J.D. Salinger
3
Sou o maior mentiroso do mundo. É bárbaro. Se vou até a esquina comprar uma revista e alguém me pergunta onde é que estou indo, sou capaz de dizer que vou a uma ópera. É terrível. Por isso, quando disse ao velho Spencer que tinha de ir ao ginásio apanhar o meu equipamento, era pura mentira. Nem costumo deixar a droga de meu equipamento no ginásio. Meu quarto no Pencey ficava no Pavilhão Ossenburger, uma ala nova de dormitórios. Era reservada para alunos do terceiro e do quarto ano. Eu era terceiranista e meu colega de quarto estava no último ano. O Pavilhão tinha sido batizado em homenagem a um ex-aluno do Pencey, um tal de Ossenburger, que tinha ganho um montão de dinheiro como agente funerário depois que saiu do colégio. Foi ele quem lançou em todo o país aquelas agências funerárias em que a gente pode enterrar qualquer membro da família por cinco dólares cada. Valia a pena ver o tal de Ossenburger. Pelo jeito, ele provavelmente enfiava os cadáveres num saco e jogava tudo no rio. De qualquer maneira, havia doado uma fortuna ao Pencey e batizaram nossa ala com o nome dele. No dia do primeiro jogo de futebol do ano ele apareceu no colégio, metido numa baita duma Cadillac, e todo mundo teve que ficar de pé na arquibancada e lhe dar uma bruta salva de palmas. No dia seguinte, na capela, fez um discurso que durou umas dez horas. Começou com umas cinqüenta piadas cretinas, só para provar que era um grande praça. Grande merda. Aí começou a contar como nunca se envergonhava de se ajoelhar e rezar a Deus, sempre que estava numa enrascada ou coisa parecida. Mostrounos como devíamos rezar a Deus - conversando com Ele e tudo - onde quer que estivéssemos. Disse que devíamos pensar em Jesus Cristo como se Ele fosse um camaradinha nosso. Contou que ele conversava com Jesus o tempo todo, mesmo quando estava guiando o automóvel. Essa foi a maior! Podia imaginar o filho da puta engrenando uma primeira e pedindo a Deus para lhe mandar mais alguns defuntos. A única coisa boa do discurso foi bem no meio. Ele estava contando que ótima pessoa que era, que sujeito bacana e tudo, quando de repente um cara que estava sentado na minha frente, o Edgar Marsalla, soltou um peido infernal. Era o tipo da coisa grosseira de se fazer numa capela e tudo, mas foi um bocado engraçado. O sacana do Marsalla por pouco não mandou o teto pelos ares. Quase ninguém riu alto, e o velho Ossenburger fingiu que nem tinha ouvido, mas o velho Thurmer, o diretor, estava sentado bem ao lado dele no tablado, e a gente podia ver que ele tinha ouvido. Puxa, o homenzinho ficou fulo de raiva. Na hora não disse nada, mas na noite seguinte decretou estudo obrigatório e apareceu para fazer um discurso. Disse que o rapaz que havia causado o distúrbio era indigno de pertencer ao Pencey. Tentamos convencer o Marsalla a soltar outro, bem no meio do discurso do velho Thurmer, mas ele não estava no estado de espírito necessário. De qualquer modo, lá é que era meu quarto: Pavilhão Ossenburger, nova ala de dormitórios.
Foi um bocado bom voltar para o quarto depois de sair da casa do velho Spencer, porque todo mundo estava no jogo e, para variar, o sistema de aquecimento estava funcionando em nosso quarto. Tirei o paletó, a gravata, desabotoei o colarinho e pus na cabeça um chapéu que tinha comprado em Nova York. de manhã. Era um desses chapéus de caça, vermelho, com a pala bem comprida. Eu o tinha visto na vitrina de uma loja de artigos esportivos quando saímos do metrô, logo depois que descobri que havia perdido a porcaria dos floretes e tudo. Só custou um dólar. Usava o chapéu com a pala virada para trás - de um jeito meio ridículo, mas era assim mesmo que eu gostava. Aí apanhei o livro que estava lendo e sentei na minha poltrona. Havia duas poltronas em cada quarto. Eu tinha uma e meu colega de quarto, Ward Stradlater, tinha outra. Os braços estavam em petição de miséria, porque todo mundo sentava sempre em cima deles, mas eram umas poltronas um bocado confortáveis.
Estava lendo um livro que tinha apanhado por engano na biblioteca. Me deram o livro errado e só notei quando já estava de volta no quarto. Haviam me dado Fora da África, de Isak Dinesen. Pensei que ia ser uma droga, mas não era não. Até que era um livro muito bom. Sou bastante ignorante, mas leio um bocado. Meu autor preferido é meu irmão D.B. e, em segundo lugar, Ring Lardner. Meu irmão me deu um livro do Ring Lardner no meu aniversário, antes de eu ir para o Pencey. Tinha uma porção de peças malucas, engraçadas pra burro, e um conto sobre um guarda de trânsito que se apaixona por uma garota muito bonita, que dirigia sempre em excesso de velocidade. Só que o guarda era casado, e por isso não podia casar com ela nem nada. Aí a garota acaba morrendo, porque dirigia sempre em excesso de velocidade. Achei essa estória infernal. O que eu gosto mesmo é de um livro que seja engraçado, pelo menos de vez em quando. Li uma porção de livros clássicos, como A Volta do Nativo, e tudo, e gostei deles; li também vários livros de guerra e de mistério, mas nenhum desses me deixou maluco. Bom mesmo é o livro que quando a gente acaba de ler fica querendo ser um grande amigo do autor, para se poder telefonar para ele toda vez que der vontade. Mas isso é raro de acontecer. Eu até que gostaria de telefonar para esse tal de Ring Lardner, só que o D. B. me disse que ele já morreu. Mas, por exemplo, esse livro do Somerset Maugham, A Servidão Humana, que li no verão passado. É um livro bom pra chuchu e tudo, mas não me dá vontade de telefonar para o Somerset Maugham. Sei lá. Não é o tipo de sujeito que a gente tenha vontade de telefonar para ele, essa é que é a verdade. Preferiria telefonar para o Thomas Hardy. Gosto muito da tal de Eustacia Vye.
