domingo, 21 de março de 2021

O Brasil Nação - V2: § 84 – Incapacidade: política e mental - Manoel Bomfim

 Manoel Bomfim



O Brasil Nação volume 2



SEGUNDA PARTE 
TRADIÇÕES



À glória de
CASTRO ALVES
Potente e comovida voz de revolução


capítulo 8


A Revolução Republicana



§ 84 – Incapacidade: política e mental 

Revolucionariamente nula, a República assentou, como no que tem de ser – gestão desimpedida e exclusiva, segundo a política tradicional, da mesma classe dirigente, agora senhora absoluta, na sua absoluta incapacidade para a função, que apenas é meio de vida, satisfação brutal e acintosa de apetites. Intensidade de um mal de sempre, a incapacidade dirigente se deriva de duas fontes, com elas conflui para uma mesma inépcia, mais patente hoje do que nunca, a tenebrosa insuficiência da gerência bacharelesca a que está condenada a antiga colônia portuguesa. Parasitismo sobre parasitismo dos governantes bragantinos, mentalidade na tradição da jurídica coimbrense – fizeram a sequência da governança brasileira, universalmente incapaz, incapacidade que a República agravou com o descaso do oligarquismo vigente, e o desprezo por tudo que não seja arranjo de pessoas, ou ostentação de poderio. A esta inépcia da política oficial, patente em tudo que é preparo da nação para o verdadeiro progresso, é sensível, sobretudo, naquilo que, para eles, resume toda a grandeza humana, a riqueza, cujo valor é facilmente computável. País cujos governantes só à finança dão importância, o Brasil cada vez mais se enterra nos déficits, que crescem mesmo quando se suspendem pagamentos; e, assim, com dirigentes que só aspiram à grandeza material em riqueza, este Brasil nunca se viu em legítima prosperidade, e tem uma produção muito abaixo da produção normal a todas as nações congêneres. Com isto, a mesma produção é antiquada, em tipos inferiores, mal-equilibrada e mal-apresentada. Tudo, porque a mentalidade dirigente não compreende em que sentido as boas finanças dependem da qualidade da política, nem sabe achar, e, menos ainda, dispor, os meios efetivos de ter garantida prosperidade material: o apuro das inteligências.

Será preciso, ainda, fazer demonstração da incapacidade política dos dirigentes republicanos? Todas estas longas páginas, são longas, sobretudo, pela repetição dos erros, crimes e contrassensos que fazem dessa política um absoluto de péssimo: caput mortuum pútrido, universal tremedal de imoralidades, sufocado pela estupidez, e, sobre o qual o tempo só decorre para mais imoralidade, em mais espessura de estupidez. Dirigentes em nome da República, sobre um país que fez a mudança essencial no regime político sem luta nenhuma, sem protesto, sequer, e que tem feito os trinta e seis anos de vida constitucional por fora da constituição, em estados de sítios policiais; assim passou a segunda geração dos dirigentes na República, sem deixar um nome, e assim passarão todas as outras, enquanto prosseguir a vigente tradição. O instinto lhes diz o quanto são efêmeros em ação, e precários em prestígio: então, a política mais se infama no empenho de aproveitar o prestígio pelo acúmulo de proventos; de transformar a ação em fogaréu de publicidade e consagração de encomenda. Temem a luta legítima em política, como evitam a crítica. Privilegiaram-se na exploração do poder, impondo-se como governantes, e são criaturas sem a dose de caráter para governarem-se como disciplinados autônomos, como sem a força de inteligência para fazer uma vida de destaque noutro qualquer mister. E tanto, nessa incapacidade, que para chegar um brasileiro ao extremo da indignação e asco da política, basta-lhe evocar a figura e os feitos de um qualquer dos poderosos e qualificados em grande governança do país. Nessa prática, que tem sido a educação política oferecida aos impulsos nacionais, eles produziram, como exclusivo de original, os já citados partidos únicos, dos grandes Estados, fórmula do oligarquismo a possuir os mesmos Estados, que monopolizam a nação brasileira. É a mesma originalidade da política sem ideias, governo sem programas, partidos sem lealdade, nem coerência, nem sinceridade.

