se em amor, e ama em idílio. Eis o sentimentalismo – tóxico somente para as sensibilidades bestiais. Numa nacionalidade que se eleva para a verdadeira solidariedade humana, o sentimentalismo é a fórmula necessária dessa elevação, e vale como índice definido. E tanto, que, uma legítima política tem de aceitar como programa e organizar, em lucidez de ação, as energias sentimentais da nação. No nosso caso, é energia essencial essa bondade em que se caracteriza a alma brasileira, e que brotou da cordial compaixão pelas raças infelizes, secular reação afetiva contra os braços feitores e o governo de mandões. Então, quando hoje, a índole de governança espezinha o sentimentalismo, vemos, no gesto, o tracejar do relho, ao longo do eito que inspirava a política herdada e viva, ainda, para irritar- -se de ideais efetivos. Esta vida, e a materialidade dos seus propósitos, eles a justificam apontando a verdade das contingências positivas numa sociedade atual. Não negamos, tais verdades; mas, se o importante no viver social e no desenvolvimento político é a organização do futuro, para isto, como definição de esperanças, as verdades consagradas pouco valem. Podem, mesmo, matar o ideal vivificante, fonte primeira dessas energias em que se dispõe o futuro melhor. Foi na reação contra essas verdades assassinas, que Ibsen criou as suas mentiras vitais, fórmula das fecundas ficções em que se define o progresso, consagração de ideais, encantadoras irrealidades, antecipada consolação de toda pena na conquista da justiça, símbolo em que se erigem as verdadeiras construções sociais. Ficções, mentiras, irrealidades... miraculosos e irresistíveis impulsos para a necessária eliminação de tudo que, do passado, já é peso morto, e só se impõe como privilégio. Para tudo isto, definição de esperanças, notação de progresso humano, nada valem as materialidades, contingências que peiam e abatem. Ward, um puro anglo-saxônico em renovação americana, afasta inteiramente a materialidade do seu conceito de progresso, a que chama de acabamentos (finishings): “O acabamento não consiste em riqueza; a riqueza é efêmera, o acabamento, persistente, é eterno. E, note-se o paradoxo: a riqueza, passageira, é material, o acabamento, durável, é imaterial... Tudo que vem crescer o patrimônio da humanidade como ganho permanente... é principalmente psíquico, mental”. De fato, deste modo se retempera e apura a vida humana. Nem de outra forma se compreende que o homem, com a sua tendência de socialização, possuísse, em exclusividade, a capacidade de espiritualizar-se e sentimentalizar os seus instintos, se tal não lhe fosse útil. 

Antes de qualquer outro, já o notara Aristóteles: A natureza nada criou de inútil. Destacando o homem em sublimação de vida física, ela o fadou para o progresso social. Muitos são os animais sociais, só o homem com poder de idealização e de sentimentalização, só o homem é capaz de progresso... Como corolário: todo progresso humano resulta dessa proteção dos ânimos para um ideal, que é a própria focalização dos esforços para melhorar e subir. 

A realização da República se faz por fora de toda superioridade de intuitos, no ostensivo desdém de ideais, contrariando-os formalmente, em troca de prosperidade material e riqueza, que, mesmo conquistadas, não deixariam de ser inferioridades, e que, representadas apenas em fracasso, são testemunhos de inépcia. Como desvairada, no anseio aviltante de riqueza, e no gozo exclusivo do poder, a política republicana desprezou o pensamento, renegou a verdade e a justiça, anulou a liberdade, afastou toda possibilidade de apuro político e de efetiva solidariedade... e nunca o Brasil foi mais realmente pobre, não só de beleza moral, mas da própria fortuna capitalizada. Relativamente aos seus recursos, com os meios que a unidade nacional oferece, é, esta nação, a menos próspera na América. Inflam a voz, os rasteiros dirigentes republicanos, em apontar qual o aumento de produção correspondente ao novo regime, o desenvolvimento do comércio, o incremento de algumas cidades, o volume de fortunas. particulares... Já foi acentuado que o verdadeiro motivo sobre a produção foi a extinção do trabalho escravo. A federação, facilitando as fórmulas administrativas, abreviando-as, talvez concorreu um pouco para o surto da produção, após 15 de novembro; mas nunca seria para longos e extensos efeitos, comparáveis ao da radical transformação do regime de trabalho. Com tudo isso, se considerarmos no aumento da população, e, sobretudo, nos resultados das últimas aplicações industriais da ciência, não se acusa no Brasil efetiva prosperidade material. O aumento real, o indisfarçável incremento, foi nas cifras do orçamento, que é hoje, o décuplo, quase, do que era há 35 anos, ao passo que nesse período, a produção apenas duplicou. Reflita-se, no entanto, que, dados os recursos que a ciência e a técnica trouxeram à produção, se os dirigentes tivessem capacidade para efetivos gestores da economia nacional, a súmula do trabalho devia ter dar ao Brasil o quádruplo, ou o quíntuplo do que realmente dá. 

