quinta-feira, 16 de fevereiro de 2023

Dostoiévski - O Idiota: Primeira Parte (13) - Muito desajeitado

O Idiota



Fiódor Dostoiévski


Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira


Primeira Parte


13.


Muito desajeitado, lá subiu ele, fazendo o que pôde para ganhar coragem. "O pior que pode acontecer é ela recusar-se a receber-me e pensar mal de mim! Ou me mandar entrar só para se rir na minha cara... Ora, não faz mal”. E de fato a perspectiva não o alarmou muito; mas quanto à pergunta “que ia ele fazer e por que ia lá”, não pôde encontrar resposta satisfatória. Muito dificilmente calharia a única eventualidade boa, isto é, arranjar um ensejo de poder dizer a Nastassia Filippovna: “Não case com esse homem, não faça a sua própria destruição. Ele não a ama, é o seu dinheiro que ele ama, já me confessou; e Agláia Epantchiná também me disse e vim expressamente para a avisar". Havia uma outra pergunta sem resposta, diante dele, e tão vital que Míchkin temia sequer considerá-la; não poderia, não ousaria, não admitiria. Não saberia como formulá-la. Só o pensamento o fazia corar e tremer. Mas, a despeito de todas essas dúvidas e apreensões, acabou entrando e perguntando por Nastássia Filíppovna.

Ela vivia em um apartamento realmente magnífico, embora não muito grande. Datava isso do começo dos seus cinco anos de Petersburgo, quando Afanássii Ivánovitch fora pródigo em gastos para com ela. Naqueles dias ele ainda tinha esperanças no seu amor e sonhara tentá-la principalmente com o luxo e o conforto, pois sabia quão facilmente se adquirem tais hábitos e quão dificilmente depois eles nos abandonam, quando já o luxo se tornou indispensável. A esse respeito Tótskii abraçou a velha tradição, sem modificá-la em nada, pois tinha um ilimitado respeito pela força suprema do apelo dos sentidos.

Nastássia Filíppovna não recusou o luxo - gostava disso com efeito - mas, por mais estranho que pareça, não era absolutamente uma escrava do luxo: via-se logo que poderia passar sem ele a qualquer momento: dera-se mesmo ao trabalho de dizer isso várias vezes, o que causava uma desagradável impressão em Tótskii. Mas não era só. Mais coisas havia em Nastássia Filíppovna que desagradavam a Tótskii e subsequentemente lhe causavam estranheza. A parte a deselegância da classe de gente com a qual ela muitas vezes se juntava e pela qual se sentia atraída ostentava ainda outras propensões bem extravagantes. Mostrava uma espécie de selvagem mistura de gostos opostos, certa propensão para apreciar coisas e meios que mal se suporiam conhecidos por uma pessoa fina e bem-educada.

Realmente, se Nastássia Filíppovna em vez disso demonstrasse, por exemplo, uma elegante e encantadora ignorância do fato de que mulheres do campo não estavam em condições de usar as combinações de batiste que ela usava, Afanássi Ivánovitch teria provavelmente ficado em extremo satisfeito. O plano completo de educação de Nastássia Filíppovna fora elaborado desde o começo de modo a conferir com o de Tótskii, que era pessoa sutilíssima à sua maneira. E todavia o produto resultante fora esse, e bem estranho. Mas apesar disso, Nastássia Filíppovna conservara qualquer coisa, que muitas vezes impressionava o próprio Tótskii, por sua extraordinária originalidade, causando-lhe uma espécie de fascínio. E que mesmo ainda no presente o encantava, conquanto já todos os seus primitivos desígnios sobre Nastássia Filíppovna tivessem desmoronado. Veio ao encontro do príncipe uma camareira. (Nastássia Filíppovna só tinha empregadas.) Deu-lhe ele o nome que devia ir anunciar e, com surpresa sua, a rapariga não estranhou e nem demonstrou hesitação à vista de suas botinas sujas, do seu chapéu de abas enormes, da sua capa sem mangas, e do seu ar embaraçado.

