Ópera do malandro
Chico Buarque
Ópera do malandro
americanismo: da pirataria à modernização autoritária (e o que se pode seguir)
"A multidão vai estar é seduzida" — Teresinha Fernandes de Duran
Nós, os brasileiros, desde há algum tempo temos cultivado paixão pelo moderno e uma persistente adesão à ideologia do progresso. Talvez, por isso, ao menos os homens com mais de 30 anos deste país sejam capazes de reconhecer algo da sua experiência nos filmes em que Fellini recorda sua juventude sob o fascismo. Principalmente nos flashes intrigantes que sublinham o mágico interesse pelo cinema americano, pela tecnologia e pela máquina, ou naqueles momentos carregados de sentido em que vielas estreitas e seculares são cruzadas rapidamente por possantes carros de corrida numa competição automobilística. Os efeitos bizarros da justaposição do moderno ao tradicional, e sobretudo de uma forma singular de modernização que aparenta ser produzida em nome do passado e para sua perpetuação.
A velocidade, a simultaneidade, a valorização de um ritmo de vida intenso, os novos espaços urbanos — aqui, o americanismo tem sido também uma estética. Largas avenidas, edifícios, automóveis, a idéia de limpeza associada ao moderno. Velhas cidades coloniais de rara beleza demolidas sem remorso, como que para apagar a presença constrangedora da memória social. A pirataria do capital imobiliário que destruiu a arquitetura de nossas principais cidades contou com nosso compassivo silêncio, às vezes até entusiasmados por sua substituição pelas novas ascéticas fachadas, tão desejadas em segredo quanto a esperança fantasista do esbranquiçamento racial.
O getulismo, o PTB e o latifúndio, o chiclete, a Coca-Cola, o nylon e os cines Metro. Mas para além da dimensão cultural, do mimetismo da moda, que também indicavam a falta de raízes das elites, o americanismo consistiu numa adequada práxis que em meio século transformou o país. Afirmou o predomínio da indústria sobre a agricultura, remarcou a composição demográfica e trouxe o eixo de gravitação para os centros urbano-industriais. Nas condições brasileiras, porém, sua inserção se produziu num contexto certamente diferenciado da sua imposição original nos Estados Unidos.
No final dos anos 20, a indústria se encontrava em fase incipiente, avançando marginalmente no interior da ordem oligárquica agro-exportadora. Constitui-se a nova fração burguesa através de um processo substitutivo de importações de bens de consumo não-duráveis, cujo impulso tinha como matriz as vicissitudes do mercado internacional para nosso principal produto de exportação — o café —, e situações de emergência, como a Primeira Guerra Mundial. A defesa cambial do sistema agroexportador, como se sabe, reverteu em favor da industrialização encarecendo os bens importados, e a diminuição do fluxo de mercadorias nos anos 1914 - 1918 atuava no sentido de fortalecer essa tendência.
Embora o Estado e o sistema da ordem no pré-30 assumissem uma forma liberal, a versão restritiva e excludente do liberalismo praticada pela oligarquia agrário-exportadora somente em parte atendia às necessidades de classe dos industriais. Assim com a mercantilização da força de trabalho disponível por meio do assalariamento, com as instituições, códigos e leis que proclamavam o triunfo burguês e da sua concepção do mundo. Mas havia claras disfuncionalidades para sua expansão, quer na imensa faixa da mão-de-obra retida pelos latifúndios, aí submetida a relações pré-capitalistas, quer no alto preço dos bens agrícolas, ambas as circunstâncias onerando o custo da força de trabalho industrial. Mais que tudo, o fato do Estado se achar sob apropriação da oligarquia agrária. Dado que não gozava de poder de concorrência com a produção estrangeira, sua plena imposição dependia de uma política protecionista do poder estatal, que só ocasional e indiretamente os negócios da agroexportação podiam conceder.
Por outro lado, o caráter oligárquico do sistema político não dava passagem ao atendimento das reivindicações acumuladas dos setores emergentes, que incluíam as camadas médias e os militares — "os tenentes" —, a burguesia industrial e a classe operária. Sem deter o poder do Estado, sem submeter ao movimento do seu capital a parte majoritária do estoque de força de trabalho, ainda vinculada a uma ordem de tipo patrimonial, a ordem liberal dos agrários não se comportava como meio próprio para a ascensão da fração burguesa industrial.. Ademais, havia outra séria razão — de uma ou de outra forma, o liberalismo facultava a mobilização, a organização e a ação da classe operária, de que as greves gerais de 1917 e 1918 e a fundação do PCB em 1922 se fariam exemplo. O difícil processo da sua acumulação, portanto, também se via ameaçado "por baixo".