Em vez disto, que utilização inteligente, sistemática, realmente econômica, já fez a política brasileira de qualquer desses recursos?... Automóvel para garboso passeio dos potentados e dos seus, rádio oficial, para que se passem as noitadas, filmes e projeções em que eles se pavoneiem na importância e dignidade das suas funções... E todo o resto do mundo brasileiro, e o resto da atividade social?... Onde não seja podridão comunicada, é desalento, incerteza, ignorância, descrença, asco, irritação... apenas semeados de vagas esperanças, e um fundo de vida moral apagada, diluído atavismo de conduta, moralidade sem símbolos, indiferente à perfeição, sem propriedade de afirmações, pois que todas se desmentiram no exemplo da política. Possibilidades de remissão?... A energia que nos remisse de tanta ignomínia estaria em consciências livres, iluminadas por ideais de solidariedade humana, impermeáveis aos interesses dominantes nos políticos tradicionais. São consciências que vão serenamente aos fins de humanidade, porque têm, nelas mesmas, o mundo superior da justiça. Irradiando dessas mentes se faria a propaganda de probidade e do bem público, propaganda que mostrasse a esta pátria aviltada pela materialidade inepta e desonesta dos dirigentes, que há uma riqueza de pensamento, bem mais eficaz, a única realmente eficaz, para a inteira grandeza social; e que, por sobre o pensamento, a exaltá-lo e bem conduzi-lo, há o coração, aberto à bondade, solícito pela justiça, bondade e justiça, luz da terra, halo em que se envolverá a humanidade no termo dos seus destinos. 

Potentados e privilegiados sobre a miséria da nação, esses dirigentes não suportariam vozes que pudessem levá-la à redenção... E o remédio são, natural, ainda é impossível; há que esconder no imo coração todos esses ideais... Mas a luz não se anula porque a fechem: a menor fresta a revela, e o homem irá, finalmente, para ela, ainda que tenha de abrir a talhos o caminho até lá. Erguendo a força do coração sobre o ideal de bondade, clamou Santo Agostinho: “Ama! e faz em seguida o que quiseres...” Amemos os nossos ideais, e eles nos levarão, mesmo a preço de vidas, à remissão desta pátria, hoje possuída pela podridão. Seremos, nós outros, brasileiros, tão desprovidos, assim, de desinteressado amor a esta nacionalidade, que não consigamos, finalmente, elevar a vida deste povo a um nível realmente humano?... Lembremo-nos de que, quando houve um ideal a conduzi-los, os brasileiros fizeram a Insurreição Pernambucana, a Revolução de Dezessete, a de 1824, a de 1831, a de 1837, a de 1848, a Abolição, e teriam dado realidade à República, se tivessem levado o povo à plena consciência desse ideal, se o lodo da secular tradição política dirigente não houvesse soterrado a incerta luz de 15 de novembro...