Segurou-lhe a capa, disse-lhe que aguardasse na sala de espera e foi logo anunciá-lo.

O grupo dessa noite, em casa de Nastássia Filíppovna, consistia do círculo que sempre estava à sua volta. Os convidados eram em pequeno número, com efeito, comparando com as recepções em idêntica data natalícia nos anos passados. Em primeiro lugar, estavam presentes Afanássii Ivánovitch Tótskii e Iván Fiódorovitch Epantchín. Ambos muito amistosos, mas intimamente entregues a sua mal disfarçada apreensão quanto à prometida declaração referente a Gánia. Este, naturalmente, lá estava também, e bem preocupado e soturno, com um feitio quase rude, desde o começo, afastado para um canto, e sem falar.

Não se arriscara a trazer Vária e nem Nastássia Filíppovna fizera qualquer referência a ela; mas logo que cumprimentara Gánia ao recebê-lo, aludira à cena com o príncipe. O General Epantchín, que ignorava o incidente, ficou muito curioso. Então Gánia, secamente e com certa reserva, mas perfeitamente franco, contou o que se passara aquela tarde e como depois se dirigira ao príncipe para lhe pedir desculpas.

Veementemente exprimiu a sua opinião de que era estranho e arbitrário chamar o príncipe de “idiota”, e que pensava dele o oposto - um homem que sabia, de fato, muito bem, o que valia. Ouviu-o Nastássia Filíppovna, nessa asseveração, muito atenta. Observando-o com curiosidade, mas a conversa passou imediatamente para o nome de Rogójin como figura principal da cena em casa de Gánia, que Tótskii e Epantchín estavam também interessadíssimos em ouvir. Ptítsin era a pessoa que mais conhecia Rogójin e tinha estado com ele, ocupado e a seu serviço, até às nove horas dessa noite.

Rogójin insistira em obter, nesse dia mesmo, cem mil rublos. “É verdade que estava bêbado”, ponderou Ptítsin, “mas, por mais difícil que pareça, garanto que arranjou os cem mil. Só não sei se será para hoje e se será todo o dinheiro. Uma porção de gente está trabalhando para ele - Kinder, Trepálov, Biskúp. Não se importou com os juros a pagar, bêbado como estava e no entusiasmo ainda tão recente da fortuna.” Toda essa informação foi recebida com interesse, embora parecendo ter deprimido alguém.

Nastássia Filíppovna ficou calada, obviamente não querendo emitir opinião. Gánia, esse então, estava mudo. O mais secretamente preocupado de todos era Epantchín. As pérolas com que a havia presenteado aquela manhã tinham sido aceitas com uma quase fria polidez, e mesmo uma sombra de escárnio. De todo o grupo, Ferdichtchénko era o único de ânimo adequado ao dia festivo. Ria, às vezes, alto, sem nenhum motivo, simplesmente porque escolhera o papel de truão. O próprio Tótskii (que tinha a reputação de talentoso narrador de casos, e que de hábito, em tais reuniões, era quem dirigia a conversação), estava evidentemente fora de humor e de má vontade, o que não era natural nele. Os demais convidados, em pequeno número, eram não só incapazes de uma conversa viva, mas positivamente incapazes, geralmente, de dizer qualquer coisa. Um velho professor fora convidado, sabe Deus por quê. Havia ainda um moço desconhecido e pavorosamente acanhado, que durante a recepção se mantinha integralmente mudo; uma senhora espaventada, quarentona. decerto alguma atriz; e uma jovem muito formosa, demasiado bem vestida mas extraordinariamente apática. A aparição do príncipe. por conseguinte, foi recebida com positivo agrado. O seu nome produziu surpresa e certos sorrisos extravagantes, especialmente quando o ar de espanto de Nastássia Filíppovna demonstrou que não o tinha convidado. Mas, logo depois do primeiro instante de pasmo, mostrou tanto prazer, que a maioria do grupo prontamente se preparou para ir alegre ao encontro do inesperado visitante.