Se a ignomínia dos processos políticos dá a medida da degradação moral, a generalizada falência da governação faz o correspondente efeito da sinistra insuficiência mental de todos eles. Parece que a matéria cerebral lhes é inteiramente incapaz de assimilar a experiência útil, como de compor um regime de vida qualquer coisa digno. Pulhice triunfante nas vitórias, escória na treva, como trivial, os mais alteados em pensamento fazem valor de futriquices, saber de minúcias, ou ufania de falsa ciência, e sempre curtos de horizontes. O valor de inteligência, eles o dão no que pretendem seja eloquência, e derramam-se, então, retóricos fofos, sem chama de ideia, nem originalidade de conceitos. Sim, que neles não há necessidades mentais em veemência de expressão. Valem como palradores, sem penetração das realidades. Pensam os refeitos pensamentos de toda gente, e, se possuem o dom inferior da verbalização fácil, desandam na parolagem vazia, altíssona verbiagem, com o mérito exclusivo de fazer sumir-se a banalidade do pensamento no derrame espesso e baforento dos lugares-comuns. Estilo de feira, fraude de eloquência, eles engrossam nas trivialidades rebuscadas, ruminação de uma retórica poluída pelas sucessivas gerações de palradores. E disto fazem orgulho de ostentação, para multiplicarem os chavões pretensiosos, metáforas mortas, já abandonadas de uma beleza que nunca puderam compreender. Assim, andam com o mísero intelecto a catar as frases consagradas na tradição da parolagem, para a eterna escravidão de um dizer que lhes não pertence... Política poluída, ideias poluídas, metáforas poluídas... Nisto, pelo menos, são integrais e coerentes. Os pontífices pontificam na futriquice. Crescem na retórica até descambar na gramática e no purismo, recheados de vernaculismos peregrinos. Fazem grande estilo em quilômetros, mas dissimulando o arcaísmo do pensamento com os faustuosos preciosismos e o flatulento classicismo. Destituídos de senso crítico, sem vibração de estesia, incapazes de incorporar ideias, desdobrando-as em novos valores, para novas concepções, eles acumulam-se em laboriosas logomaquias, sonoros porque são ocos, esmagando os conceitos apesar de vazios.

É um expressivo sintoma de decadência mental, esse esforço de amaneiramentos, e essa minúcia na futilidade: século de gramáticos, puristas, retóricos... extensiva nulidade de pensamento. Quando é esse o padrão de inteligência, como esperar que se preparem as mentalidades nas novas gerações, para a originalidade da ideia, o pensamento em vida, operante, a iniciativa da ação inteligente?... No entanto, a par de quanto nos falte como caráter e moralidade, faltam-nos, bramantemente, cérebros fecundos em concepções hauridas da realidade, capazes de ideias sintéticas, condensações de vida, para harmonia de realizações. Em verdade, sob a crosta infectante desses dirigentes, temos vivido as vascas de necessidades nunca lucidamente interpretadas, em parcelas de instituições, sem possibilidade de unificação fecunda.

A ideia derrama-se em maravilhas, consigna milagres, com a condição de ser concepção própria, elaborada na sinceridade de um pensamento autônomo, sobre as necessidades efetivas. Onde, e quando, já conhecemos disto, na gestão política desta pátria? Como, nesses mesmos mais destacados em poder, uma visão pessoal, ou concepção filosófica, a orientar o governo, a sugerir solução oportuna às questões sociais? Incapacidade secular, os nossos dirigentes são como inacessíveis à vida das ideias. Nem se lhes diga que aí está a energia suprema, a servir no progresso geral.

Os ingleses, nas suas elucubrações sociológicas, destacam a muita significação disso a que chamam de – standart of live, e que é a modalidade média de existência. Voltemo-nos para esta pátria: que é o padrão de existência, para o brasileiro? O mais baixo possível, numa nação que se diz soberana. O espontâneo da vida pode ter mudado muita coisa, mas, no que é propriamente humano, e que se define nas consciências, o Brasil lembra, em absoluto, que, há quarenta anos, ainda aqui se vivia do trabalho escravo, sob a política de dirigentes que não sabiam como sair daí. Tudo nos diz que, justamente por isso, devíamos ter atendido especialmente às necessidades da educação popular... Mas, pois que é a mesma tradição política, a educação nacional tem sido invariavelmente desprezada e esquecida. No entanto, bastaria isso para elevar-nos como nação. Neste mundo agitado, da América latina, o Brasil tem sido uma terra de paz. À parte aquela ponta do Sul, a massa da população, tranquilamente boa, é radicalmente infensa às lutas civis. Toda a turbação dos últimos decênios se origina e se processa no seio da própria política tradicional. As hordas, armadas nos fins dos motins politiqueiros, podem atravessar o país de ponta a ponta, sem que o povo propriamente dito participe do movimento; tudo não passa de agitação na crosta dirigente, em face à indiferença da população. Império, ou República, se os dirigentes brasileiros tivessem a justa compreensão dos interesses nacionais e patriotismo para preparar a nação em vista da vida moderna, seríamos hoje um modelo de sociedade pacífica e inteligentemente produtora.

