quarta-feira, 9 de setembro de 2020

O Brasil Nação - V2: § 80 – Evolução da República – na República - Manoel Bomfim

Manoel Bomfim


O Brasil Nação volume 2



SEGUNDA PARTE 
TRADIÇÕES



À glória de
CASTRO ALVES
Potente e comovida voz de revolução


capítulo 8


A Revolução Republicana



§ 80 – Evolução da República – na República



Tanto se repete a constatação, que já se banaliza monotonia. Será penoso, mas indispensável – para reconhecer a tradição política, de sempre, na decomposição de autocracismo em que deu a República. 

Mal compreendida pelos melhores, desmentida e fraudada, pelos definitivos exploradores da política, mutilada no que lhe era essencial, a revolução de 1831 ainda teve que ser ostensivamente anulada, e miudamente desfeita, pela legislação em que se confirmou o segundo Império. Tudo se passou sob a casca da monarquia, e a coisa foi relativamente fácil: sete anos bastaram para que a mesma geração de apóstatas chegasse à ignomínia da regressão Araújo Lima – Hermeto – Vasconcelos... Com a República, na novidade da federação, os dirigentes, mesmo incluindo tudo que operara na monarquia, não tiveram a coragem de voltar de pronto, e francamente, à autocracia centralizada do bragantismo; ou não souberam achar a forma de casar imediatamente a mesma federação com o feitorismo que lhes estava na alma. Foram precisos os incertos e baralhados dezesseis anos – de Deodoro a Afonso Pena, para que se assentasse o definitivo domínio dos dois grandes Estados sobre a monstruosa federação, e se tradicionalizasse, nesta forma, o regime republicano do Brasil. Assim, substituída a casa de Bragança pelo P. R. P. ajustado ao P. R. M. nada mais natural do que voltarmos à política de sempre, piorada no descoco de feitores sem senhor, dissolvida na senilidade dos cem anos de vida tórpida, insincera, em flácida masturbação constitucional.

Não tem outra explicação a deslavada reforma da Constituição de 24 de fevereiro, gerada nas mesquinhas circunvoluções de tiranetes ignorantíssimos, ostensivamente imposta por esse pândego regime presidencial, e que, por isso arranjada no despacho do presidente, ali foi comunicada aos não menos pândegos representantes da nação, que a dessem por discutida, e pronta para votação, a que não se negariam. Alega-se que se tanto foi possível é porque estávamos em estado de sítio... Sombras de pejo, na política: sem sítio seria a mesma coisa, um pouco mais cara à nação, que os representantes pediriam mais ao presidente em reconhecimento da submissão, pois que, finalmente, tudo foi muito lógico. Na realidade, a fofa constituição republicana, nas suas insignificantes afirmações democráticas, era coisa morta, desde que não servisse para mascarar o domínio do país pelos seus oligarcas: mas a realidade do destino se impunha, e foi chegado o momento de mostrar à nação brasileira, bem explicitamente, que o 15 de Novembro dera em burla, e o Brasil continuava em usufruto... Só mudara de senhorio...

De fato, a política republicana destes trinta e sete anos foi a mais própria para o patente resultado, de ostensiva renúncia à liberdade, democracia, opinião... à própria honestidade. Na prática, ela realiza, desproporcionadas, todas as misérias da tradição, em descaso, que se fez licenciosidade. E não espanta: criaturas de servir, entregues a elas mesmas, são domésticos desbriados, de conluio em conluio, para o mandonismo em que se fartam. Também é verdade que, se se desse efetividade sincera à Constituição de 24 de fevereiro, nem por isso teríamos realidade de República. Obra de oitiva, sem correspondência com as necessidades do Brasil em vista da justiça e do progresso social, ela se demonstra inoperante, insuficiente, sem virtude para dar-nos o livre jogo de opinião nacional e a educação política de que carecíamos, ou, sequer, um pouco de capacidade administrativa, ou a simples probidade no governo. E, federação, presidencialismo... sem aura de verdadeira revolução, colocados sobre o Brasil os dirigentes de sempre, tínhamos que evoluir para esse abjeto oligarquismo, em que se conformou a República. O Império, mentira de parlamentarismo, tinha o verniz de decência dos seus dois partidos-fantoches, que, revezadamente, gozavam o poder. Com a devassidão política abancada na Constituição de 1891, os mandões dos Estados, senhores, organizaram a ceva num só partido, dentro do qual, se azedam despeitos de menor quinhão, tudo não passa de fermentação interna, para o afastamento de díscolos dissidentes da forma de comezaina. A preciosa unidade, garantidora do usufruto na camarilha, esta se mantém, que é o principal na obra geral.