- Conquanto seja inocência dele - observou Iván Fiódorovitch Epantchín - e mesmo seja perigoso encorajar tais tendências. Bem dizer não há nada de mal que se lhe tenha encasquetado na cabeça aparecer, e de maneira tão original. Talvez venha a distrair-nos e até mais do que seria esperar dele.

- Especialmente tendo-se convidado a si mesmo - desfechou logo, Ferdichtchénko.

- E que há de mais nisso? - perguntou o general secamente.

Ele detestava Ferdichtchénko.

- Que há? Acho que deve pagar entrada! - explicou este último.

- Ora, vamos e venhamos, o Príncipe Míchkin não é Ferdichtchénko - disse o general sem poder resistir mais. Nunca se perdoaria a si mesmo estar no mesmo pé de igualdade com Ferdichtchénko, ao seu lado, em uma recepção.

- Pelo amor de Deus, general, poupe Ferdichtchénko - replicou este sorrindo amarelo.

- Eu me acho aqui em uma situação muito especial.

- Situação especial por quê?

- Já da última vez tive a honra de explicar exatamente isso à assistência, mas não deixarei de o repetir agora a Vossa Excelência. Vê Vossa Excelência, todos são espirituosos, ao passo que eu não. A fim de compensar-me disso, obtive permissão para falar a verdade, pois todo o mundo sabe que só quem não tem espírito é que diz verdades. Além disso, sou um homem muito vingativo e eis por que não sou espirituoso. Suporto qualquer insulto, mas somente até que o meu antagonista se dane; logo, porém, que ele se arruína, volto aos meus apontamentos de memória e me vingo, seja lá como for. “Dou o meu pontapé”, como disse Iván Petróvitch Ptítsin que, por sua vez, não dá pontapés em ninguém. Conhecerá Vossa Excelência a fábula de Krilóv, O Leão e o Asno? Ora, bem. Trata-se do senhor e de mim: foi escrita para nós.

- Já está a dizer mais disparates, julgo eu, Ferdichtchénko, retrucou o general, esquentando-se.

- Como, Excelência? - retorquiu Ferdichtchénko que se apurara em responder com acerto, prolongando assim os seus despautérios - Não se preocupe, Excelência, conheço o meu lugar. Se digo: “O senhor e eu somos o leão e o asno da fábula de Krilóv”, naturalmente que tomo para mim a parte do asno, e Vossa Excelência fica sendo o leão, como na fábula de Krilóv:

Trôpego e velho, o ex-rei dos animais
Perdera a sua antiga força

- Eu, Excelência, sou o asno.

- Lá com isso concordo plenamente - soltou o general, sem tomar as suas precauções.

Tudo isso era muito grosseiro e intencional, sendo coisa mais do que aceita que Ferdichtchénko, onde estivesse, conseguia sempre se apresentar como maluco.

- Aqui apenas me recebem, e me deixam estar, sob a condição de que eu só fale deste modo - explicara ele certa vez. - E de fato, a não ser assim, poderia uma pessoa como eu ser recebida? Claro que não. Poderia uma pessoa como eu estar ao lado de um gentleman como Afanássii Ivánovitch? Tal fato nos conduz à única explicação cabível: que só toleram isso justamente por ser inconcebível.

Mas, se era grosseiro, também era ferino, muito ferino, e Nastássia Filíppovna parecia gostar disso. Os que a queriam visitar tinham de acomodar seus espíritos de modo a suportar Ferdichtchénko. Talvez ele já tivesse adivinhado a verdade, isto é, que era recebido ali porque a sua presença se tornara, desde o começo, insuportável a Tótskii. Gánia também sofria indizível agonia nas mãos dele; e a tal propósito Ferdichtchénko era capaz, realmente, de vir a ser uma necessidade para Nastássia Filíppovna.