Seja lá como for, pus meu chapéu novo na cabeça, sentei e comecei a ler o tal do Fora da África. Não tinha lido nem umas três páginas quando ouvi alguém atravessando as cortinas do chuveiro. Mesmo sem olhar já sabia quem era. Era o Robert Ackley, que morava no quarto ao lado do meu. Na nossa ala havia um chuveiro entre cada dois quartos, e o tal do Ackley encarnava em mim umas oitenta e cinco vezes por dia. Era provavelmente o único cara em todo o dormitório, além de mim, que não estava vendo o jogo. Ele quase nunca ia a lugar nenhum. Era um sujeito um bocado esquisito. Já estava no último ano, tinha feito o curso inteiro lá mesmo no Pencey, mas todo mundo só chamava ele de Ackley. Nem mesmo o Herb Gale, seu companheiro de quarto, chamava ele de Bob ou mesmo Ack. Se é que algum dia ele vai se casar, aposto que a mulher dele também vai chamá-lo de Ackley. Era um desses camaradas altos pra burro, de ombros largos - devia ter um metro e oitenta e sete - com uns dentes podres. O tempo todo que morou no quarto ao lado do meu, não o vi escovar os dentes nem uma única vez. Os dentes dele estavam sempre meio esverdeados, parecia até que já tinham criado musgo, e dava nojo vê-lo no refeitório, com a boca cheia de purê de batatas, ervilha ou coisa que o valha. Além disso, tinha um bocado de espinhas. Não era só na testa ou no queixo, como a maioria dos sujeitos, mas pela cara toda. E não era só isso, tinha um gênio dos diabos, o tipo do indivíduo desagradável. Confesso que não ia lá muito com as fuças dele
Podia sentir que ele estava em pé, na borda do chuveiro, bem detrás da minha poltrona, dando uma olhada para ver se o Stradlater andava por perto. Ackley não topava o Stradlater, e nunca entrava no quarto com ele por lá. No duro mesmo, acho que o safado não topava era ninguém.
Desceu da borda do chuveiro e entrou no quarto. - Oba - disse. Ele sempre dizia isso como se estivesse terrivelmente chateado ou terrivelmente cansado. Não queria que os outros pensassem que ele estava fazendo uma visita, ou coisa parecida; queria que a gente imaginasse que ele tinha entrado por engano!
- Oba - respondi, mas nem levantei a cabeça do livro. Com um sujeito como o Ackley, a gente estava perdido se levantasse a cabeça do livro. Estaria perdido de qualquer jeito, mas não tão depressa como se houvesse logo olhado para ele.
Começou a zanzar pelo quarto, devagarinho e tudo, como sempre fazia, mexendo nos objetos pessoais da gente que estivessem por cima das escrivaninhas ou das mesas. Estava sempre apanhando um objeto pessoal de alguém para dar uma olhada. Puxa, tinha horas que botava a gente nervoso.
- Como é que foi a competição de esgrima? - perguntou. Mas era só para me obrigar a parar de ler e deixar de me divertir.
- Ganhamos, ou como é que foi?
- Ninguém ganhou - respondi. Mas sem olhar para ele.
- O quê?
Ele estava sempre obrigando a gente a dizer as coisas duas vezes.
- Isso mesmo. Ninguém ganhou.
Dei uma olhadela para ver o que é que ele estava fazendo na minha escrivaninha. Estava olhando o retrato de uma garota com quem eu costumava sair em Nova York, Sally Hayes. Ele já devia ter apanhado e olhado aquela droga daquele retrato umas cinco mil vezes desde o dia em que o recebi. Quando tinha se fartado de mexer numa coisa, punha sempre de volta no lugar errado. Fazia isso de propósito, evidentemente.
- Ninguém ganhou, não é? Como é que pode?
- Esqueci a droga dos floretes e do equipamento no metrô.
Continuava com a cara enfiada no livro.
- No metrô, essa é boa! Quer dizer que você perdeu tudo?
- Nós tomamos o trem errado e eu tinha que ficar me levantando para olhar a porcaria do mapa na parede.
Chegou para perto de onde eu estava e se postou bem em frente da luz. Aí eu disse: - Puxa, já li essa mesma frase umas vinte vezes desde que você chegou.
Qualquer um teria entendido a indireta, menos o Ackley. Menos ele.
- E você acha que vão te fazer pagar o equipamento? - perguntou.
- Sei lá, e estou pouco ligando. Que tal você se sentar ou coisa que o valha, hem, meu menino? Você está bem na frente da minha luz.
Ficava possesso quando alguém o chamava de menino. Estava sempre dizendo que eu era criança, porque eu tinha dezesseis anos e ele dezoito. Ficava maluco quando eu o chamava de meu menino.