Duas eram as modalidades possíveis de trânsito para sua hegemonia. A primeira, a ser construída pela expansão crescente das fábricas e da generalização da concepção do mundo fabril, num processo transformista onde a força do especificamente econômico desfizesse as relações pré-capitalistas no campo — submetendo todas as outras formas de capital pré-existente, bem como a força de trabalho, ao capital industrial —, e lhe abrisse uma generosa participação no poder estatal. Praticamente se inviabilizava pela ativa resistência do setor agro-exportador em manter o monopólio do Estado e da sua política econômica — lembre-se que a indústria brasileira era acusada de atividade "artificial" — a que vinha se juntar o crescente aguerrimento do sindicalismo.
A segunda, de natureza revolucionária, apontava para um terreno incerto e perigoso. Débil como era, o enfrentamento com as frações oligárquicas agrárias em seu conjunto implicava numa aliança com o campesinato, com a média e pequena propriedades rurais, setores intermediários urbanos radicalizados, e inclusive com a classe operária. Não contava com maturidade política para dirigir um processo de tal envergadura, que aliás jamais concebeu, para não se mencionar o estágio igualmente atrasado, em termos de consciência social, das demais classes e estratos cogitáveis para uma coalizão desse tipo. Contra a utopia revolucionária, contava com a boa certeza de que no atacado a ordem oligárquica atendia à burguesia como um todo, garantindo ademais um eficaz sistema de dominação sobre as classes subalternas.
A natureza distintiva do movimento político-militar de 1930 se constitui exatamente pela solução peculiar que impôs ao dilema burguês. Sem incluir a participação da fração dos industriais e sem conduzi-la diretamente ao poder, veio dar expressão às suas necessidades elementares, fornecendo pela intermediação do Estado, da política, os meios e os modos para sua conversão em dominante. O papel da classe reinante cabia à oligarquia agrária dissidente, que se soltará da sua antiga solidariedade com o setor agro-exportador. O moderno vinha à luz pelo ventre do arcaico e do tradicional. As elites do latifúndio em dissidência» este "Brasil negro", é que portavam os papéis de condução política da imposição do moderno. O americanismo aqui surgirá como forma particular de salvação de todas as frações burguesas, inclusive da que perdeu em 30, e não como resultado do triunfo de uma concepção do mundo burguesa-progressista. O passado reverenciará o moderno, ínstalando-o, mas cobrando o pedágio da sua conservação. Entre nós também os vivos seriam governados pelos mortos — Teresinha Fernandes de Duran é filha do sr. Duran e se casa com Max Overseas.
A crise de 1929 do mercado internacional deixara transparecer que a agroexportação não mais reunia condições de solidarizar em torno de si sequer os restantes setores das classes dominantes, estimulando a aberta contestação da classe operária e principalmente da juventude militar. O caráter da profundidade da rebelião conheceu seu testemunho heroico no sacrifício dos "18 do Forte", confirmado em extensão e importância pelo levante de 1924, em São Paulo, pela saga da Coluna Prestes e pela forma claramente hesitante com que esta foi combatida pelas forças federais. Apenas a indústria e a modernização capitalista poderiam refazer a solda burguesa, tendo ainda capacidade integrativa para acolher numa nova ordem a grande maioria dos descontentes. Ao Estado cumpria estabelecer os suportes que facultassem a reorientação da economia a fim de fundar a primazia do modo de produção especificamente capitalista a partir da fábrica moderna.
Tratava-se de uma vasta tarefa, a requerer medidas preparatórias como a construção de ciclópicas usinas produtoras de energia, a criação da siderurgia, a exploração e o refino do petróleo, a elevação da capacidade de importar e, em conseqüência, a de exportar, e na regulação do mercado interno, em especial do mercado da força de trabalho. Declarava-se como objetivo essencial do Estado a invenção pelo uso de recursos políticos de uma burguesia industrial de novo tipo, quer pelo aperfeiçoamento e depuração da pré-existente, quer pela indução de outras através de regias benesses concedidas pelo Estado para a realização de projetos de interesse geral da modernização que dirigia.
