Manoel Bomfim
O Brasil Nação volume 2
SEGUNDA PARTE
TRADIÇÕES
À glória de
CASTRO ALVES
Potente e comovida voz de revolução
CASTRO ALVES
Potente e comovida voz de revolução
capítulo 8
A Revolução Republicana
§ 81 – A Queda...
Veio Campos Sales porque era senhor de São Paulo, e Prudente, a preço de salvar-se, lhe deu a sucessão. Assim, entrou a República na trilha de despenhadeiro de onde não pôde mais sair. Note-se: Prudente não fora presidente porque representasse a política paulista, mas porque, naquela compostura de sisudez, merecera a presidência da Constituinte, a quem a bonomia radical de Saldanha Marinho, já alquebrado, era suspeita; como presidente da Constituinte fora oposto a Deodoro, e, como candidato primeiro dos republicanos, foi apresentado em sucessão a Floriano. Sem o passe de 1897, talvez se tivesse poupado à República, por muitos anos, ainda, a ignomínia do legado da presidência de sucessão em sucessão, com a brutal tirania dos grandes Estados. Quanto a Campos Sales, tomando a direção da política republicana nesses desvios em que a metera Prudente, considerando-se fora de compromissos, fez tábula rasa de todos os antecedentes (menos da hostilidade a Glicério), e completou tão bem a obra de deturpação e viciação da política que tornou impossível qualquer remissão nos destinos da República de 15 de Novembro. Sentindo bem que não representava nenhuma escolha da nação, nem trazia programa de partido, Campos Sales achou meio de distinguir e personalizar nitidamente a sua passagem pelo poder: deixou os Estados aos que, de qualquer modo, eram donos deles – política dos governadores. Calou-se o florianismo, reduzido agora à pureza de um culto, felizmente desfalcado dos mais imponentes dos seus políticos, chamados à nova política ao seio do campossalismo; sumiu-se o prudentismo, que era, apenas uma barragem para o aproveitamento de despeitos vis; e, viveu, impante, o financismo, sobre a política dos governadores.
Indiferente à sorte das populações, ficaram os Estados às espúrias oligarquias que, na confusão anterior, deles se tinham apossado. E o destino do Brasil republicano se esclareceu, para a fixação disso que aí está: feitores degenerados antes de qualquer valor, num roer despudorado, para chegar até à rapinagem; uma existência sem brilho, na flatulência do repasto, ou na vanglória vazia. Com isso, o financismo dera para negócio: estradas que se encampam, e se arrendam, para encampações que enriquecem, e arrendamentos que fartam. E o desvio deu em queda.
O resto dessa evolução poderia ficar em silêncio, tanto é a continuação da queda – da queda para a decomposição. Campos Sales, como fora feito, fez Rodrigues Alves, de São Paulo, que só não fez Bernardino porque ainda não estava bem assente a fórmula São Paulo-Minas... Como São Paulo, Minas se considerou um Estado grande, e fez ouvir o nos quoque... Reclamou em nome da sua grandeza, ajudada pelos três subgrandes – Bahia, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul. E veio o primeiro presidente mineiro. Seguiu-se que, muito canhestramente, Minas quis dar o novo dono do Brasil: cindiu-se, nesse motivo, a política republicana, una, até então, apesar do cheque de Rodrigues Alves. Foi um momento em que, pelo zum-zum do bate-boca, pareceu decidiam-se os destinos da pátria. Afonso Pena, presidente que era, em nome do efetivo regime republicano, quis fazer o seu sucessor; volteia-lhe na frente a espada do ministro da Guerra, marechal do Exército, grande força, este também... Novo – nos quoque... Depois, em incidentes já agora sem importância maior, vem um mineiro, depois, um paulista. Pode haver depois um mineiro, depois, um paulista. Pode haver norma mais segura, mais lógica, mais justiceira, mais garantidora de competências?... Mais garantidora de liberdades na política, e de competência na administração?...
Paulista ou mineiro, cada novo senhor tem o seu pessoal para a hierarquia das competências, cuja medida é a do alto, pessoal que ele traz dos seus pagos com a sua famulagem de confiança. Agora, que a República alcançou as suas formas definitivas, quase não há como distinguir os períodos presidenciais: após Prudente, pacificador ad usum da reação, Campos Sales o atamancador das finanças, Rodrigues Alves, o melhorador da capital federal... E acabou a obra republicana. Ignorância pública, ausência de crédito para fazer valer as riquezas naturais, moléstias sociais... Tudo continua por fazer.