O povo é ignaro, mas o instinto de progresso bem lhe mostra que o infalível processo de soerguimento está na educação, e ele aceita melhorá-la, tanto quanto lhe permitem os meios que lhe são dados. Apesar disto, o Brasil continua a ser o país de analfabetos e impreparados, com uma media humana mais baixa do que a de qualquer dos povos chegados à civilização. Assim nos formamos, assim estamos e assim seguiremos, porque, na inferioridade dos governantes, os sucessivos regimes precisam viver sobre uma população politicamente nula, socialmente bem atrasada e mentalmente desvalorizada. E a massa da nação brasileira foi cuidadosamente amesquinhada na ignorância. Em verdade, com outros dirigentes, os movimentos nacionais que produziram o 7 de Abril, realizaram a Abolição e proclamaram a República, teriam sido aura de renovação mental, política e social. Para tanto, porém, fora preciso que não subsistisse, sobre a vida da nação, aquele Estado aqui importado na montureira de D. João VI, implacavelmente mantido na classe política, único vencedor nas vicissitudes por que tem passado esta pátria. E assim se explica que nada se tenha feito, com sincera tenacidade, para a necessária remissão do Brasil. Como nos dias da colônia, existimos com uma massa popular estratificada em ignorância; e, espoliando-a, a título de governá-la, a descendência mental dos 15.000 parasitas, que abarrotavam o bojo das naus de fugidos de 1808. Então, por uma como necessidade histórica, quando se afasta o trono importado, a República se faz num mergulho pelo passado negro de mandonismo e dos capitães-mores: a mesma tirânica estupidez, símbolo da incurável insuficiência política. O Estado continua a ser o instrumento dos que o convertem em utilidade própria; e como não fora possível parar, de fato, retrocedemos até a degradação modelo.

Qual o remédio?... Aí mesmo está indicado; mas, se não é difícil achá-lo, é quase impossível realizá-lo, ou é de todo inaplicável, nas condições em que prosseguimos. Pode-se contar que os atuais dirigentes saibam fazer a conveniente formação do povo brasileiro? E, ainda que o soubessem, eles antes resistiriam a essa obra, como à verdadeira revolução de que se sentiriam ameaçados. De fato, como admitir que, havendo povo, consciente da sua situação, ele queira a continuação disso? No entanto, essa obra educativa, em que se elevará a nação brasileira, para ser efetivamente livre, próspera e humana, não se pode realizar senão com a própria capacidade ativa do Estado; isto é, há nela um tal desenvolvimento, uma tal harmonia de formas, para uma tal coordenação de efeitos, que vão além da iniciativa e das possibilidades individuais. E, assim, nos encontramos num círculo, que os processos comuns não permitem romper: a atual classe dirigente nunca fará a educação popular; se o fizer, será, por isso mesmo, desmontada, mas o Brasil não pode persistir na inferioridade a que o condenam, pois que isto equivale a uma condenação ao aniquilamento. A vida prossegue em processos formidáveis que, se levam, infalivelmente, ao grande êxito os que sabem captar e dirigir as suas forças, desclassificam e aniquilam inexoravelmente os incapazes, inadaptados aos mesmos processos. Se permanecemos ignorantes, mal preparados, por fora, fatalmente, do progresso, seremos afastados e eliminados pelos que marcham resolutamente para o futuro. É uma marcha em que não se espera. Concretamente: para evitar o desastre, temos de agir sobre as novas gerações, robustecendo- lhes o corpo, e, sobretudo, apurando-lhes as energias de pensamento, desenvolvendo-lhes o caráter em lucidez e poder de vontade, para a solidariedade da ação. Tanto vale dizer: há que educá-las, como o exigem as condições do mundo moderno, ainda que, para tanto, seja preciso refazer a ordem política. Pois não é verdade que precisamos sair dessa vida de moleza, espasmos e insuficiências, por si mesma incompatível com a renovação de ânimo, e todo esforço útil e vencedor? Higiene, instrução, método, ardor social, preocupações políticas, consciência moral, ideias... tudo isso, de que tanto carece o brasileiro, só a educação lhe pode dar. Será a própria renovação nacional. Quem o contestará? Se o padrão de mentalidade se eleva, elevar-se-á o nível geral da sociedade.


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"Manoel Bomfim morreu no Rio aos 64 anos, em 1932, deixando-nos como legado frases, que infelizmente, ainda ecoam como válidas: 'Somos uma nação ineducada, conduzida por um Estado pervertido. Ineducada, a nação se anula; representada por um Estado pervertido, a nação se degrada'. As lições que nos são ministradas em O Brasil nação ainda se fazem eternas. Torcemos para que um dia caduquem. E que o novo Brasil sonhado por Bomfim se torne realidade."

Cecília Costa Junqueira

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Bomfim, Manoel, 1868-1932  
                O Brasil nação: vol. II / Manoel Bomfim. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Fundação Darcy Ribeiro, 2013. 392 p.; 21 cm. – (Coleção biblioteca básica brasileira; 31).


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