A busca desses fins estava condicionada à eficácia dos mecanismos de coerção acionados pelo aparato do poder. Sobre a noção de federação, suporte do liberalismo oligárquico, se afirmam pela força das armas, como em 1932, os ideais unitários. Sobre o liberalismo econômico, ideologia da agro-exportação, o dirigismo estatal. Tarefa enorme essa, a de reconstituir a ordem burguesa, atualizá-la face à nova realidade do mercado externo e ao realinhamento, no plano interno, das classes e camadas sociais. A política antecederá a economia e, para melhor servi-la, não poderá dispensar a violência.
Ao contrário do padrão clássico de americanismo, a hegemonia burguesa não "nascerá das fábricas". Seu ponto de partida virá das chamadas regiões supra-estruturais, do Estado, da política, do Direito, que irão traçar "de fora" pelas mãos dos nossos "junkers" caboclos as linhas mestras do processo de modernização. E tempo há de rolar até que parte das novas frações burguesas se sinta em condições — suprema audácia — de reivindicar para si o controle do arsenal político do Estado.
A ordem corporativa consistiu no formato institucional encontrado para a imposição do americanismo, aí compreendidas as alterações psico-físicas por que passam as classes subalternas para seu ajustamento ao trabalho industrial. O Estado se postaria numa posição acima das classes sociais, encarnação da razão e único sujeito do devir histórico, interpretando por mandato tácito a substância da vontade nacional. Politizando com exasperação suas funções econômicas, o Estado fazia decretar a abolição da prática da política por parte da sociedade civil. O universo do liberalismo seria o da divisão da sociedade por interesses egoísticos e insanavelmente contraditórios, uma verdadeira ante-sala do socialismo — escreviam os corifeus da modernização autoritária.
O interesse, para se expressar com legitimidade, deveria se recobrir do ideal da "grandeza nacional", o indivíduo se subordinar às necessidades e imperativos do Estado-nação. A democracia substantiva sucederia os degenerados formalismos da democracia liberal. A diferenciação entre classes sociais, uma perversão do liberalismo, substituída por uma ordem harmoniosa e orgânica em que os diferentes agentes da produção — as personas do capital e do trabalho — se reuniriam em sindicatos corporativos comungando da mesma identificação quanto a fins edificantes e patrióticos.
Historicamente é constatável na implantação do industrialismo o recurso à coerção, como meio de ressocialização para o trabalho fabril das massas rurais que, após serem expropriadas da posse da terra, acorrem aos centros urbanos em busca de meios de subsistência. O que varia é seu grau, e o modo particular como se combina com elementos consensuais. Gramsci, que dominava com maestria esse assunto, observava que no socialismo o consenso deveria predominar sobrea coerção na fase de trânsito para a indústria — onde esse processo ainda não tivesse ocorrido. No fordismo, forma superior da sua imposição numa ordem burguesa, os elementos consensuais se expressam na política de altos salários e na disseminação da ética puritana.
Nos países de capitalismo tardio, o uso da coerção tem se verificado em grande escala, entre outras razões de natureza geral, pelo fato da indústria desde seu início se ver confrontada pelo sindicalismo organizado, e em razão da direta inclusão do trabalhador na fábrica moderna sem o estágio prévio da cooperação e da manufatura. A modernização sob instituições corporativas se constitui numa forma exaltada de constrangimento, que visa simular entre os explorados no processo de trabalho a inexistência da exploração, apagando sua identidade na ideologia de comunhão entre o capital e o trabalho.
O Estado Novo de 1937 suprime a liberdade e a autonomia dos sindicatos, transformando-os em aparatos de Estado. Extrai-se da sociedade civil tudo que diga respeito à vida operária. Onde antes havia o conflito e a possibilidade de desintegração social, a razão do autoritarismo iluminado intervém para fundar a paz e a cooperação. Mas algo da fórmula consensual será preservada através da regulamentação dos direitos elementares do trabalho — limitação da jornada de trabalho, férias, descanso semanal, etc. —, fazendo as vezes de contrapartida da liberdade perdida pelo movimento operário.