Nem com isso saiu do lugar. Era exatamente o tipo do sujeito que não sai da frente da luz se a gente pedir. Depois de algum tempo acabava saindo, mas sempre demorava mais um pouco se a gente tivesse pedido a ele para sair
- O que é que você está lendo?
- Uma droga dum livro.
Deu um empurrão no livro para ver o título e perguntou:
- Como é? Vale alguma coisa?
- Essa frase que eu estou lendo é genial.
Às vezes, quando me dá vontade, consigo ser um bocado sarcástico. Mas ele nem entendeu a ironia. Começou a andar outra vez pelo quarto, mexendo em todos os meus objetos pessoais e do Stradlater. Afinal, pus meu livro no chão. Ninguém consegue ler mais nada com um sujeito como o Ackley por perto. É totalmente impossível. Deixei o corpo escorregar até lá em baixo da poltrona, e fiquei olhando o sacana do Ackley se pondo à vontade, como se estivesse em casa. Estava começando a me sentir um pouco cansado da viagem a Nova York e tudo, e comecei a bocejar. Aí comecei a bancar o maluco pra fazer hora. De vez em quando eu banco o maluco uma porção de tempo, só para não ficar chateado. O que fiz foi puxar a pala do meu chapéu para a frente e dobrar para baixo, tapando os olhos. desse jeito não conseguia ver porcaria nenhuma.
- Acho que estou ficando cego - eu disse, numa voz rouca pra chuchu. - Mãezinha querida, está ficando tudo tão escuro aqui.
- Juro que você é maluco - disse o Ackley.
- Mãezinha querida, me dá a tua mão. Por que é que você não me dá a tua mão?
- Oh, por favor. Vê se cresce, tá?
Comecei a tatear na minha frente, como se fosse cego, mas sem me levantar nem nada. - Mãezinha querida, por que é que você não me dá a tua mão? - continuei dizendo, mas estava só bancando o maluco, naturalmente. Às vezes um negócio desses me diverte um bocado, e além disso eu sabia que o Ackley ficava danado com a brincadeira. Ele sempre despertava em mim uma ponta de sadismo. De vez em quando eu era um bocado sádico com ele. Acabei parando. Puxei a pala de volta para trás e sosseguei.
- De quem é isso? - Ackley perguntou. Estava me mostrando a joelheira do meu companheiro de quarto. O sacaneta do Ackley mexia em qualquer troço. Era até capaz de apanhar a culhoneira da gente, ou qualquer outra coisa. Disse que era do Stradlater e ele aí jogou a joelheira em cima da cama dele. Tinha apanhado em cima da escrivaninha, por isso é que jogava em cima da cama.
Aproximou-se e sentou no braço da poltrona do Stradlater. Nunca sentava numa poltrona, tinha que ser sempre no braço da poltrona.
- Onde é que você arranjou esse chapéu?
- Em Nova York.
- Quanto foi?
- Um dólar.
- Então você foi roubado.
Começou a limpar a droga das unhas com a ponta de um fósforo. Estava sempre limpando as unhas. De certo modo, era até engraçado. Os dentes dele estavam sempre esverdeados de sujeira, as orelhas eram uma imundície, mas ele não passava um dia sem limpar as unhas. Acho que pensava que isso o tornava um sujeito muito limpo. Deu outra olhadela para meu chapéu enquanto limpava as unhas.
- Lá onde eu moro a gente usa esse tipo de chapéu para caçar veado, por Deus do céu. Esse chapéu só serve para caçar veado.
- Nada disso.
Tirei o chapéu e olhei para ele, com um dos olhos meio fechado, como se estivesse fazendo mira.
- Esse chapéu aqui é para caçar gente. Eu uso ele para caçar gente.
- Teu pessoal já sabe que você levou bomba?
- Neca.
- Onde é que se meteu o Stradlater, afinal de contas?
- Está lá no jogo. Arranjou uma guria.
Bocejei outra vez, não parava mais de bocejar. Também, o quarto estava estupidamente quente, dava um sono danado na gente. No Pencey, ou a gente morria gelado ou derretia de tanto calor.
- O grande Stradlater - disse o Ackley.
- Êi, me empresta tua tesourinha um minuto? Ela está à mão?
- Não, já botei na mala, e a mala está lá em cima do armário.
- Apanha ela um instante, tá bom? Tem um fiapo de pele aqui que eu quero cortar.
Para ele não fazia diferença se a gente tivesse posto um troço na mala e tivesse que ir apanhar em cima do armário. Mas fui pegar a tesourinha, assim mesmo, e quase morri por causa disso. Na hora em que abri a porta do armário, a raquete de tênis do Stradlater - com a guarnição de madeira e tudo - caiu bem na minha cabeça. Fez um barulho tremendo e doeu pra chuchu. Me deu vontade de esganar o filho da mãe do Ackley. Ele deu uma gargalhada que mais parecia um cacarejo e ficou se esbaldando o tempo todo, enquanto eu apanhava a mala e tirava a tesourinha para dar a ele. Bastava acontecer uma coisa dessas - um sujeito levar uma pedrada na cabeça ou coisa que o valha - que o Ackley se mijava de tanto rir.
- Você tem um senso de humor fenomenal, meu menino. Sabe disso? - fui falando enquanto entregava a tesourinha a ele. Deixa eu ser teu empresário, te arranjo um contrato para você trabalhar no rádio.
Sentei de novo na minha poltrona, e ele começou a cortar aquelas unhas que mais pareciam uns cascos.
- Que tal você usar a mesa, hem? Vê se corta essa porcaria dessas unhas em cima da mesa, tá? Não tenho a mínima vontade de andar hoje de noite por cima do resto das tuas unhas.
