terça-feira, 21 de março de 2023

O Apanhador no Campo de Centeio - 4: Não tinha nada de especial

O Apanhador no Campo de Centeio

J.D. Salinger

4


Não tinha nada de especial para fazer, por isso acompanhei o Stradlater até o banheiro, para bater papo enquanto ele fazia a barba. Éramos as únicas pessoas no banheiro, porque todo mundo ainda estava no jogo. Estava quente como o diabo, as janelas todas embaciadas. Havia umas dez pias, encostadas na parede. Stradlater ocupava a do centro; sentei numa, ao lado dele, e comecei a abrir e fechar a torneira de água fria - um hábito nervoso que eu tenho. Stradlater assoviava a "Canção da Índia" enquanto fazia a barba. Tinha um desses assobios agudos pra chuchu, que praticamente não estão nunca afinados, e escolhia sempre uma dessas músicas difíceis até para um bom assobiador, como a "Canção da Índia", ou "Assassinato na Décima Avenida". Era realmente capaz de esculhambar qualquer música.  
Há pouco eu disse que o Ackley era um porcalhão nos seus hábitos pessoais. Pois bem, o Stradlater também era, embora de um modo diferente. Stradlater era mais um desleixado secreto. Estava sempre com uma aparência de limpeza, mas se a gente fosse ver o aparelho de barbear que ele usava... Estava sempre enferrujado pra diabo, cheio de sabão e fiapos de barba, uma imundície. Ele nunca limpava aquilo. Quando acabava de se aprontar, ele parecia sempre muito asseado, mas para quem o conhecia como eu, era mesmo um porcalhão secreto. E a única razão por que se emperiquitava todo era porque estava perdidamente apaixonado por si próprio. Pensava que era o sujeito mais bonito do Hemisfério Ocidental. De fato, era bonitão, isso eu admito. Mas era mais o tipo de sujeito bonito que, se os pais da gente vissem o retrato dele no Álbum do Colégio, perguntariam logo "Quem é esse rapaz?" Em outras palavras, ele era mais o bonitão tipo Álbum de Colégio. Eu conhecia uma porção de sujeitos no Pencey mais bonitos que o Stradlater, mas eles não ficariam bonitos no Álbum do Colégio. Ia parecer que eles tinham nariz grande ou orelhas de abano. Já tive essas experiências muitas vezes.  
De qualquer maneira, lá estava eu, sentado na pia ao lado de onde o Stradlater se barbeava, abrindo e fechando a torneira sem parar. Estava ainda com o chapéu de caça vermelho na cabeça, a aba virada para trás e tudo. Eu vibrava mesmo com aquele chapéu. 

- Êi - disse Stradlater - quer me fazer um grande favor? 

 - Que favor? - respondi. Sem muito entusiasmo. Ele estava sempre pedindo à gente para lhe fazer um grande favor. Basta um sujeito ser bonitão, ou pensar que é o cara mais bacana do mundo, e está sempre pedindo aos outros que lhe façam um grande favor. Só porque eles se acham fabulosos, pensam que todo mundo também os acha fabulosos, e que a gente está doido para fazer-lhes um favor. De certo modo, até que é engraçado. 

 - Você vai sair hoje de noite? - perguntou. 

 - Talvez sim, talvez não. Sei lá. Por quê? 

 - Eu tenho que ler ainda umas cem páginas para a aula de História na segunda-feira. Que tal você escrever uma redação para mim? Vou me estrepar todo se não entregar a redação na segunda-feira. Como é, topa?

Era mesmo um bocado irônico, no duro.

- Eu é que vou ser expulso dessa merda desse colégio, e você é que me pede para escrever uma porcaria duma redação. 

 - É, eu sei. Mas o negócio é que vou me danar todo se não entregar o troço. Você é meu chapa e não vai me deixar na mão, não é?

Não respondi logo. Um pouco de suspense é bom para um filho da mãe como o Stradlater. 

- Sobre o que é? - perguntei. 