No papel, igualavam-se empregadores e empregados, patrões e operários, submissos todos à severidade das mesmas leis e à realização da grandeza nacional. Como não podia deixar de acontecer, os industriais distinguiram o real da fantasia — aí, foram eles o malandro — e mandaram às favas a panacéia corporativa para evitar a luta de classes e o sonho milenarista de uma ordem burguesa sem conflitos, explorando sem piedade uma força de trabalho inerme, num capitalismo pirata e selvagem como de poucos se têm notícia.
Ao se iniciar a redemocratização em 45, esse regime de tutela do movimento sindical e operário aparentemente se aproxima do seu fim. Contudo, quando terminam os trabalhos da Constituinte em 1946, mais uma vez o liberalismo se faz acompanhar de disposições restritivas. Negou-se voto aos analfabetos, aos praças de pré, a elegibilidade aos sargentos e se manteve intocada a propriedade da terra. As formas reticentes em que se cuidou da liberdade e da autonomia sindicais e do direito de greve, a que se aliou a conservação da Justiça do Trabalho com as mesmas funções designadas pelo Estado Novo, permitiram, com algumas modificações, a continuidade do corporativismo sindical.
O segredo de Polichinelo da nova ordem liberal fazia-se visível quando, ao tratar da representação no Parlamento, criava mecanismos de sobrerepresentação para os Estados menos urbanizados, em geral os menos desenvolvidos industrialmente. Plus ça change, plus ça reste comme ça. Como é óbvio, se viam assim diminuídas as possibilidades dos setores emergentes dos grandes centros urbano-industriais de ganharem lugares no poder legislativo. A continuidade da ordem burguesa se faria com a preservação do compromisso entre a fração industrial e agrária, esta já uma sócia menor, apesar de seguir desempenhando importantes papéis políticos no sistema de dominação.
Tornou-se trivial separar — a ordem estado-novista projetou sua sombra por sobre a liberal. Na forma, essa transfiguração política era indicada a princípio pela coalizão entre o PSD e o PTB — o primeiro, herdeiro do sistema de controle característico nos campos; o segundo, da estrutura corporativista sindical — e, no conteúdo, pela sobrevida concedida à modernização autoritária. No fundamental, a via prussiana encontrará confirmação no regime do liberalismo político.
É menos comum, todavia, notar do que dependiam as instituições de 46 para fundarem uma ordem estável. Não de pouco, certamente. Sob sua vigência, um presidente da república foi levado ao suicídio, um renunciou apenas sete meses depois de eleito e outro foi apeado do poder pela força. A contrario sensu, a estabilização conseguida por JK se faz reveladora. Em seu período, não só se integram consensualmente as diferentes frações burguesas num projeto de modernização, como se mantêm as classes subalternas dos campos e das cidades sob suas formas tradicionais de controle.
A precariedade das instituições vigentes vinha à tona quando, ao lado da dissidência nos grupos dominantes em relação à natureza do projeto de expansão burguesa, produzia-se um afrouxamento — por razões que variavam no tempo — no uso desses controles. Tornava-se mais patente ao coincidir com um movimento genuíno que, irrompendo "de baixo", reivindicasse pela autonomia e direitos fundamentais, como o de acesso à propriedade da terra.
Nessas ocasiões os termos da ordem se mostravam incapazes de conter e processar as demandas existentes, não porque expressassem a legalidade e a concepção burguesa do mundo, mas precisamente por se identificarem com uma forma singular e recessiva de implantação capitalista — a autoritária, a prussiana. Intensificadas as aspirações por reformas, não encontrariam passagem no legislativo em função da sobre-representação dos Estados atrasados. Reivindicasse a classe operária aumentos salariais através de greve, essas se chocariam contra a legislação trabalhista, para não se falar nos camponeses, acusados de atentar contra o direito da propriedade. O novo se mantinha preso ao passado. Nosso capitalismo continuava com um pé na Lapa, em escusos galpões de fundo de praia, enlevado pelas mamatas, e nostálgico da capatazia de fazenda.
Dessa verdadeira perversão do quadro institucional-legal, decorria que as demandas desatendidas, impossibilitadas de correr no interior de canais legítimos, saturavam o sistema político, e acabavam por contorná-lo exigindo serem satisfeitas a qualquer preço. Sob forma bruta, por fora da percepção do espaço político produzida pelos partidos políticos, patenteavam a instabilidade do sistema da ordem ao mesmo tempo em que a agravavam. Por certo que não se desejava infiltrar aqui a justificação das várias concepções golpistas e aventureiras que se fizeram presentes no pré-64. Muito ao contrário, entende-se que, apesar de tudo, o jogo político liberal de 1946 era algo a ser conservado com todos os custos, mas essa é uma outra história, com personagens de carne e osso, que só irão aparecer poucas páginas adiante, no fim dessa apresentação.