Nem deu bola, continuou cortando as unhas e deixando as aparas cair no chão. Vai ser mal-educado assim no inferno.
- Quem é a namorada do Stradlater? - perguntou.
Ele estava sempre querendo saber com quem o Stradlater saía, embora não fosse com a cara dele.
- Sei lá. Por quê?
- Por nada. Rapaz, eu não suporto aquele filho da puta. Se há um filho da puta que eu não suporto, é ele.
- Pois ele te adora. Me disse que te acha um príncipe.
Tenho a mania de chamar os outros de príncipes, quando me dá vontade de aporrinhar o sujeito. Só para não ficar chateado nem nada.
- Ele está o tempo todo com aquela atitude superior - continuou o Ackley. - Não topo aquele filho da puta. Parece até que ele...
- Você se importa de cortar as unhas em cima da mesa, hem? Já te pedi umas cinqüenta vezes...
- Está sempre com aquele ar superior. Nem acho o sacana inteligente. Ele pensa que é. Acho ele o maior...
- Ackley! Que merda! Quer fazer o favor de cortar a porcaria das tuas unhas em cima da mesa? Merda, já te pedi umas cinquenta vezes...
Só para variar ele começou a cortar as unhas em cima da mesa. A única maneira dele fazer alguma coisa era berrando com ele. Fiquei olhando para ele algum tempo e aí disse:
- Você tá danado com o Stradlater porque ele falou aquele negócio que você devia escovar os dentes de vez em quando. Ele não queria te ofender quando disse aquilo. Ele bem que podia ter falado de outro jeito e tudo, mas não estava querendo te ofender. O que ele queria dizer é que você ficaria com uma aparência melhor, e se sentiria melhor, se desse uma escovada nos dentes de vez em quando.
- Eu escovo os dentes. Não me vem com essa.
- Escova nada. Tenho reparado e sei que você não escova.
Não disse isso de maneira a magoá-lo, até que sentia pena dele, de certo modo. Claro que não é agradável alguém dizer à gente que se deve escovar os dentes.
- O Stradlater não é má pessoa. O caso é que você não conhece ele direito.
- Continuo achando que ele é um filho da puta. Um filho da puta metido a besta.
- Metido a besta ele é, mas em algumas coisas é um bocado generoso. No duro. Olha, se ele estiver usando uma gravata e a gente disser que gosta dela, por exemplo... Digamos que ele esteja usando uma gravata que você achou um bocado bonita. Sabe o que ele faria? Provavelmente tirava do pescoço e dava para você. Dava mesmo. Ou sabe o que ele podia fazer também? Deixava a gravata em cima da tua cama ou coisa parecida. Mas dava a droga da gravata. A maioria dos sujeitos provavelmente...
- Ora, com o dinheiro que ele tem, até eu dava.
- Dava nada - falei, sacudindo a cabeça. - Dava coisa nenhuma, meu menino. Se você tivesse o dinheiro que ele tem, você seria um dos maiores...
- Para de me chamar de meu menino. Que merda! Com a idade que eu tenho podia ser a porcaria do teu pai.
- Não, não podia não.
Puxa, às vezes ele era mesmo insuportável. Não perdia uma chance de repetir que a gente tinha dezesseis anos e ele dezoito.
- Em primeiro lugar, eu não deixaria você fazer parte da droga da minha família.
- Bom, então para de me chamar...
De repente a porta se abriu e o Stradlater entrou pelo quarto a dentro, com uma pressa danada. Estava sempre com uma pressa danada. Tudo para ele era uma maravilha. Chegou para perto de mim e me deu um tapinha amigável em cada face - coisa que às vezes consegue ser um bocado aporrinhativa.
- Escuta - disse - você vai a algum lugar especial hoje à noite?
- Não sei. Talvez. Está nevando lá fora?
O casaco dele estava coberto de neve.
- Tá sim. Escuta, se você não vai a nenhum lugar especial, que tal me emprestar teu paletó novo?
- Quem ganhou o jogo? - perguntei.
- Está na metade ainda, mas nós vamos sair. Sem brincadeira, você vai usar teu casaco novo ou não? Meu paletó de flanela cinza está todo borrado.
- Não vou usar não, mas você vai alargar o casaco todo com a droga dos teus ombros.
Nós éramos praticamente da mesma altura, mas ele pesava umas duas vezes mais do que eu. E tinha uns ombros larguíssimos
-Não alargo não.
Correu para o armário e disse: - Como vai, Ackley?
Ele era, pelo menos, um sujeito um bocado simpático. Quase sempre era uma simpatia meio fingida, mas pelo menos ele cumprimentava o Ackley e tudo.
Ackley, em resposta, deu uma espécie de grunhido. Responder ele não respondia, mas também não tinha coragem para deixar de, pelo menos, soltar um grunhido. Para mim ele disse: - Acho que vou indo. Te vejo mais tarde.
- Tá bem - respondi. Ackley nunca deixava saudade quando tratava de voltar para o quarto dele. Stradlater começou a tirar o paletó, a gravata e tudo.
- Acho que é melhor eu fazer uma barba rápida - disse. Ele tinha uma barba um bocado cerrada.
- Onde é que você deixou tua namorada?
- Está me esperando no Anexo.
Saiu do quarto levando o aparelho de barbear e uma toalha em baixo do braço, sem camisa nem nada. Andava sempre nu da cintura para cima, porque achava que tinha um físico fabuloso. E tinha mesmo, isso eu não posso negar.