- Qualquer coisa. Qualquer coisa descritiva. Um quarto, uma casa, um lugar em que você viveu ou coisa que o valha, você sabe. O importante é ser descritivo pra chuchu -. Deu um baita dum bocejo enquanto falava. Isso é o tipo da coisa que me deixa aporrinhado. Um sujeito bocejar bem na hora que está pedindo à gente um grande favor. - Só não quero que você faça um troço muito caprichado - continuou.
- Esse filho da puta desse Hartzell acha você o máximo em Inglês e sabe que você é meu companheiro de quarto. Por isso, vê lá se você vai botar todas as vírgulas no lugar e tudo. 

Isso é outro negócio que me aporrinha um bocado. A gente escrever bem e o sujeito começar a falar em vírgulas. Era o que o Stradlater estava fazendo. Queria que se pensasse que as redações dele eram umas drogas só porque botava todas as vírgulas no lugar errado. Nisso ele era um pouco como o Ackley. Uma vez sentei ao lado do Ackley num jogo de basquete. Nós tínhamos um sujeito infernal no time, o Howie Coyle, que encestava lá do meio do campo sem a bola tocar na tabela nem nada. Ackley passou a droga do jogo todo dizendo que o Coyle tinha um corpo perfeito para jogar basquete. Puxa, que raiva que eu tenho disso. 
Acabei me cansando de ficar sentado naquela pia, e aí me levantei e comecei a sapatear, só de farra. Não sei sapatear nem nada, mas o piso do banheiro era de pedra e por isso dava um som perfeito. Comecei a imitar um desses sujeitos do cinema, num desses musicais. Odeio o cinema como se fosse um veneno, mas me divirto imitando os filmes. O Stradlater me olhava pelo espelho, enquanto se barbeava. Tudo de que eu preciso é de uma plateia. Sou um exibicionista. 

- Sou o filho da droga do Governador - eu disse. Estava me espalhando, sapateando pelo banheiro todo. - Ele não quer que eu seja sapateador. Quer que eu vá para Oxford. Mas o sapateado está no meu sangue. (Stradlater riu. Até que o senso de humor dele não era dos piores.) - Hoje é a noite da estréia do Ziegfeld Follies. (A essa altura eu já estava ficando sem fôlego, não tenho resistência nenhuma.) - O artista principal não pode entrar em cena. Está bêbado como um gambá. Então, sabe quem é que eles escolhem para substituí-lo? Eu, naturalmente. O filhinho da droga do Governador. 

- Onde é que você arranjou esse troço? - perguntou Stradlater. Referia-se a meu chapéu, era a primeira vez que o via. 

Eu já estava mesmo sem fôlego, por isso parei com a brincadeira. Tirei o chapéu e o olhei talvez pela nonagésima vez. 

- Comprei em Nova York hoje de manhã. Um dólar. Gosta dele? 

Stradlater acenou com a cabeça: - Legal - respondeu. Só para me agradar, porque foi logo dizendo: - Escuta, você vai escrever aquela redação pra mim? Quero saber. 

- Se tiver tempo, escrevo. Se não tiver, não escrevo -. Fui me sentar outra vez na pia ao lado da dele. - Com quem você vai sair? - perguntei. - Com a Fitzgerald? 

- Não, claro que não! Já te disse, acabei com aquela galinhona. 

- É? Então dá ela pra mim, sem brincadeira. Ela é o meu tipo. 

- Pode ficar... Ela é muito velha pra você. 

- De repente - na verdade sem nenhuma razão, a não ser que estava com vontade de fazer movimento - me deu vontade de pular da pia e dar uma gravata no Stradlater. Caso alguém não saiba, uma gravata é um golpe de jiu-jitsu em que a gente pega um sujeito pelo pescoço e pode estrangulá-lo se quiser. E foi o que fiz. Aterrissei em cima dele como se fosse uma pantera. 

- Para com isso, Holden, que droga! - disse Stradlater. Ele não estava com vontade de brincar, estava fazendo a barba e tudo. - Que é que há? Tá querendo me degolar?

Mas não o soltei. Tinha encaixado uma gravata bem apertada. - Tente livrar-se deste golpe magistral. 

- Será possível! - foi o que ele disse. Pôs o barbeador na pia e, de repente, jogou os braços para cima e conseguiu sair do golpe. Ele era um sujeito forte pra burro e eu sou um bocado fraco. - Agora vê se pára com essa titica -. Disse isso e começou a se barbear todo outra vez. Ele sempre se barbeava duas vezes, pra ficar bem bonito. Com aquela nojeira daquele barbeador. 