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"Manoel Bomfim morreu no Rio aos 64 anos, em 1932, deixando-nos como legado frases, que infelizmente, ainda ecoam como válidas: 'Somos uma nação ineducada, conduzida por um Estado pervertido. Ineducada, a nação se anula; representada por um Estado pervertido, a nação se degrada'. As lições que nos são ministradas em O Brasil nação ainda se fazem eternas. Torcemos para que um dia caduquem. E que o novo Brasil sonhado por Bomfim se torne realidade."

Cecília Costa Junqueira

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Bomfim, Manoel, 1868-1932  
                O Brasil nação: vol. II / Manoel Bomfim. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Fundação Darcy Ribeiro, 2013. 392 p.; 21 cm. – (Coleção biblioteca básica brasileira; 31).


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Download Acesse:

http://www.fundar.org.br/bbb/index.php/project/o-brasil-nacao-vol-ii-manoel-bonfim/


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Leia também:

O Brasil nação - v1: Prefácio - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: Prefácio - Manoel Bomfim, o educador revolucionário
O Brasil Nação - v2: Prefácio - Manoel Bomfim, o educador revolucionário (fim)
O Brasil Nação - v2: § 50 – O poeta - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: § 51 – O influxo da poesia nacional - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: § 52 – De Gonçalves Dias a Casimiro de Abreu... - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: § 53 – Álvares de Azevedo - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: § 54 – O lirismo brasileiro - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: § 55 – De Casimiro de Abreu a Varela - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: § 56 – O último romântico - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: § 57 – Romanticamente patriotas - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: § 58 – O indianismo - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: § 59 – O novo ânimo revolucionário - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: § 60 – Incruentas e falhas... - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: § 61 – A Abolição: a tradição brasileira para com os escravos - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: § 62 – Infla o Império sobre a escravidão - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: § 63 – O movimento nacional em favor dos escravizados - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: § 64 – O passe de 1871 e o abolicionismo imperial - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: § 65 – Os escravocratas submergidos - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: § 66 – Abolição e República - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: § 67 – A propaganda republicana - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: § 67 – A propaganda republicana (2) - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: § 68 – A revolução para a República - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: § 69 – Mais Dejanira... e nova túnica - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: § 70 – A farda na República - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - V2: § 71 – O positivismo na República - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - V2: § 72 – A reação contra a República - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - V2: § 73 – A Federação brasileira - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - V2: § 73-a – Significação da tradição de classe  - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - V2: § 74 – A descendência de Coimbra - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - V2: § 75 – Ordem... - Manoel Bomfim

OS SERTÕES, Euclides da Cunha - O Homem: III ... Servidão inconsciente

OS SERTÕES 


Euclides da Cunha

Volume 1



O HOMEM




Servidão inconsciente

O mesmo não acontece ao Norte. Ao contrário do estancieiro, o fazendeiro dos sertões vive no litoral, longe dos dilatados domínios que nunca viu, às vezes. Herdaram velho vício histórico. Como os opulentos sesmeiros da colônia, usufruem, parasitariamente, as rendas das suas terras, sem divisas fixas. Os vaqueiros são-lhes servos submissos.

Graças a um contrato pelo qual percebem certa percentagem dos produtos, ali ficam, anônimos — nascendo, vivendo e morrendo na mesma quadra de terra — perdidos nos arrastadores e mocambos; e cuidando, a vida inteira, fielmente, dos rebanhos que lhes não pertencem.

O verdadeiro dono, ausente, conhece-lhes a fidelidade sem par. Não os fiscaliza. Sabe-lhes, quando muito, os nomes.

Envoltos, então, no traje característico, os sertanejos encourados erguem a choupana de pau-a-pique à borda das cacimbas, rapidamente, como se armassem tendas; e entregam-se, abnegados, à servidão que não avaliam.