Sou o maior mentiroso do mundo. É bárbaro. Se vou até a esquina comprar uma revista e alguém me pergunta onde é que estou indo, sou capaz de dizer que vou a uma ópera. É terrível. Por isso, quando disse ao velho Spencer que tinha de ir ao ginásio apanhar o meu equipamento, era pura mentira. Nem costumo deixar a droga de meu equipamento no ginásio. Meu quarto no Pencey ficava no Pavilhão Ossenburger, uma ala nova de dormitórios. Era reservada para alunos do terceiro e do quarto ano. Eu era terceiranista e meu colega de quarto estava no último ano. O Pavilhão tinha sido batizado em homenagem a um ex-aluno do Pencey, um tal de Ossenburger, que tinha ganho um montão de dinheiro como agente funerário depois que saiu do colégio. Foi ele quem lançou em todo o país aquelas agências funerárias em que a gente pode enterrar qualquer membro da família por cinco dólares cada. Valia a pena ver o tal de Ossenburger. Pelo jeito, ele provavelmente enfiava os cadáveres num saco e jogava tudo no rio. De qualquer maneira, havia doado uma fortuna ao Pencey e batizaram nossa ala com o nome dele. No dia do primeiro jogo de futebol do ano ele apareceu no colégio, metido numa baita duma Cadillac, e todo mundo teve que ficar de pé na arquibancada e lhe dar uma bruta salva de palmas. No dia seguinte, na capela, fez um discurso que durou umas dez horas. Começou com umas cinqüenta piadas cretinas, só para provar que era um grande praça. Grande merda. Aí começou a contar como nunca se envergonhava de se ajoelhar e rezar a Deus, sempre que estava numa enrascada ou coisa parecida. Mostrounos como devíamos rezar a Deus - conversando com Ele e tudo - onde quer que estivéssemos. Disse que devíamos pensar em Jesus Cristo como se Ele fosse um camaradinha nosso. Contou que ele conversava com Jesus o tempo todo, mesmo quando estava guiando o automóvel. Essa foi a maior! Podia imaginar o filho da puta engrenando uma primeira e pedindo a Deus para lhe mandar mais alguns defuntos. A única coisa boa do discurso foi bem no meio. Ele estava contando que ótima pessoa que era, que sujeito bacana e tudo, quando de repente um cara que estava sentado na minha frente, o Edgar Marsalla, soltou um peido infernal. Era o tipo da coisa grosseira de se fazer numa capela e tudo, mas foi um bocado engraçado. O sacana do Marsalla por pouco não mandou o teto pelos ares. Quase ninguém riu alto, e o velho Ossenburger fingiu que nem tinha ouvido, mas o velho Thurmer, o diretor, estava sentado bem ao lado dele no tablado, e a gente podia ver que ele tinha ouvido. Puxa, o homenzinho ficou fulo de raiva. Na hora não disse nada, mas na noite seguinte decretou estudo obrigatório e apareceu para fazer um discurso. Disse que o rapaz que havia causado o distúrbio era indigno de pertencer ao Pencey. Tentamos convencer o Marsalla a soltar outro, bem no meio do discurso do velho Thurmer, mas ele não estava no estado de espírito necessário. De qualquer modo, lá é que era meu quarto: Pavilhão Ossenburger, nova ala de dormitórios.
Foi um bocado bom voltar para o quarto depois de sair da casa do velho Spencer, porque todo mundo estava no jogo e, para variar, o sistema de aquecimento estava funcionando em nosso quarto. Tirei o paletó, a gravata, desabotoei o colarinho e pus na cabeça um chapéu que tinha comprado em Nova York. de manhã. Era um desses chapéus de caça, vermelho, com a pala bem comprida. Eu o tinha visto na vitrina de uma loja de artigos esportivos quando saímos do metrô, logo depois que descobri que havia perdido a porcaria dos floretes e tudo. Só custou um dólar. Usava o chapéu com a pala virada para trás - de um jeito meio ridículo, mas era assim mesmo que eu gostava. Aí apanhei o livro que estava lendo e sentei na minha poltrona. Havia duas poltronas em cada quarto. Eu tinha uma e meu colega de quarto, Ward Stradlater, tinha outra. Os braços estavam em petição de miséria, porque todo mundo sentava sempre em cima deles, mas eram umas poltronas um bocado confortáveis.
Estava lendo um livro que tinha apanhado por engano na biblioteca. Me deram o livro errado e só notei quando já estava de volta no quarto. Haviam me dado Fora da África, de Isak Dinesen. Pensei que ia ser uma droga, mas não era não. Até que era um livro muito bom. Sou bastante ignorante, mas leio um bocado. Meu autor preferido é meu irmão D.B. e, em segundo lugar, Ring Lardner. Meu irmão me deu um livro do Ring Lardner no meu aniversário, antes de eu ir para o Pencey. Tinha uma porção de peças malucas, engraçadas pra burro, e um conto sobre um guarda de trânsito que se apaixona por uma garota muito bonita, que dirigia sempre em excesso de velocidade. Só que o guarda era casado, e por isso não podia casar com ela nem nada. Aí a garota acaba morrendo, porque dirigia sempre em excesso de velocidade. Achei essa estória infernal. O que eu gosto mesmo é de um livro que seja engraçado, pelo menos de vez em quando. Li uma porção de livros clássicos, como A Volta do Nativo, e tudo, e gostei deles; li também vários livros de guerra e de mistério, mas nenhum desses me deixou maluco. Bom mesmo é o livro que quando a gente acaba de ler fica querendo ser um grande amigo do autor, para se poder telefonar para ele toda vez que der vontade. Mas isso é raro de acontecer. Eu até que gostaria de telefonar para esse tal de Ring Lardner, só que o D. B. me disse que ele já morreu. Mas, por exemplo, esse livro do Somerset Maugham, A Servidão Humana, que li no verão passado. É um livro bom pra chuchu e tudo, mas não me dá vontade de telefonar para o Somerset Maugham. Sei lá. Não é o tipo de sujeito que a gente tenha vontade de telefonar para ele, essa é que é a verdade. Preferiria telefonar para o Thomas Hardy. Gosto muito da tal de Eustacia Vye.