Sucedem-se os quatriênios dentro do mesmo partido – o partido dos donos, e pois que se fazem uns aos outros; mas a capital Federal, nesse apurar da República, veio à condição dos lugarejos do interior, quando mudava o partido no poder: despede-se tudo que não tem garantias legais, para vir a gente a quem o novo soberano tem de colocar... E não é a menos fatigante das tarefas, de um presidente, essa de nomear... Do diretor, ou inspetor geral, ao substituto de servente, é Sua Exa. quem dá os lugares. Nem há prerrogativa tão intransigentemente defendida. E como são milhares de nomeações, e cada lugar, por humilde que seja, tem sempre dezenas de candidatos, que, ativos, logo se munem de recomendação para Sua Exa., divididas as horas do dia pelas cartas a ler, e pedidos a atender, o presidente não tem tempo para mais nada...
Nos Estados, a evolução foi, em alguns casos, mais rápida, noutros acidentada e noutros fantástica. A 15 de novembro, foram as antigas províncias distribuídas a republicanos da propaganda, onde os havia, em grande número, a militares, algumas a liberais, feição Rui, distribuição que se refez repetidamente, ajeitada já à politicagem triunfante, de tal sorte que, reinante Lucena, ao serem eleitos os definitivos governos estaduais, acharam-se situados ostensivos partidários da reação, tanto que, dado o golpe de Estado e a dissolução do Congresso, todos os governadores, menos o do Pará, o apoiaram. No Rio Grande do Sul, Castilhos, com a revolta já na rua, não chegou a pronunciar-se explicitamente. Desta sorte, dada a renúncia de Deodoro e a reinstituição da constitucionalidade, estavam as situações deodoristas à mercê da oposição, geralmente de republicanos feição Congresso: alguns governadores abandonaram desde logo o poder; para os que tentaram contemporizar, armaram-se movimentos de deposição, logo realizada, sem, sequer, ensaio de luta. E, assim, se refez radicalmente a situação política em todos os Estados, salvo no Pará. Quanto ao Rio Grande do Sul, já a oposição republicana Cassal-Demetrio tinha assumido o poder, num início de turbação, que foi guerra civil por mais de dois anos, e que se repetirá, como expressão do facciosismo vizinho, que ali se infiltrou, e que faz intermédio ao lado do positivismo também aclimado, e dá frutos como o permite o clima, tanto que o Rio Grande do Sul constitui caso à parte na Federação, não mais livre nem menos politiqueiro do que os outros Estados, porém limpo de mãos, o que é muitíssimo, nesta hora da República. Pelo resto do país, instaladas as situações florianistas, tudo se limitou à mudança do pessoal propriamente político, onde raros republicanos e raríssimos republicanizadores, foram de pronto afogados pela massa de gente derivada diretamente do serviço antigo, com a habilidade de aceitar qualquer posto, contanto que obtenha a posição de onde possa avançar para a definitiva monopolização do poder. E, com isso, nem sequer a decantada ordem que os governantes tanto reclamam. Houve naturais impaciências, com explícitos movimentos de assalto ao poder, sobretudo reinante Prudente, quando algumas raras situações estaduais se mostraram fiéis à política florianista. E, reconstituídos os costumes de mandonismo, já as províncias eram explicitamente possuídas por oligarquias, quase todas de tradicionais politiqueiros – Acioli, Lemos, Severino Vieira, e todos os outros em que se repetem, apenas, Acioli, Lemos, Goes... Foi nesse Brasil assim disposto, que Campos Sales, para repouso de suas finanças, proclamou a política dos governadores, isto é, inaugurado o ostensivo reinado de São Paulo, foram as outras províncias doadas aos bandos erguidos em governo, através das turbações, os transes e acasos dos agitados dias de 1889 a 98. Começaram, então, pelos Estados, as vicissitudes dessa política local, que tem sido a suma beleza da República. Despudorados, bestiais, vorazes, indiferentes à infâmia, ao abrigo da injúria, os oligarcas, constituídos em federação, despejaram-se no mais ostensivo domínio: o Estado é deles, dos filhos, genros, cunhados e primos... Contra eles, só pode valer a traição: com a República, as situações locais só se têm substituído quando um da grei, subindo em voracidade, guardar para si o todo, e rompe (diz a língua deles) com o partido, o bando onde apareceu, para fazer bando à parte. Nessa linha de proceder, já se tem visto de tudo. Por vezes, é o governo da União que fomenta o dissídio; outras vezes, ele estimula um troço que se separou do grupo; e, como dissidência, o grupete finge eleições – duplicata de mesas, dualidade de assembleias... e o Rio de Janeiro garante quem lhe convém.