Lógica dos fatos: afastado um senhor único, as capitanias-províncias-estados voltaram ao regime dos capitães-mores, sem preocupações de esperar Lisboa, que se incluiu neles mesmos, regressão que se resolveu em pejoração, porque, aproveitando todas as anteriores usurpações de liberdade, as capitanias da República não concedem nem aquelas insignificantes franquias municipais do século XVII. Estados, como o de Minas, que são nações, conformaram- se numa republicanização em que centenas de municípios, ainda os mais afastados, ou os mais prósperos, estão, de fato, tão dependentes de Belo Horizonte como as próprias ruas da capital. Um prefeito, gerado na politicagem de Belo Horizonte, inteiramente estranho ao município que lhe deram, é a única opinião válida nos negócios do mesmo município, com, aos seus pés, a meia dúzia de conselheiros municipais, votados a Belo Horizonte que lhes deu o delegado, o coletor, a professora, e, sobretudo, a honra – de ser o partido local. Eis o self-governement, base da democracia republicana, que o destino impôs à clássica Minas livre. Pelas outras capitanias, haverá agravação, nunca melhores frestas de liberdade republicana. O caminho para trazer até aí a obra de 15 de novembro teve de ser recortado em atalhos escuros, e duros, que é longa a distância, e enorme o desnivelamento entre a verdade da República e a ignomínia definitiva. Descida em degringolada, a evolução política dos quatriênios conformadores estampa-se bem nos respectivos fastos.

Erguendo-se em luta armada, a reação contra a República encontrou-se com a ação de Floriano, concentração das energias de um Brasil novo e em virtude de renovação. Nunca se coligaram contra um governo brasileiro tantas forças de terra, ostensivamente organizadas para a revolução, toda a Marinha, e as muitas hostes dissimuladas, orientadas para a reação, pela perspectiva de realidade republicana. Em face de uma opinião pública desorientada por implacável campanha da imprensa, com um Exército a fugir-lhe das mãos, cercado, preso à terra por uma esquadra dominante na Guanabara e por todo o litoral mais importante, a enfrentar uma guerra devastadora no Sul, o Presidente Floriano Peixoto, porque incorporou a possibilidade de realização republicana, teve o condão de encontrar o preciso para a inteira vitória sobre a reação armada, reação ostensiva, forte, mas sem a homogeneidade de um ideal, ainda em luta, e já partida nas ambições que se cruzavam. Vencedora na luta armada, a República veio cair, logo depois, quando derrotada, a reação se refez em cerco insidioso dentro da própria política operante. Os mais ativos e úteis nessa reação já estavam situados vantajosamente para a vitória decisiva. Desde o primeiro momento, pela insuficiência revolucionária dos homens de 15 de novembro, entraram para a obra republicana todos os que quiseram, quase todas as antigas utilidades políticas. Com Deodoro, segunda fase, houve uma qual diferenciação, sobretudo na dura campanha parlamentar e de imprensa, contra Floriano. Desencadeou-se finalmente, a guerra civil, e uma certa parte das gentes reacionárias foram para a luta; mas o melhor dos políticos essencialmente incompatíveis com a República, esses amoitaram-se, ou ficaram a fingir de republicanos. Prosseguia a campanha, e o seu mesmo desenrolar era motivo para forçar a opinião do país, em nome da paz. Com a República em luta, na sucessão das suas vitórias, teve objeto imediato o sentimento republicano: altearam-se as suas vozes, desfraldaram-se entusiasmos; houve uma atmosfera de renovação política e de afirmação democrática. E isto foi susto para os reacionários já acomodados, como foi despeito para republicanos de nome, inteiramente destituídos de sentimentos democráticos, lenhificados no personalismo de uma senectude triste é intransigente, hostil a toda política republicana que não fosse a da estreiteza dos seus conceitos.

O nome do sucessor de Floriano fora levantado pelos republicanos contra Deodoro, porque a catadura da sua sisudez macilenta, em cinzentas pálidas barbas paradas, o justificavam como criatura de ordem, incompatível com os intuitos agitadores que a reação imputava aos mesmos republicanos. Com isto, aí ficou a candidatura, e Prudente de Morais veio a ser o primeiro presidente da República, em sucessão aos homens de 15 de novembro. Nenhuma atração pessoal, nem irradiação de pensamento, para o prestígio de uma compostura em solenidade fria, nas linhas de um ebúrneo bilioso, quase tétrico, como espelho de uma alma hostil a todo entusiasmo de mocidade e esperanças, infensa a transportes e efusões de cordialidade, fechada à alegria, surda às vibrações da vida a refazer-se. O tímido olhar apagado, na dureza da fisionomia, dizia um ódio gratuito a tudo que fosse contraste a essa mesma apagada dureza. Nessa estrutura de caráter, dada a natural retração de horizonte mental, a reação encontrou o republicano com quem se reconstituiria a política tradicional do Brasil, na mesma gente, com os mesmos processos, em adaptação aos novos títulos. A oposição à ação de Floriano sagrou o seu sucessor pacificador da política republicana, e ele, ostensivamente, aceitou o papel, que concretamente veio a ser o de retroagir nas formas, e abater aqueles com quem o antecessor fizera a sua obra. Não tardou ser a luta declarada, os explícitos intuitos de contraste sob o insincero título de pacificação. No túmulo de Floriano, antes de dois anos de reinante Prudente, um discurso de Raul Pompeia – republicano florianista, dá o tom da resposta à reação conduzida pelo governo de Prudente de Morais.