- O príncipe vai começar, cantando-nos uma ária muito em voga – concluiu Ferdichtchénko, olhando logo para Nastássia Filíppovna, a ver o que ela diria. E então, secamente, ela lhe observou:

- Tenha a bondade, Ferdichtchénko, de dominar seus pruridos!

- Ah! Bem, se ele está sob a sua especial proteção, também eu serei indulgente.

Mas Nastássia Filíppovna se levantou, como se não tivesse escutado e foi encontrar-se com o príncipe.

- Estou envergonhadíssima - disse inesperadamente, surgindo diante dele - por me ter esquecido de convidar o senhor, esta tarde; mas me sinto muito honrada e satisfeita em o senhor me dar ensejo de lhe agradecer e lhe poder assegurar quanto fez bem em ter vindo.

À medida que falava, encarava o príncipe com a maior atenção tentando descobrir a explicação da sua vinda.

O príncipe deveria, decerto, responder qualquer coisa a estas palavras amistosas: mas estava tão zonzo e atrapalhado que não pôde articular palavra: atitude essa que Nastássia Filíppovna percebeu com satisfação. Nessa noite usava ela vestido de soirée e o seu porte era impressionante. Segurou-lhe a mão e o introduziu na sala. Mas, à porta, o príncipe parou, de repente, e balbuciou apressadamente, com extraordinária emoção:

- Tudo em vós é perfeito... mesmo o serdes delgada e pálida.. Quem gostaria de imaginar-vos de outro modo?... Desde muito desejava vir ver-vos... Peço... perdão!

- Perdão de quê? - sorriu Nastássia Filíppovna. - Isso destruiria todo o encanto e originalidade. Dizem, com efeito, que o senhor é um homem original. Então acha que eu sou uma perfeição! Verdade?

- Verdade!

- Embora seja um adivinhador de primeira ordem, desta vez se enganou. Ainda hei de lembrar-lhe isso hoje...

Apresentou o príncipe aos seus convivas, a metade dos quais já o conhecia. Tótskii logo disse qualquer gentileza. O grupo pareceu reanimar-se, pondo-se todos a falar e a rir. Nastássia Filíppovna fez o príncipe sentar-se ao seu lado.

- Mas convenhamos que é extraordinário o príncipe ter vindo! - exclamou Ferdichtchénko, mais alto do que o diapasão das outras vozes. - E o caso está tão claro que fala por si.

- É claro demais e fala plenamente por si só - atalhou Gánia, que até ali estivera calado

- Estive observando o príncipe, hoje, quase que continuadamente, desde o instante mesmo em que ele viu o retrato de Nastássia Filíppovna, pela primeira vez, esta manhã, na mesa de Iván Fiódorovitch. Lembro-me até, perfeitamente, de que então pressenti qualquer coisa da qual agora estou mais do que convencido e que, aliás, o próprio príncipe acaba de confessar.

Esta longa observação de Gánia foi articulada do modo mais sério possível, sem traço sequer de mínima brincadeira e em tom quase sombrio, soando de modo estranho.

- Não fiz confissão de espécie alguma - replicou o príncipe. corando. - Apenas respondi a uma pergunta.

- Bravo! Bravo! - gritou Ferdichtchénko - reconheçamos que foi sincero; foi inteligente e sincero.

Todos riram alto. Mas Ptítsin retorquiu, aborrecido, em voz baixa

- Não grite, Ferdichtchénko.

- Eu não esperaria nunca por uma tal proeza, príncipe - redarguiu Iván Fiódorovitch.

- Quem haveria de pensar que o senhor fosse um camarada assim? Pois não é que eu apenas o tinha considerado, até aqui, como um filósofo? Ah! O pândego!