A primeira cousa que fazem, é aprender o a b c e, afinal, toda a exigência da arte em que são eméritos: conhecer os ferros das suas fazendas e os das circunvizinhas. Chamam-se assim os sinais de todos os feitios, ou letras, ou desenhos caprichosos como siglas, impressas, por tatuagem a fogo nas ancas do animal, completados pelos cortes, em pequenos ângulos, nas orelhas. Ferrado o boi, está garantido. Pode romper tranqueiras e tresmalhar-se. Leva, indelével, a indicação que o reporá na solta primitiva. Porque o vaqueiro, não se contentando com ter de cor os ferros de sua fazenda, aprende os das demais. Chega, às vezes, por extraordinário esforço de memória a conhecer, uma por uma, não só as reses de que cuida, como as dos vizinhos, incluindo-lhes a genealogia e hábitos característicos, e os nomes, e as idades, etc. Deste modo, quando surge no seu logrador um animal alheio, cuja marca conhece, o restitui de pronto. No caso contrário, conserva o intruso, tratando-o como aos demais. Mas não o leva à feira anual, nem o aplica em trabalho algum; deixa-o morrer de velho. Não lhe pertence.

Se é uma vaca e dá cria, ferra a esta com o mesmo sinal desconhecido, que reproduz com perfeição admirável; e assim pratica com toda a descendência daquela. De quatro em quatro bezerros, porém, separa um para si. É a sua paga. Estabelece com o patrão desconhecido o mesmo convênio que tem com o outro. E cumpre estritamente, sem juízes e sem testemunhas, o estranho contrato, que ninguém escreveu ou sugeriu.

Sucede muitas vezes ser decifrada, afinal, uma marca somente depois de muitos anos e o criador feliz receber, ao invés de peça única que lhe fugira e da qual se deslembrara, numa ponta de gado, todos os produtos dela.

Parece fantasia este fato, vulgar, entretanto, nos sertões.

Indicamo-lo como traço encantador da probidade dos matutos. Os grandes proprietários da terra e dos rebanhos a conhecem. Têm, todos, com o vaqueiro o mesmo trato de parceria resumido na cláusula única de lhe darem em troca dos cuidados que ele despende, um quarto dos produtos da fazenda. E sabem que nunca se violará a percentagem.

O ajuste de contas faz-se no fim do inverno e realiza-se, ordinariamente, sem que esteja presente a parte mais interessada. É formalidade dispensável. O vaqueiro separa escrupulosamente a grande maioria de novas cabeças pertencentes ao patrão (nas quais imprime o sinal da fazenda) das poucas, um quarto, que lhe couberam por sorte. Grava nestas o seu sinal particular; e conserva-as ou vende-as. Escreve ao patrão, dando-lhe conta minuciosa de todo o movimento do sítio, alongando-se aos mínimos pormenores; e continua na faina ininterrupta.


A vaquejada

Esta, ainda que, em dadas ocasiões, fatigante, é a mais rudimentar possível. Não existe no Norte uma indústria pastoril. O gado vive e multiplica-se à gandaia. Ferrados em junho, os garrotes novos perdem-se nas caatingas, com o resto das malhadas. Ali os rareiam epizootias intensas, em que se sobrelevam o rengue e o mal triste. Os vaqueiros mal procuram atenuá-las. Restringem a atividade às corridas desabaladas pelos arrastadores. Se a bicheira devasta a tropa, sabem de específico mais eficaz que o mercúrio: a reza. Não precisam de ver o animal doente. Voltam-se apenas na direção em que ele se acha e rezam, tracejando no chão inextricáveis linhas cabalísticas. Ou então, o que é ainda mais transcendente, curam-no pelo rastro.

E assim passam numa agitação estéril.

Raro, um incidente, uma variante alegre, quebra a sua vida monótona.

Solidários todos, auxiliam-se incondicionalmente em todas as conjunturas. Se foge a algum um boi levantadiço, toma da guiada, põe pernas ao campeão, e ei-lo escanchado no rastro, jogado pelas veredas tiradas a facão. Se não pode levar avante a empresa, pede campo, frase característica daquela cavalaria rústica, aos companheiros mais vizinhos, e lá seguem todos, aos dez, aos vinte, rápidos, ruidosos, amigos — campeando, voando pelos tombadores e esquadrinhando as caatingas até que o bruto, desautorizado, dê a venta no termo da corrida, ou tombe, de rijo, mancornado às mãos possantes que se lhe aferram aos chifres.