Hoje, nessa hora parda de transição para a democracia, defrontamo-nos com problemas semelhantes aos de 45. Ao longo dessas últimas décadas, o americanismo vingou. Sub-sistema setores burgueses tradicionais e pré-capitalistas, de reduzida significação econômica mas com expressivo peso político. Vide a intrigante participação do Piauí. Ajustadas as contas com o regime autoritário, que liberalismo sobreviverá?
A resolução do enigma aguarda a forma com que o grande capital — caso siga dirigindo, como está, as condições do trânsito para o liberalismo político — se situará diante das frações burguesas recessivas e caudatárias. E também de como se posicionará face à questão social — o urbano, a saúde, a educação, e sobretudo o tema crítico da liberdade de movimentos da classe operária, dos assalariados urbanos e rurais, e do campesinato.
Rebaixando-se persistentemente o grau de coerção, tendência hoje estabelecida, não haverá ordem duradoura e estável que possa conviver com as desigualdades sociais existentes e com as formas perversas e autoritárias de controle das classes subalternas. O documento dos "oito empresários" reconhece a necessidade de um aggiornamento do capitalismo brasileiro ao tema social e à questão democrática. É alguma coisa, mas não é tudo.
Vários indicadores atestam que o projeto de liberalização do grande capital pretende palmilhar o surrado caminho da excludência política das classes subalternas. O tratamento inédito, ora em curso, parece se aplicar numa intempestiva conversão do sindicalismo ao sistema de valores liberais de pauta economicista. Tem-se como objetivo a diáspora operária, a perda da sua unidade e a criação de sindicatos incapazes de reparar em algo que não seus próprios umbigos. O passo final para a abertura estaria a depender do êxito desse sediço apostolado liberal, privando-se a classe operária da sua cidadania.
Em que pese a possibilidade de tal ou qual fração do movimento sindical se deixar levar por esse canto de sereia, consiste em mero exercício da razão utópica burguesa pensar em realizar, no Brasil contemporâneo, a fórmula americana de hegemonia. É bom lembrar que o voluntarísmo em política não se constitui em deformação monopolizada pela esquerda. Convivemos, com uma intensidade que os italianos, os franceses, os portugueses e os espanhóis jamais conheceram, com uma problemática "nacional" cuja materialidade, em longa tradição, se faz garantir pelo fato de ser sustentada por segmentos da corporação militar. Há o problema da terra, e esse caldo de cultura já de si explosivo se precipita numa sociedade onde se manifestam as complexas contradições próprias ao capitalismo moderno.
Administrar os conflitos daí resultantes, nem sempre unidirecionados, frequentemente cruzados, por meio de instituições carentes de plasticidade, supõe que se deseja sentar sobre um vulcão. A estabilidade da democracia se associa à sua capacidade não só de formular o consenso, como de formar canais legítimos para o dissenso social. A noção de instituições democráticas estáveis não traz consigo a eliminação do seu reverso — a instabilidade. Ao contrário, viabiliza a expressão do que é diverso, discordante. Quanto mais flexível na negociação das divergências, mais consciente delas, mais apta a regular e presidir a concorrência entre projetos alternativos de sociedade, maior sua solidez.
A Teresinha da ópera do Chico aparenta maturidade e domínio de si para enfrentar riscos e situações ainda não vividos, impondo ao seu pai e ao marido novos padrões de conduta. Nos idos de 40, não se podia dizer o mesmo das moças que trabalhavam com o sr. Duran — mas serão as mesmas hoje? Quanto ao malandro da canção final — e pur si muove —, por formação e tradição aprendeu que conversa é trabalho, não é coisa de se jogar fora. Está aí, somos modernos, e agora?