- E a julgar pelo modo como o príncipe cora ante uma inocente brincadeira, feito uma jovem ingênua, concluo que, como rapaz honrado que é, alimenta louváveis intenções em seu coração! - quem disse, ou melhor, quem balbuciou isto agora, tão inesperadamente, foi o velho professor, ancião desdentado de mais de setenta anos. Isso então, sim, causou surpresa geral, pois não passara pela cabeça de ninguém que o velho abrisse a boca a noite inteira. Todos riram mais do que antes. O ancião, provavelmente imaginando que estavam rindo da sua sabedoria, desandou a rir mais cordialmente ainda, à medida que olhava os circunstantes, até que acabou tossindo violentamente. Nastássia Fílíppovna, que tinha uma afeição sui generis por esses velhos e velhas extravagantes e principalmente por Iuróvidii, interessou-se logo por ele; foi beijá-lo e mandou que lhe servissem mais chá. Disse depois à criada que apareceu que trouxesse a sua capa, na qual ela se embrulhou. E ordenou que pusesse mais lenha na lareira. Perguntou que horas eram, tendo a criada dito que eram dez e meia.

- Amigos, que tal um champanha? - sugeriu Nastássia Filíppovna inesperadamente. - Mandarei abrir algumas garrafas. Talvez elas vos façam mais espirituosos. É favor porém a cerimônia de lado.

A oferta de bebida, e especialmente de modo tão gentil, partida de Nastássia Filíppovna, causou estranheza, sabido por todos, como era, o rígido protocolo de decoro mantido nas recepções anteriores. Os convidados estavam ficando mais animados, mas não da mesma maneira de sempre. O vinho foi, porém, aceito; primeiro pelo General Epantchín; em segundo lugar pela dama espetaculosa: depois pelo velhote; a seguir por Ferdichtchénko e, afinal, por todos. Tótskii também tomou uma taça, querendo mudar o atual tom da reunião, a ver se lhe dava um caráter expansivo de alegria total. Gánia foi o único que não bebeu.

Depois que Nastássia Filíppovna tomou uma taça de champanha, declarou que aquela noite ainda beberia mais três. Era difícil entender as suas extravagantes e, às vezes, inesperadas maneiras, essas suas risadas histéricas sem motivo, que se alternavam com súbitas depressões taciturnas e silenciosas. Alguns dentre os convidados suspeitaram que fosse febre; até que perceberam, por fim. que ela deveria estar esperando qualquer coisa, pois frequentemente olhava para o relógio, tornando-se impaciente e preocupada. - Acho que estás com uma pontinha de febre - disse-lhe a dama espetaculosa.

- Uma pontinha? Com muita. Foi por isso que me enrolei na minha capa - respondeu-lhe Nastássia Filíppovna, que de fato estava ficando pálida e parecia às vezes combater um violento arrepio.

E como quase todos os convidados sabiam que uma importantíssima decisão estava para ser tomada essa noite, aquelas palavras pareceram-lhes cheias de sentido. Mais uma vez Tótskii e o General Epantchín trocaram olhares. Gánia estremeceu; convulsiva-mente. - Não seria uma bela ideia, se jogássemos qualquer petit jeu? - lembrou a dama espaventada.

- Eu conheço um petit jeu, muito moderno, que é esplêndido - desferiu Ferdichtchénko. - Isto é, moderno! Só o vi jogarem uma vez; e mesmo assim falhou

- Qual é? - perguntou a dama sôfrega.

- No outro dia o nosso grupo estava reunido - tínhamos estado bebendo, a falar verdade – e repentinamente não sei quem fez a sugestão que cada um de nós, sem deixar a mesa, contasse qualquer coisa que tivesse feito, mas que fosse honestamente considerada como a pior de todas as ações más de sua vida. Mas tinha de ser feito honestamente, isso era essencial, tinha de ser verídico, não podia ser mentira.

- Estranha ideia - comentou o general.

- Nada pode ser mais estranho, Excelência. Mas é o que há de melhor

- Ideia ridícula - achou Tótskii. - Mas eu a entendo. É uma espécie de fanfarronada.

- Quem sabe se não é isso que estamos querendo. Afanássii Ivánovitch?