Esta solidariedade de esforços evidencia-se melhor na vaquejada, trabalho consistindo essencialmente no reunir, e discriminar depois, os gados de diferentes fazendas convizinhas, que por ali vivem em comum, de mistura em um compáscuo único e enorme, sem cercas e sem valos.

Realizam-na de junho a julho.

Escolhido um lugar mais ou menos central, as mais das vezes uma várzea complanada e limpa, o rodeador, congrega-se a vaqueirama das vizinhanças. Concertam nos dispositivos da empresa. Distribuem-se as funções que a cada um caberão na lide. E para logo, irradiantes pela superfície da arena, arremetem com as caatingas que a envolvem os encourados atléticos.

O quadro tem a movimentação selvagem e assombrosa de uma corrida de tártaros.

Desaparecem em minutos os sertanejos, perdendo-se no matagal circundante. O rodeio permanece por algum tempo deserto...

De repente estruge ao lado um estrídulo tropel de cascos sobre pedras, um estrépito de galhos estalando, um estalar de chifres embatendo; tufa nos ares, em novelos, uma nuvem de pó; rompe, a súbitas, na clareira, embolada, uma ponta de gado; e, logo após, sobre o cavalo que estava esbarrado, o vaqueiro, teso nos estribos...

Traz apenas exígua parte do rebanho. Entrega-a aos companheiros que ali ficam, de esteira; e volve em galope desabalado, renovando a pesquisa. Enquanto outros repontam, além, mais outros, sucessivamente, por toda a banda, por todo o âmbito do rodeio, que se anima, e tumultua em disparos: bois às marradas ou escarvando o chão, cavalos curveteando, confundidos e embaralhados sobre os plainos vibrantes num prolongado rumor de terremoto. Aos lados, na caatinga, os menos felizes se agitam às voltas com os marruás recalcitrantes. O touro largado ou o garrote vadio em geral refoge à revista. Afunda na caatinga. Segue-o vaqueiro. Cose-lhe no rastro. Vai com ele às últimas bibocas. Não o larga; até que surja o ensejo para um ato decisivo: alcançar repentinamente o fugitivo, de arranco; cair logo para o lado da sela, suspenso num estribo e uma das mãos presa às crinas do cavalo; agarrar com a outra a cauda do boi em disparada e com um repelão fortíssimo, de banda, derribá-lo pesadamente em terra. Põe-lhe depois a peia ou a máscara de couro, levando-o jugulado ou vendado para o rodeador.

Ali o recebem ruidosamente os companheiros. Conta-lhes a façanha. Contam-lhe outras idênticas; e trocam-se as impressões heroicas numa adjetivação ad hoc, que vai num crescendo do destalado ríspido ao temero pronunciado num trêmulo enrouquecido e longo.

Depois, ao findar do dia, a última tarefa: contam as cabeças reunidas. Apartam-nas. Separam-se, seguindo cada uma para sua fazenda tangendo por diante as reses respectivas. E pelos ermos ecoam melancolicamente as notas do aboiado...

Entretanto, mesmo ao cabo desta faina penosa, surgem outras maiores.


A arribada

Segue a boiada vagarosamente, à cadência daquele canto triste e preguiçoso. Escanchado, desgraciosamente, na sela, o vaqueiro, que a revê unida e acrescida de novas crias, rumina os lucros prováveis: o que toca ao patrão, e o que lhe toca a ele, pelo trato feito. Vai dali mesmo contando as peças destinadas à feira; considera, aqui, um velho boi que ele conhece há dez anos e nunca levou à feira, mercê de uma amizade antiga; além um mumbica claudicante, em cujo flanco se enterra estrepe agudo, que é preciso arrancar; mais longe, mascarado, cabeça alta e desafiadora, seguindo apenas guiado pela compressão dos outros, o garrote bravo, que subjugou, pegando-o, de saia, de derrubando-o, na caatinga; acolá, soberbo, caminhando folgado, porque os demais o respeitam, abrindo-lhe em roda um claro, largo pescoço, envergadura de búfalo, o touro vigoroso, inveja de toda a redondeza, cujas armas rígidas e curtas relembram, estaladas, rombas e cheias de terra, guampaços formidáveis, em luta com os rivais possantes, nos logradouros; além, para toda a banda, outras peças, conhecidas todas, revivendo-lhe todas, uma a uma, um incidente, um pormenor qualquer da sua existência primitiva e simples.