Luiz Werneck Vianna
A "Ópera do Malandro" estreou no Teatro Ginástico, Rio de Janeiro, em julho de 1978, com o seguinte elenco:
O produtor ...... Ary Fontoura
A Patronesse..... Maria Alice
Vergueiro João Alegre ...... Nadinho da Ilha
Duran .......... Ary Fontoura
Vitória .......... Maria Alice Vergueiro
Teresinha ........ Marieta Severo
Max ............ Otávio Augusto
Chaves .......... Tony Ferreira
Lúcia ........... Elba Ramalho
Geni ........... Emiliano Queirós
Dóris Pelanca.......... Uva Nino
Barrabás :......... Ivens Godinho
Fichinha........... Cidinha Milan
Johnny Walker . . Vander de Castro
Dorinha Tubão . . . Elza de Andrade
Phillip Morris ... Paschoal Villamboim S
hirley Paquete ..... Neuza Borges
Big Ben......... Ivan de Almeida Jussara
Pé de Anjo . .. Maria Alves
General Electric . . Vicente Barcelos
Mimi Bibelô...... Cláudia Jiménez
O Juiz .......... Cléber Thomaz
Jarbas ........... Genival Calixto
Bonifácio ........ Vera Cruz
Direção: Luís Antônio Martinez Corrêa
Assistência de Direção: João Carlos Motta
Cenografia & Figurinos: Maurício Sette
Assistência Figurinos: Rita Murtinho
Direção Musical: John Neschling
Assistência de Direção musical: Paulo Sauer
Arranjos: John Neschling & Paulo Sauer
Direção Vocal Interpretativa: Glorinha Beutenmüller
Direção Corporal: Fernando Pinto
Iluminação: Jorge Carvalho
Programa: Maurício Arraes
NOTA
O texto da "Ópera do Malandro" ê baseado na "Ópera dos Mendigos" (1728), de John Gay, e na "Ópera dos Três Vinténs" (1928), de Bertolt Brecht e Kurt Weill. O trabalho partiu de uma análise dessas duas peças conduzida por Luís Antônio Martinez Corrêa e que contou com a colaboração de Maurício Sette, Marieta Severo, Rita Murtinho, Carlos Gregório e, posteriormente, Maurício Arraes. A equipe também cooperou na realização do texto final através de leituras, críticas e sugestões. Nessa etapa do trabalho, muito nos valeram os filmes "Ópera dos Três Vinténs", de Pabst, e "Getúlio Vargas", de Ana Carolina, os estudos de Bernard Dort ("O Teatro e Sua Realidade"), as memórias de Madame Satã, bem como a amizade e o testemunho de Grande Otelo. Contamos ainda com a orientação do prof. Manoel Maurício de Albuquerque para uma melhor percepção dos diferentes momentos históricos em que se passam as três "óperas". E o prof. Luiz Werneck Vianna contribuiu com observações muito esclarecedoras. Esta peça é dedicada à lembrança de Paulo Pontes.
Chico Buarque Rio, junho de 1978
__________________
Leia também:
Chico Buarque - Ópera do Malandro (prefácio e nota)
Chico Buarque - Ópera do Malandro (introdução)__________________
Chico Buarque - foi musicando o poema "
Morte e Vida Severina", de João Cabral de Mello Neto, encenado pelo grupo universitário TUCA, que Chico Buarque se revelou como compositor, dois anos antes do sucesso de "
A Banda", "
Roda Viva", sua primeira peça, teve uma carreira tumultuada: estreou no Rio, em 1967, com um sucesso que desgostou a muita gente; em São Paulo, os atores foram espancados durante o espetáculo e, em Porto Alegre, sequestraram a atriz Elizabeth Gasper. A peça acabou proibida pela censura.
Chico só voltou ao teatro em 1972. OU melhor: tentou voltar.. Depois de muito tempo e dinheiro gastos com ensaios e produção, "Calabar - O Elogio da Traição", teve sua encenação vetada. E a censura foi além: proibiu a imprensa de fazer qualquer referência à obra, aos autores e até ao próprio Calabar. Mas, transcrita em livro, a peça esgotou-se rapidamente.
No ano seguinte, outro sucesso de venda: "Fazendo Modelo - Uma Novela Pecuária". E, em 1975, apesar de inúmeros cortes, "Gota d'Água" chegou aos palcos de Rio e São Paulo, onde ficou por dois anos. Agora, aí está a "Ópera do Malandro", que estreou no Rio a 26 de julho de 1978, e que é mais uma prova do gênio de Chico Buarque de Hollanda.