- Mas esse petit jeu tem de ser instalado em pranto e não em risadas - propôs a dama extravagante.

- Isso é impossível e absurdo - comentou Ptítsin.

- Teve êxito? - perguntou Nastássia Filíppovna.

- Qual nada, malogrou. Cada qual certamente contou qualquer coisa: alguns deles falaram a verdade, e, acredite a senhora, alguns até positivamente estavam sentindo prazer. Mas depois todo o mundo ficou envergonhado; não houve meio de se refazerem. No conjunto, porém, esteve engraçado, de certo modo, naturalmente.

- Realmente devia ter sido interessante - observou Nastássia Filíppovna, começando a se entusiasmar. - Experimentemos, senhores! De fato não estamos muito animados. Se cada um de nós consentir em dizer qualquer coisa... conforme o jogo... naturalmente! Por vontade própria. Ninguém é forçado a fazê-lo, hein? Quem sabe se conseguimos? Seja como for será original.

- É uma ideia genial! - disse Ferdichtchénko. - Mas as mulheres ficam excluídas; os homens que comecem. Tiraremos a sorte, como fizemos naquela ocasião. É preciso, é preciso! Se alguém não quiser entrar, não entra. Mas seria pena! Joguem as suas sortes aqui no meu chapéu, senhores; o príncipe misturará. Nada pode ser mais simples. Cada um tem de descrever a coisa pior que fez em sua vida, o que é pasmosamente fácil, senhores! Vão ver! Se alguém se tiver esquecido, incumbo-me de lhe avivar a memória.

A ideia pareceu muito extravagante; quase ninguém gostou. Alguns ficaram carrancudos, outros riam, dissimulando. Houve uns protestos fingidos. Iván Fiódorovitch, por exemplo, não querendo contradizer Nastássia Filíppovna, notara que ela estava atraída por aquela ideia, decerto por ser original e irrealizável.

Nastássia Filíppovna sempre fora teimosa e inconsiderada ao manifestar qualquer desejo, mesmo que se tratasse de um capricho extremado que até a prejudicasse. E parecia estar agora em histerismo, indo vindo, rindo espasmodicamente, de modo violento, principalmente ante os protestos inquietantes de Tótskii. Os seus olhos negros faiscavam e havia um fluxo ético em suas faces pálidas. O ar algo decepcionado e inibido dos seus convivas possivelmente aumentava o seu irônico desejo de fazer aquele jogo.

Talvez fosse cinismo ou a crueldade da ideia que a atraísse. Uma parte do grupo porém, percebeu que havia uma intenção toda especial nesses seus modos. Acabaram concordando. Seria curioso, afinal de contas; para muita gente a perspectiva era tentadora. O mais excitado de todos era Ferdichtchénko.

- E se houver qualquer coisa que não possa ser dita diante de senhoras? - comentou timidamente o jovem taciturno.

- Ora, não será preciso contar essa. Haverá muitas outras ações imorais, além dessa! - respondeu-lhe Ferdichtchénko.

-Ah! Essa gente moça!

- E como hei de eu saber qual das minhas ações é a pior? titubeou a dama espaventada.

- Ficam as damas isentas dessa obrigação - repetiu Ferdichtchénko. - Mas apenas da obrigação: seja o que for que nasça de suas inspirações, será acolhido com gratidão! Os homens ficam, outrossim, isentos, se fizerem muita questão.

- Onde está a prova de que não estarei mentindo? - inquiriu Gánia. - E se minto, lá se vai o essencial do jogo! E como saber que ninguém está mentindo?

- Com certeza é o que se vai dar. Ora, pois até será uma coisa fascinadora ver que espécie de mentiras pode um homem pregar! Não há propriamente perigo algum em você contar mentiras, Gánia, visto nós todos sabermos a sua pior ação qual seja.

- E calculem agora, senhores - exclamou Ferdichtchénko em súbita inspiração - pensem apenas com que olhos nós nos olharemos uns para os outros amanhã, por exemplo, depois que tivermos contado nossos casos!