Destarte, tantas mudanças nas situações políticas dos Estados, tantas traições entre eles, ou atentados à constituição com que se acobertam, para o domínio aviltante em que se mantêm. Fazem exceção os dois grandes Estados, que reservaram o governo da União para as respectivas oligarquias. Então, desde cedo acharam a forma ótima – do partido único [1]. E, como são grandes, com o usufruto da nação total, podem alimentar a quantos haja, profissionais da política, que a todos recebe. Em São Paulo, veleidades pessoais, quinhões mal-medidos, fizeram que do partido único caíssem pedaços: primeira, segunda dissidência... amputações que em nada alteram a ceva geral, e que se fazem enxertos, também sem importância. Em Minas, as incompatibilidades, grunhidos no cocho, nem chegam a ser dissidência. Um Chico Sales, por ser cabeça, terá de manter-se retirado; o resto, ressabiado, retraído, ou no franco poderio espoliador; o resto continua P. R. M. para todos os efeitos.
[1] Em São Paulo, nos últimos dias, ensaia-se um partido de oposição, os democráticos
do cons. A. Prado.
E a nação, na sucessão deles, que em tudo são sucessores uns dos outros, acabou aceitando que regime republicano é isto mesmo. Pois não é que nesta hora da evolução republicana, farto de tudo, farto, mesmo, sem o esforço de abocanhar, um dos mais potentes e promissores virá dizer: Estamos na renascença republicana?!... Por toda parte, o mundo dos políticos profissionais é, para a vida social, como o das profissionais da prostituição, para a vida moral: miséria que a organização social imperfeita torna necessidade. Todavia, mesmo para a prostituição, há exigências de compostura e de relativa decência. No Brasil republicano, a profissão de político desnivela a função até a imundície: é a desmoralização irremissível do prostíbulo. Para notar, em fatos, a degradação de Roma a decompor-se, citam os historiadores as estátuas erguidas em consagração de poderosos vivos, muitas vezes à expensas do próprio consagrado... E aí estão os multiplicados bustos de F. L. S. B. que a vaidade deles mesmos faz erigir, como a imporem ser adorados em vida. É da tradição: o governo de Lisboa teve de proibir que se arvorassem, nos paços, efígies dos seus representantes aqui. A República é menos escrupulosa... Desculpam-se, eles, de tanto terem descido, na alegação de que a obra do estadista tem de ser levantada, muitas vezes, com a própria trampa... Sim: e o estadista se qualifica, justamente, por essa virtude – de levantar com isto catedrais. Mas, há que sejam, de fato, estadistas, esses capazes, não só de harmonizar as instituições sociais de um momento, como, sobretudo, capazes de lobrigar os interesses que se podem solidarizar, achar a forma de tal solidariedade, e, muitas vezes, substituir motivos aparentemente opostos, por estímulos de cooperação, no sentido da justiça. Tal personalidade política trabalhará, ora, com elites já constituídas, ora, com os que emergem em nome de reivindicações novas. Assim, estadista, ele não é o homem de um partido, mas o realizador das legítimas necessidades sociais, fazendo, por si mesmo, os cooperadores da sua obra, pois que a sua alma é uma patente concentração de energias construtoras. Com isto, compreende-se o ambiente de aparente vileza em que o estadista apareça. Mas, esses que, em si, são resíduos de uma longa decomposição?... Em verdade, a condição de moralidade do político pode ser esquecida, em vista da realização que nele se verifica, se a sua obra resulta como convergência das forças sociais que fazem o progresso. O programa efetivo e patente cobre a significação pessoal, tanto mais quanto, pela lição da experiência, a ação política, com o uso do poder, acaba degradando-lhe o caráter. Já a ambição do poder desagrega elementos essenciais na moralidade do político. Mas a nação, que tanto admite, exige que, realizada esta ambição, a conquista do político seja bem para a comunidade: que o poder não seja, nem peso, nem garra, nem ventosa. E qual a significação das sucessivas conquistas do poder nesta República: peso, garra, ventosa...