Seja lá como for, pus meu chapéu novo na cabeça, sentei e comecei a ler o tal do Fora da África. Não tinha lido nem umas três páginas quando ouvi alguém atravessando as cortinas do chuveiro. Mesmo sem olhar já sabia quem era. Era o Robert Ackley, que morava no quarto ao lado do meu. Na nossa ala havia um chuveiro entre cada dois quartos, e o tal do Ackley encarnava em mim umas oitenta e cinco vezes por dia. Era provavelmente o único cara em todo o dormitório, além de mim, que não estava vendo o jogo. Ele quase nunca ia a lugar nenhum. Era um sujeito um bocado esquisito. Já estava no último ano, tinha feito o curso inteiro lá mesmo no Pencey, mas todo mundo só chamava ele de Ackley. Nem mesmo o Herb Gale, seu companheiro de quarto, chamava ele de Bob ou mesmo Ack. Se é que algum dia ele vai se casar, aposto que a mulher dele também vai chamá-lo de Ackley. Era um desses camaradas altos pra burro, de ombros largos - devia ter um metro e oitenta e sete - com uns dentes podres. O tempo todo que morou no quarto ao lado do meu, não o vi escovar os dentes nem uma única vez. Os dentes dele estavam sempre meio esverdeados, parecia até que já tinham criado musgo, e dava nojo vê-lo no refeitório, com a boca cheia de purê de batatas, ervilha ou coisa que o valha. Além disso, tinha um bocado de espinhas. Não era só na testa ou no queixo, como a maioria dos sujeitos, mas pela cara toda. E não era só isso, tinha um gênio dos diabos, o tipo do indivíduo desagradável. Confesso que não ia lá muito com as fuças dele
Podia sentir que ele estava em pé, na borda do chuveiro, bem detrás da minha poltrona, dando uma olhada para ver se o Stradlater andava por perto. Ackley não topava o Stradlater, e nunca entrava no quarto com ele por lá. No duro mesmo, acho que o safado não topava era ninguém.
Desceu da borda do chuveiro e entrou no quarto. - Oba - disse. Ele sempre dizia isso como se estivesse terrivelmente chateado ou terrivelmente cansado. Não queria que os outros pensassem que ele estava fazendo uma visita, ou coisa parecida; queria que a gente imaginasse que ele tinha entrado por engano!
- Oba - respondi, mas nem levantei a cabeça do livro. Com um sujeito como o Ackley, a gente estava perdido se levantasse a cabeça do livro. Estaria perdido de qualquer jeito, mas não tão depressa como se houvesse logo olhado para ele.
Começou a zanzar pelo quarto, devagarinho e tudo, como sempre fazia, mexendo nos objetos pessoais da gente que estivessem por cima das escrivaninhas ou das mesas. Estava sempre apanhando um objeto pessoal de alguém para dar uma olhada. Puxa, tinha horas que botava a gente nervoso.
- Como é que foi a competição de esgrima? - perguntou. Mas era só para me obrigar a parar de ler e deixar de me divertir.
- Ganhamos, ou como é que foi?
- Ninguém ganhou - respondi. Mas sem olhar para ele.
- O quê?
Ele estava sempre obrigando a gente a dizer as coisas duas vezes.
- Isso mesmo. Ninguém ganhou.
Dei uma olhadela para ver o que é que ele estava fazendo na minha escrivaninha. Estava olhando o retrato de uma garota com quem eu costumava sair em Nova York, Sally Hayes. Ele já devia ter apanhado e olhado aquela droga daquele retrato umas cinco mil vezes desde o dia em que o recebi. Quando tinha se fartado de mexer numa coisa, punha sempre de volta no lugar errado. Fazia isso de propósito, evidentemente.
- Ninguém ganhou, não é? Como é que pode?
- Esqueci a droga dos floretes e do equipamento no metrô.
Continuava com a cara enfiada no livro.
- No metrô, essa é boa! Quer dizer que você perdeu tudo?
- Nós tomamos o trem errado e eu tinha que ficar me levantando para olhar a porcaria do mapa na parede.
Chegou para perto de onde eu estava e se postou bem em frente da luz. Aí eu disse: - Puxa, já li essa mesma frase umas vinte vezes desde que você chegou.
Qualquer um teria entendido a indireta, menos o Ackley. Menos ele.
- E você acha que vão te fazer pagar o equipamento? - perguntou.
- Sei lá, e estou pouco ligando. Que tal você se sentar ou coisa que o valha, hem, meu menino? Você está bem na frente da minha luz.
Ficava possesso quando alguém o chamava de menino. Estava sempre dizendo que eu era criança, porque eu tinha dezesseis anos e ele dezoito. Ficava maluco quando eu o chamava de meu menino.
Nem com isso saiu do lugar. Era exatamente o tipo do sujeito que não sai da frente da luz se a gente pedir. Depois de algum tempo acabava saindo, mas sempre demorava mais um pouco se a gente tivesse pedido a ele para sair
- O que é que você está lendo?