Com o treino de luta dos florianistas, dado o temperamento de mocidade dos mais patentes entre eles, desde logo a oposição foi campanha, até os extremos do jacobinismo. Não tardou a diferenciação no pessoal: todo o antigo deodorismo com o Santo Varão; os republicanos de tradição – de Quintino a Castilhos a Glicério... com a República, que passou a chamar-se florianismo, e todo o escol das antigas utilidades a espiar a maré. Por fora, intransigentes, dificilmente contidos pelos chefes, bramavam os florianistas, e queriam decidir revolucionariamente a situação. Uma manifestação qualquer da Escola Militar, onde vivia ainda o espírito de Benjamin Constant, foi o ensejo: Seabra, antiflorianista de sempre, apresentou uma moção que era a condenação implícita da política republicana; os republicanos, Glicério à frente, combateram-na, e os espia-maré, todos, vieram para o lado de Seabra, estrídula voz do prudentismo. Foi o passe em que se definiu um dos processos essenciais, que depois se fez norma na realização republicana: em face à oposição republicana florianista, apesar dos deodoristas e aderentes que o apoiavam, Prudente sentiu-se falho de força, e apelou para São Paulo, onde reinava Campos Sales, que veio decidir a pendência, disseram... A decisão foi assegurar-lhe, Prudente, a sucessão, e Campos Sales lhe deu o apoio indispensável, para que ele, Prudente, não se visse forçado a resignar. Antes, o desbarato de duas colunas do Exército enviadas contra os fanáticos de Canudos, tidos como instrumentos da reação monárquica, dera ensejo a manifestações de jacobinos no Rio de Janeiro, com excessos lamentáveis, mas compreensíveis. Os ânimos ferviam de um lado, desatavam em despeitos do outro, despeitos que iam ser mais apoio à política do presidente, até que um pobre energúmeno atenta contra a vida de Prudente, miserável caso policial, cuja cumplicidade só a ignomínia de uma política de apóstatas e traidores podia ter imputado a criaturas como Glicério, Pinheiro Machado, Manoel Vitorino... idólatras da ordem, e que, mais uma vez, sacrificaram por isso as legítimas reivindicações democráticas. O atentado, ferozmente explorado, foi o pretexto de um sítio para perseguições, o primeiro nesse intuito, dos muitos em que esta República tem sido fértil. Havia um ensaio de partido nacional – o P. R. F., em contraste com os agrupamentos da reação, a qual formaria, finalmente, um outro partido; mas, presos, ou afugentados – Pinheiro Machado, Glicério, Manoel Vitorino... desterrados alguns dos mais vivazes no florianismo, infamados na pecha de assassinos... com o arranjo Campos Sales-Prudente, montada a antiga política graças ao prestígio do sítio, esvaiu-se a energia que tentava fazer política republicana, aliás já muito viciada. Glicério, alma em quem a bondade quase não deixava lugar para a segurança intransigente de uma obra política e que, escorraçado, implacavelmente afastado de toda política, e infamado, deixado à solidão do ostracismo, é, no caso, o símbolo dos destinos da política republicana, como resultou do quatriênio que fez da presidência da República usufruto de São Paulo, com escolha – apanágio do antecessor...




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"Manoel Bomfim morreu no Rio aos 64 anos, em 1932, deixando-nos como legado frases, que infelizmente, ainda ecoam como válidas: 'Somos uma nação ineducada, conduzida por um Estado pervertido. Ineducada, a nação se anula; representada por um Estado pervertido, a nação se degrada'. As lições que nos são ministradas em O Brasil nação ainda se fazem eternas. Torcemos para que um dia caduquem. E que o novo Brasil sonhado por Bomfim se torne realidade."

Cecília Costa Junqueira

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Bomfim, Manoel, 1868-1932  
                O Brasil nação: vol. II / Manoel Bomfim. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Fundação Darcy Ribeiro, 2013. 392 p.; 21 cm. – (Coleção biblioteca básica brasileira; 31).


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nunca é demais pensar...


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