- Se não é com a Fitzgerald, com quem você vai sair? - perguntei. Sentei de novo na pia. - Aquela belezinha da Phylis Smith? 

- Não, era para ser, mas acabou dando uma confusão danada. Afinal fiquei com a companheira de quarto da namorada do Bud Thaw... Êi, ia quase esquecendo. Ela conhece você. 

- Quem me conhece? - perguntei. 

- Essa garota com quem vou sair. 

- É? Qual é o nome dela? - perguntei. Estava um bocado interessado. 

- Deixa eu me lembrar... Ah, Jean Gallagher. 

Puxa, quase tive um troço quando ele disse o nome.

- Jane Gallagher - repeti. Cheguei até a me levantar da pia quando ele disse quem era. Quase caí duro. - Se conheço! Ela praticamente morou ao lado da minha casa, nas férias de verão há dois anos. Tinha um baita dum cachorrão Dobermann. Foi por causa dele que eu a conheci. O cachorro dela costumava vir no nosso... 

- Você tá bem na minha luz, Holden, que porcaria. Será que você tem que ficar postado bem aí?

Puxa, que eu estava excitado. No duro mesmo. 

- Onde é que ela está? No Anexo? 

- É. 

- Como é que ela falou em mim? Em que colégio que ela está? Tinha me dito que talvez fosse para o Shipley. Pensei que tivesse ido. Como foi que ela falou em mim? 

Eu estava mesmo excitado pra chuchu. 

- Sei lá, ora. Levanta daí, tá? Você está bem em cima da minha toalha - disse ele. Eu estava sentado em cima da porcaria da toalha dele. 

- Jane Gallagher - repeti. Não conseguia vencer minha surpresa. Vejam só, logo quem. 

A essa altura o Stradlater estava pondo Vitalis no cabelo. Meu Vitalis. 

- Ela estuda dança - continuei. - Ballet e tudo. Costumava treinar umas duas horas todo dia, mesmo quando estava o maior calor. Ela tinha medo de ficar com as pernas feias - assim grossas e tudo. Eu costumava jogar damas com ela o tempo todo. 

- Você costumava jogar o quê com ela o tempo todo? 

- Damas. 

- Damas! Essa é a maior! 

- É. Ela nunca mexia nas damas. Toda vez que ela fazia uma dama, deixava na última casa. Nunca usava nenhuma, só porque gostava de ver todas as damas enfileiradas nas últimas casas. 

Stradlater não disse nada. Pouca gente se interessa por esse tipo de coisa. 

- A mãe dela era sócia do mesmo clube que nós - continuei. - De vez em quando eu trabalhava de caddy, só para ganhar algum dinheirinho. Eu trabalhei de caddy para a mãe dela umas duas vezes. Nunca vi ninguém jogar golfe tão mal, ela costumava fazer nove buracos numas cento e setenta tacadas. 

Stradlater mal escutava. Estava penteando suas belas melenas. 

- Tenho que ir lá e dar um abraço nela. 

- Por que não vai logo? 

- Já vou, daqui a pouco. 

Começou a repartir o cabelo todo outra vez. Ele levava uma hora se penteando.

- A mãe dela tinha se divorciado do pai. Casou outra vez com um beberrão. Um cara magricela, de perna cabeluda. Me lembro dele. Andava de calção o tempo todo. Jane disse que ele escrevia para o teatro ou uma porcaria qualquer dessas, mas a única coisa que via ele fazer era beber como uma esponja e escutar tudo que era programa de mistério no rádio. E ainda costumava andar pela casa nu em pêlo. Com a Jane por lá e tudo. 

- É? - perguntou Stradlater. Isso realmente interessava a ele. Esse troço do porrista andar nu pela casa, com a Jane por lá. O filho da mãe só pensava em sexo. 

- Ela teve uma infância miserável. Sem brincadeira.

Mas isso já não interessava ao Stradlater. Só ligava mesmo se o assunto fosse sexo. 

- Veja só, Jane Gallagher -. Não conseguia tirá-la da minha cabeça. Não conseguia mesmo. - Tenho que ir lá e pelo menos dar um abraço nela. 

- Por que é que você não vai logo, em vez de ficar aí dizendo que vai?