E prosseguem, em ordem, lentos, ao toar merencório da cantiga, que parece acalentá-los, embalando-os com o refrão monótono:

                      Ê cou mansão...
                      Ê cou... ê cão!

ecoando saudoso nos descampados mudos...


Estouro de boiada

De súbito, porém, ondula um frêmito sulcando, num estremeção repentino, aqueles centenares de dorsos luzidios. Há uma parada instantânea. Entrebatem-se, enredam-se, traçam-se e alteiam-se fisgando vivamente o espaço, e inclinam-se, e embaralham-se milhares de chifres. Vibra uma trepidação no solo; e a boiada estoura...

A boiada arranca.

Nada explica, às vezes, o acontecimento, aliás vulgar, que é o desespero dos campeiros.

Origina-o o incidente mais trivial — o súbito voo rasteiro de uma araquã ou a corrida de um mocó esquivo. Uma rês se espanta e o contágio, uma descarga nervosa subitânea, transfunde o espanto sobre o rebanho inteiro. É um solavanco único, assombroso, atirando, de pancada, por diante, revoltos, misturando-se embolados, em vertiginosos disparos, aqueles maciços corpos tão normalmente tardos e morosos.

E lá se vão: não há mais contê-los ou alcançá-los. Acamam-se as caatingas, árvores dobradas, partidas, estalando em lascas e gravetos; desbordam de repente as baixadas num marulho de chifres; estrepitam, britando e esfarelando as pedras, torrentes de cascos pelos tombadores; rola surdamente pelos tabuleiros ruído soturno e longo de trovão longínquo...

Destroem-se em minutos, feito montes de leivas, antigas roças penosamente cultivadas; extinguem-se, em lameiros revolvidos, as ipueiras rasas; abatem-se, apisoados, os pousos; ou esvaziam-se, deixando-os os habitantes espavoridos, fugindo para os lados, evitando o rumo retilíneo em que se despenha a “arribada”, — milhares de corpos que são um corpo único, monstruoso, informe, indescritível, de animal fantástico, precipitado na carreira douda. E sobre este tumulto, arrodeando-o, ou arremessando-se impetuoso na esteira de destroços, que deixa após si aquela avalanche viva, largado numa disparada estupenda sobre barrancas, e valos, e cerros, e galhadas — enristado o ferrão, rédeas soltas, soltos os estribos, estirado sobre o lombilho, preso às crinas do cavalo — o vaqueiro!

Já se lhe têm associado, em caminho, os companheiros, que escutaram, de longe, o estouro da boiada. Renova-se a lida: novos esforços, novos arremessos, novas façanhas, novos riscos e novos perigos, a despender, a atravessar e a vencer, até que o boiadão, não já pelo trabalho dos que o encalçam e rebatem pelos flancos senão pelo cansaço, a pouco e pouco afrouxe e estaque, inteiramente abombado.

Reaviam-no à vereda da fazenda; e ressoam, de novo, pelos ermos, entristecedoramente, as notas melancólicas do aboiado.


continua 054...


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OS SERTÕES, Euclides da Cunha - O Homem: III ... Tradições

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Os Sertões, de Euclides da Cunha

Fonte: CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Três, 1984 (Biblioteca do Estudante). 

Texto proveniente de: A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais.


Ópera do Malandro - Saudade é arrumar o quarto do filho que já morreu

Chico Buarque



malandro não para malandro... dá um tempo


Adaptação para o cinema- 1983




Nos anos 40, malandro elegante e popular figura do boêmio bairro carioca da Lapa, explora cantora de cabaré e vive de pequenos trambiques. Quando surge Ludmila, a filha do dono do cabaré, que pretende tirar proveito da guerra fazendo contrabando a história...