- Mas é isso possível? Você realmente está falando sério, Nastássia Filíppovna? - indagou Tótskii, com dignidade ofendida.

- Se está com medo dos lobos, não entre na floresta! - observou Nastássia Filíppovna, desdenhosamente.

- Deixe que lhe pergunte, Ferdichtchénko, que espécie de petit jeu pode uma pessoa achar nisso? - prosseguiu Tótskii cada vez mais inquieto. - Garanto- lhe que tais coisas redundam em fiasco. Você, por exemplo, já disse que não deu certo, aquela vez.

- Sim, sucesso nenhum. Ora, pois, se eu apenas achei que a minha pior ação foi ter roubado três rublos! Foi a única coisa que lhes pespeguei!

- Ouso dizer: suponho que não houve possibilidade de você dizer isso a ponto de parecer verdadeiro e nem creio que tivessem acreditado! Gavríl Ardaliónovitch acabou de fazer ressaltar que a menor desconfiança de falsidade estragaria todo o jogo. Contar a verdade só é possível por acidente, através de uma especial ostentação, aliás de péssimo gosto! E inconcebível e totalmente impróprio nesta sala.

- Mas que pessoa sutil é o senhor, Afanássii Ivánovitch! -exclamou Ferdichtchénko.

- Positivamente, me surpreende! Ora, calculem, senhores meus: observando, como observou, que não consegui contar a história do meu furto de maneira a fazê-la parecer verdadeira. Afanássii Ivánovitch dá a entender que suspeita, e da forma mais sutil, que eu não teria furtado, realmente (pois não seria gentil dizer alto o que ele pensa), e todavia, em seu íntimo, ele está convencido de que Ferdichtchénko pode muito bem ser gatuno. Mas vamos ao caso, senhores, vamos ao jogo! As sortes já foram ajuntadas e ponha também a sua aqui, Afanássii Ivánovitch, para que não haja quem se tenha recusado. Príncipe, sacuda! E tire! Sem uma palavra o príncipe meteu a mão dentro do chapéu e o primeiro nome que tirou foi o de Ferdichtchénko, o segundo o de Ptítsin, o terceiro o do General Epantchín, o quarto o de Tótskii, o quinto o dele mesmo, o sexto o de Gánia, e assim por diante. As senhoras não tinham entrado nisso.

- Bom Deus, que calamidade! - exclamou Ferdichtchénko. - E eu que pensava que o primeiro fosse o príncipe e depois o general. Mas, graças a Deus, ainda bem que depois de mim vem Iván Petróvitch e serei compensado. Bem, senhores, preciso, naturalmente, dar um bom exemplo; mas o que mais lamento, de tudo, neste momento, é que eu não seja uma pessoa de categoria, distinguida por qualquer cargo - e nem mesmo de uma classe hierárquica decente. Que interesse poderá haver para vós, que Ferdichtchénko tenha cometido algo de hediondo? E qual será a minha pior ação? Aqui há um embarras de richesse. Devo confessar o mesmo furto da outra vez, para convencer Afanássii Ivánovitch de que se pode furtar sem ser ladrão?

- E também está me convencendo, Sr. Ferdichtchénko, de que é possível ter prazer, e até mesmo festejar a descrição de uma ação imunda, por vontade própria. Mas... peço desculpas, Sr. Ferdichtchénko.

- Comece logo, Ferdichtchénko, você está maçando demais Comece logo de uma vez! - insistiu Nastássia Filíppovna com irritada impaciência. Todo o mundo já notara que depois de sua risada histérica ficara repentinamente mal-humorada, irritável, pouco cortês, teimando em seu selvagem capricho, com ar imperioso. Afanássii Ivánovitch sentia-se horrivelmente afrontado. Estava também furioso com Iván Fiódorovitch que dera para bebericar champanha, como se mais nada o afetasse. Pensando talvez o que contaria, quando a sua vez chegasse.



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