Fui até a janela, mas não se via nada do lado de fora, estava toda embaciada por causa do calor do banheiro. - Não estou com vontade de ir agora - respondi. E não estava mesmo. A gente tem que estar no estado de espírito propício para fazer um troço desses. - Pensei que ela tivesse ido para o Shipley -. Fiquei andando pelo banheiro um bocado. Não tinha outra coisa para fazer. - Ela gostou do jogo? - perguntei. 

- Acho que gostou. Não sei. 

- Ela te contou que nós costumávamos jogar damas o tempo todo? 

- Não sei. Mas puxa, mal me encontrei com ela. 

Ele tinha acabado de pentear seus maravilhosos cabelos e estava guardando aquela nojeira de barbeador. 

- Escuta, dá lembranças minhas a ela, tá bom? 

- Tá bem - respondeu, mas eu sabia que provavelmente não daria coisa nenhuma. Um sujeito como o Stradlater é incapaz de dar lembranças da gente a quem quer que seja.

Voltou para o quarto, mas eu fiquei ainda um pouco pelo banheiro, pensando na Jane. Afinal voltei também para o quarto. 
Quando cheguei, Stradlater estava dando o laço na gravata, em frente ao espelho. Passava metade da vida dele em frente de um espelho. Sentei na minha poltrona e fiquei algum tempo apreciando o cretino.

- Êi - eu disse - não diz a ela que eu fui expulso, tá bom? 

- Está certo. 

Isso era uma coisa boa no Stradlater. A gente não tinha que explicar cada merdinha a ele, como tinha de fazer com o Ackley. Acho que, principalmente, porque ele não estava nunca interessado. Essa é que era a razão. Com o Ackley era diferente. Ackley era um filho da mãe dum metido. 
Stradlater vestiu meu paletó novo. 

- Opa, vê lá se vai me esculhambar o paletó todo. Só usei ele duas vezes. 

- Pode deixar que eu não vou não. Onde é que estão a droga dos meus cigarros? 

- Em cima da escrivaninha -. Ele nunca sabia onde tinha deixado nada. - Embaixo do cachecol -. Pôs os cigarros no bolso do paletó - no bolso do meu paletó.

De repente, só pra variar, puxei para a frente a aba do meu chapéu de caça. Estava começando a ficar meio nervoso, assim de repente. Eu sou um sujeito um bocado nervoso. 

- Escuta, onde é que vocês vão hoje de noite? - perguntei. - Já marcaram? 

- Sei lá. Nova York, se der tempo. Ela tem que estar de volta às nove e meia, veja só. 

Não gostei do jeito com que ele disse isso, e aí falei: - É porque ela não sabia que você era um cara tão bonito, tão cheio de charme. Se ela soubesse, teria arranjado um jeito de poder voltar às nove e meia da manhã.

- Isso mesmo - ele disse. Não era muito fácil aporrinhá-lo. Era vaidoso demais. - Agora, sem brincadeira, faz aquela redação pra mim -. Já tinha vestido o casaco e estava pronto para sair. - Vê se não capricha demais nem nada, é só fazer o troço bem descritivo, tá? 

Não respondi. Não estava com vontade nenhuma de responder. Tudo que disse foi: - Pergunta a ela se ainda deixa as damas nas últimas casas.

- Tá bem - ele disse, mas eu sabia que não ia perguntar nada. - Até logo - e disparou do quarto.

Fiquei por lá, sentado, ainda uma meia hora depois que ele saiu. Sentado na minha poltrona, sem fazer nada. E pensando na Jane, e em Stradlater saindo com ela e tudo. Fui ficando cada vez mais nervoso. É porque o filho da mãe do Stradlater só pensava em sexo. 
De repente, Ackley deu as caras outra vez, atravessando as cortinas do chuveiro, como sempre. Pela primeira vez, em toda a minha vida, tive realmente prazer em vê-lo. Afastou meus pensamentos de outras coisas.
Ele ficou zanzando por ali até a hora do jantar, falando sobre todos os sujeitos no Pencey de quem ele tinha raiva e espremendo uma baita espinha no queixo. E nem usava o lenço. Para dizer a verdade, acho até que o sacana nem tinha lenço. Pelo menos, nunca vi ele usar nenhum.  


continua na página 16...
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O Apanhador no Campo de Centeio - 4: Não tinha nada de especial 

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