- Uma droga dum livro.
Deu um empurrão no livro para ver o título e perguntou:
- Como é? Vale alguma coisa?
- Essa frase que eu estou lendo é genial.
Às vezes, quando me dá vontade, consigo ser um bocado sarcástico. Mas ele nem entendeu a ironia. Começou a andar outra vez pelo quarto, mexendo em todos os meus objetos pessoais e do Stradlater. Afinal, pus meu livro no chão. Ninguém consegue ler mais nada com um sujeito como o Ackley por perto. É totalmente impossível. Deixei o corpo escorregar até lá em baixo da poltrona, e fiquei olhando o sacana do Ackley se pondo à vontade, como se estivesse em casa. Estava começando a me sentir um pouco cansado da viagem a Nova York e tudo, e comecei a bocejar. Aí comecei a bancar o maluco pra fazer hora. De vez em quando eu banco o maluco uma porção de tempo, só para não ficar chateado. O que fiz foi puxar a pala do meu chapéu para a frente e dobrar para baixo, tapando os olhos. desse jeito não conseguia ver porcaria nenhuma.
- Acho que estou ficando cego - eu disse, numa voz rouca pra chuchu. - Mãezinha querida, está ficando tudo tão escuro aqui.
- Juro que você é maluco - disse o Ackley.
- Mãezinha querida, me dá a tua mão. Por que é que você não me dá a tua mão?
- Oh, por favor. Vê se cresce, tá?
Comecei a tatear na minha frente, como se fosse cego, mas sem me levantar nem nada. - Mãezinha querida, por que é que você não me dá a tua mão? - continuei dizendo, mas estava só bancando o maluco, naturalmente. Às vezes um negócio desses me diverte um bocado, e além disso eu sabia que o Ackley ficava danado com a brincadeira. Ele sempre despertava em mim uma ponta de sadismo. De vez em quando eu era um bocado sádico com ele. Acabei parando. Puxei a pala de volta para trás e sosseguei.
- De quem é isso? - Ackley perguntou. Estava me mostrando a joelheira do meu companheiro de quarto. O sacaneta do Ackley mexia em qualquer troço. Era até capaz de apanhar a culhoneira da gente, ou qualquer outra coisa. Disse que era do Stradlater e ele aí jogou a joelheira em cima da cama dele. Tinha apanhado em cima da escrivaninha, por isso é que jogava em cima da cama.
Aproximou-se e sentou no braço da poltrona do Stradlater. Nunca sentava numa poltrona, tinha que ser sempre no braço da poltrona.
- Onde é que você arranjou esse chapéu?
- Em Nova York.
- Quanto foi?
- Um dólar.
- Então você foi roubado.
Começou a limpar a droga das unhas com a ponta de um fósforo. Estava sempre limpando as unhas. De certo modo, era até engraçado. Os dentes dele estavam sempre esverdeados de sujeira, as orelhas eram uma imundície, mas ele não passava um dia sem limpar as unhas. Acho que pensava que isso o tornava um sujeito muito limpo. Deu outra olhadela para meu chapéu enquanto limpava as unhas.
- Lá onde eu moro a gente usa esse tipo de chapéu para caçar veado, por Deus do céu. Esse chapéu só serve para caçar veado.
- Nada disso.
Tirei o chapéu e olhei para ele, com um dos olhos meio fechado, como se estivesse fazendo mira.
- Esse chapéu aqui é para caçar gente. Eu uso ele para caçar gente.
- Teu pessoal já sabe que você levou bomba?
- Neca.
- Onde é que se meteu o Stradlater, afinal de contas?
- Está lá no jogo. Arranjou uma guria.
Bocejei outra vez, não parava mais de bocejar. Também, o quarto estava estupidamente quente, dava um sono danado na gente. No Pencey, ou a gente morria gelado ou derretia de tanto calor.
- O grande Stradlater - disse o Ackley.
- Êi, me empresta tua tesourinha um minuto? Ela está à mão?
- Não, já botei na mala, e a mala está lá em cima do armário.
- Apanha ela um instante, tá bom? Tem um fiapo de pele aqui que eu quero cortar.
Para ele não fazia diferença se a gente tivesse posto um troço na mala e tivesse que ir apanhar em cima do armário. Mas fui pegar a tesourinha, assim mesmo, e quase morri por causa disso. Na hora em que abri a porta do armário, a raquete de tênis do Stradlater - com a guarnição de madeira e tudo - caiu bem na minha cabeça. Fez um barulho tremendo e doeu pra chuchu. Me deu vontade de esganar o filho da mãe do Ackley. Ele deu uma gargalhada que mais parecia um cacarejo e ficou se esbaldando o tempo todo, enquanto eu apanhava a mala e tirava a tesourinha para dar a ele. Bastava acontecer uma coisa dessas - um sujeito levar uma pedrada na cabeça ou coisa que o valha - que o Ackley se mijava de tanto rir.
- Você tem um senso de humor fenomenal, meu menino. Sabe disso? - fui falando enquanto entregava a tesourinha a ele. Deixa eu ser teu empresário, te arranjo um contrato para você trabalhar no rádio.
Sentei de novo na minha poltrona, e ele começou a cortar aquelas unhas que mais pareciam uns cascos.
- Que tal você usar a mesa, hem? Vê se corta essa porcaria dessas unhas em cima da mesa, tá? Não tenho a mínima vontade de andar hoje de noite por cima do resto das tuas unhas.