Não só garra e ventosa: se o Brasil tem, no que aí está, o seu definitivo destino, leiamos nesse destino a apóstrofe de Carlyle: “Infinita baixeza precipitando-se no infinito perigo”. Eliminou-se a letra do antigo regime, e, passada a agitação do transmutar, foi como verniz de hipocrisia que se rompesse, ou a represa que se abre, e, sobre o dique abatido, a sinistra corrente de insânia política. Que outra fórmula adotar? Patenteou-se a política – arte de amesquinhar-se o indivíduo até carência de todo o amor-próprio, na liquidação do último pudor. São esses políticos os governantes e já não há mais rebuços; mostram-se em plena nudez do instinto, cuja baixeza nem mais reconhecem. Hediondez de câncer em ulceração. E sob a atmosfera de podridão, a nação na ignorância, a ponto de que também não avalia a objecção que lhe impõem. República, democracia, opinião, eleições... para a realidade de uma política em que se substituiu talento e brio por servilismo e cinismo, com a esperteza como o maior mérito, e a vaidade da canalhice sobrenadando na estupidez. O exemplo se tem na própria chave do regime: não há, mesmo nas épocas de total degradação, nada de mais desmoralizante e amesquinhador do que o que um presidente da República, no, Brasil, exige dos profissionais na política. E todos aceitam, prontos para mais servilismo, indiferentes aos resultados, mesmo porque todos se sabem irresponsáveis. E os resultados, unanimemente, justificam a máxima: “Vive!... Goza o que puderes... A ignomínia é uma palavra sem sentido.”
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O Brasil nação - v1: Prefácio - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: Prefácio - Manoel Bomfim, o educador revolucionário
O Brasil Nação - v2: Prefácio - Manoel Bomfim, o educador revolucionário (fim)
O Brasil Nação - v2: § 50 – O poeta - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: § 51 – O influxo da poesia nacional - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: § 52 – De Gonçalves Dias a Casimiro de Abreu... - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: § 53 – Álvares de Azevedo - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: § 54 – O lirismo brasileiro - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: § 55 – De Casimiro de Abreu a Varela - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: § 56 – O último romântico - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: § 57 – Romanticamente patriotas - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: § 58 – O indianismo - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: § 59 – O novo ânimo revolucionário - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: § 60 – Incruentas e falhas... - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: § 61 – A Abolição: a tradição brasileira para com os escravos - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: § 62 – Infla o Império sobre a escravidão - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: § 63 – O movimento nacional em favor dos escravizados - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: § 64 – O passe de 1871 e o abolicionismo imperial - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: § 65 – Os escravocratas submergidos - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: § 66 – Abolição e República - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: § 67 – A propaganda republicana - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: § 67 – A propaganda republicana (2) - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: § 68 – A revolução para a República - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: § 69 – Mais Dejanira... e nova túnica - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: § 70 – A farda na República - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - V2: § 71 – O positivismo na República - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - V2: § 72 – A reação contra a República - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - V2: § 73 – A Federação brasileira - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - V2: § 73-a – Significação da tradição de classe - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - V2: § 74 – A descendência de Coimbra - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - V2: § 75 – Ordem... - Manoel Bomfim
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"Manoel Bomfim morreu no Rio aos 64 anos, em 1932, deixando-nos como legado frases, que infelizmente, ainda ecoam como válidas: 'Somos uma nação ineducada, conduzida por um Estado pervertido. Ineducada, a nação se anula; representada por um Estado pervertido, a nação se degrada'. As lições que nos são ministradas em O Brasil nação ainda se fazem eternas. Torcemos para que um dia caduquem. E que o novo Brasil sonhado por Bomfim se torne realidade."
Cecília Costa Junqueira
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Bomfim, Manoel, 1868-1932
O Brasil nação: vol. II / Manoel Bomfim. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Fundação Darcy Ribeiro, 2013. 392 p.; 21 cm. – (Coleção biblioteca básica brasileira; 31).
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nunca é demais pensar...
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