Resenha - A ópera do malandro







Ópera do Malandro - Musical (2003) 




muitas das músicas destes espetáculos musicais do Chico quando escutadas fora do contexto da peça teatral podem e nos embrulham o estômago, confesso que algumas não consigo escutar...

‘Roda Viva’ (1967), ‘Ópera do Malandro’ (1978), ‘Calabar’ (1973), ‘O Corsário do Rei’ (1985), ‘Gota d’Água’ (1975); o ballet ‘Grande Circo Místico’ (1982) e também filmes como ‘Quando o Carnaval Chegar’ (1972), ‘Para Viver um Grande Amor’ (1983) e ‘Dona Flor e Seus Dois Maridos (1976).



Músicas da Ópera do Malandro (1978):

01- O Malandro




O malandro/Na dureza
Senta à mesa/Do café
Bebe um gole/De cachaça
Acha graça/E dá no pé

O garçom/No prejuízo
Sem sorriso/Sem freguês
De passagem/Pela caixa
Dá uma baixa/No português

O galego/Acha estranho
Que o seu ganho/Tá um horror
Pega o lápis/Soma os canos
Passa os danos/Pro distribuidor

Mas o frete/Vê que ao todo
Há engodo/Nos papéis
E pra cima/Do alambique
Dá um trambique/De cem mil réis

O usineiro/Nessa luta
Grita(ponte que partiu)
Não é idiota/Trunca a nota
Lesa o Brasil/Do Brasil

Nosso banco/Tá cotado
No mercado/Exterior
Então taxa/A cachaça
A um preço/Assustador

Mas os ianques/Com seus tanques
Têm bem mais o/Que fazer
E proíbem/Os soldados
Aliados/De beber

A cachaça/Tá parada
Rejeitada/No barril
O alambique/Tem chilique
Contra o Brasil/Do Brasil

O usineiro/Faz barulho
Com orgulho/De produtor
Mas a sua/Raiva cega
Descarrega/No carregador

Este chega/Pro galego
Nega arreglo/Cobra mais
A cachaça/Tá de graça
Mas o frete/Como é que faz?

O galego/Tá apertado
Pro seu lado/Não tá bom
Então deixa/Congelada
A mesada/Do garçom

O garçom vê/Um malandro
Sai gritando/Pega ladrão
E o malandro/Autuado
É julgado e condenado culpado
Pela situação



02 - Hino de Duran



03 - Viver do Amor



04 - Uma Canção Desnaturada



05 - Tango Do Covil



06- Doze Anos



07 - O Casamento Dos Pequenos Burgueses



08 - Homenagem Ao Malandro




09 - Geni E O Zepelim



10 - Folhetim



11 - Ai, Se Eles Me Pegam Agora



12 - O Meu Amor



13 - Se Eu Fosse O Teu Patrão



14 - Teresinha



15 - Pedaço De Mim



Oh, pedaço de mim 
Oh, metade afastada de mim 
Leva o teu olhar 
Que a saudade é o pior tormento 
É pior do que o esquecimento 
É pior do que se entrevar 

Oh, pedaço de mim 
Oh, metade exilada de mim 
Leva os teus sinais 
Que a saudade dói como um barco 
Que aos poucos descreve um arco 
E evita atracar no cais 

Oh, pedaço de mim 
Oh, metade arrancada de mim 
Leva o vulto teu 
Que a saudade é o revés de um parto 
A saudade é arrumar o quarto 
Do filho que já morreu 

Oh, pedaço de mim 
Oh, metade amputada de mim 
Leva o que há de ti 
Que a saudade dói latejada 
É assim como uma fisgada 
No membro que já perdi 

Oh, pedaço de mim 
Oh, metade adorada de mim 
Lava os olhos meus 
Que a saudade é o pior castigo 
E eu não quero levar comigo 
A mortalha do amor Adeus



16 - Ópera



17 - O Malandro nº2