Nem deu bola, continuou cortando as unhas e deixando as aparas cair no chão. Vai ser mal-educado assim no inferno.
- Quem é a namorada do Stradlater? - perguntou.
Ele estava sempre querendo saber com quem o Stradlater saía, embora não fosse com a cara dele.
- Sei lá. Por quê?
- Por nada. Rapaz, eu não suporto aquele filho da puta. Se há um filho da puta que eu não suporto, é ele.
- Pois ele te adora. Me disse que te acha um príncipe.
Tenho a mania de chamar os outros de príncipes, quando me dá vontade de aporrinhar o sujeito. Só para não ficar chateado nem nada.
- Ele está o tempo todo com aquela atitude superior - continuou o Ackley. - Não topo aquele filho da puta. Parece até que ele...
- Você se importa de cortar as unhas em cima da mesa, hem? Já te pedi umas cinqüenta vezes...
- Está sempre com aquele ar superior. Nem acho o sacana inteligente. Ele pensa que é. Acho ele o maior...
- Ackley! Que merda! Quer fazer o favor de cortar a porcaria das tuas unhas em cima da mesa? Merda, já te pedi umas cinquenta vezes...
Só para variar ele começou a cortar as unhas em cima da mesa. A única maneira dele fazer alguma coisa era berrando com ele. Fiquei olhando para ele algum tempo e aí disse:
- Você tá danado com o Stradlater porque ele falou aquele negócio que você devia escovar os dentes de vez em quando. Ele não queria te ofender quando disse aquilo. Ele bem que podia ter falado de outro jeito e tudo, mas não estava querendo te ofender. O que ele queria dizer é que você ficaria com uma aparência melhor, e se sentiria melhor, se desse uma escovada nos dentes de vez em quando.
- Eu escovo os dentes. Não me vem com essa.
- Escova nada. Tenho reparado e sei que você não escova.
Não disse isso de maneira a magoá-lo, até que sentia pena dele, de certo modo. Claro que não é agradável alguém dizer à gente que se deve escovar os dentes.
- O Stradlater não é má pessoa. O caso é que você não conhece ele direito.
- Continuo achando que ele é um filho da puta. Um filho da puta metido a besta.
- Metido a besta ele é, mas em algumas coisas é um bocado generoso. No duro. Olha, se ele estiver usando uma gravata e a gente disser que gosta dela, por exemplo... Digamos que ele esteja usando uma gravata que você achou um bocado bonita. Sabe o que ele faria? Provavelmente tirava do pescoço e dava para você. Dava mesmo. Ou sabe o que ele podia fazer também? Deixava a gravata em cima da tua cama ou coisa parecida. Mas dava a droga da gravata. A maioria dos sujeitos provavelmente...
- Ora, com o dinheiro que ele tem, até eu dava.
- Dava nada - falei, sacudindo a cabeça. - Dava coisa nenhuma, meu menino. Se você tivesse o dinheiro que ele tem, você seria um dos maiores...
- Para de me chamar de meu menino. Que merda! Com a idade que eu tenho podia ser a porcaria do teu pai.
- Não, não podia não.
Puxa, às vezes ele era mesmo insuportável. Não perdia uma chance de repetir que a gente tinha dezesseis anos e ele dezoito.
- Em primeiro lugar, eu não deixaria você fazer parte da droga da minha família.
- Bom, então para de me chamar...
De repente a porta se abriu e o Stradlater entrou pelo quarto a dentro, com uma pressa danada. Estava sempre com uma pressa danada. Tudo para ele era uma maravilha. Chegou para perto de mim e me deu um tapinha amigável em cada face - coisa que às vezes consegue ser um bocado aporrinhativa.
- Escuta - disse - você vai a algum lugar especial hoje à noite?
- Não sei. Talvez. Está nevando lá fora?
O casaco dele estava coberto de neve.
- Tá sim. Escuta, se você não vai a nenhum lugar especial, que tal me emprestar teu paletó novo?
- Quem ganhou o jogo? - perguntei.
- Está na metade ainda, mas nós vamos sair. Sem brincadeira, você vai usar teu casaco novo ou não? Meu paletó de flanela cinza está todo borrado.
- Não vou usar não, mas você vai alargar o casaco todo com a droga dos teus ombros.
Nós éramos praticamente da mesma altura, mas ele pesava umas duas vezes mais do que eu. E tinha uns ombros larguíssimos
-Não alargo não.
Correu para o armário e disse: - Como vai, Ackley?
Ele era, pelo menos, um sujeito um bocado simpático. Quase sempre era uma simpatia meio fingida, mas pelo menos ele cumprimentava o Ackley e tudo.
Ackley, em resposta, deu uma espécie de grunhido. Responder ele não respondia, mas também não tinha coragem para deixar de, pelo menos, soltar um grunhido. Para mim ele disse: - Acho que vou indo. Te vejo mais tarde.
- Tá bem - respondi. Ackley nunca deixava saudade quando tratava de voltar para o quarto dele. Stradlater começou a tirar o paletó, a gravata e tudo.
- Acho que é melhor eu fazer uma barba rápida - disse. Ele tinha uma barba um bocado cerrada.
- Onde é que você deixou tua namorada?
- Está me esperando no Anexo.
Saiu do quarto levando o aparelho de barbear e uma toalha em baixo do braço, sem camisa nem nada. Andava sempre nu da cintura para cima, porque achava que tinha um físico fabuloso. E tinha mesmo, isso eu não posso negar.
continua na página 12...
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Leia também:
O Apanhador no Campo de Centeio - 1: Se querem mesmo ouvir
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