Simone de Beauvoir
SlMONE DE BEAUVOIR
O homem, pelo fato de ser quem "toma" a mulher — sobretudo em sendo numerosas as solicitações femininas — tem maior possibilidade de escolha. Mas como o ato sexual é considerado um serviço imposto à mulher e no qual assentam as vantagens que lhe são concedidas, é lógico que não se dê importância a suas preferências singulares. O casamento é destinado a defendê-la contra a liberdade do homem: mas como não há nem amor nem individualidade fora da liberdade, a fim de se assegurar para sempre a proteção de um macho, ela deve renunciar ao amor de um indivíduo singular. Ouvi uma mãe devota ensinar às filhas que o "amor é um sentimento grosseiro reservado aos homens e que as mulheres decentes não devem conhecer". Era, numa forma ingênua, a própria doutrina que Hegel enuncia na Fenomenologia do Espírito (t. II, pág. 25) :
Mas as relações de mãe e esposa têm a singularidade, em parte como alguma coisa de natural que pertence ao prazer, em parte como alguma coisa de negativo que nelas contempla simplesmente seu próprio desaparecimento; é exatamente por isso que em parte também essa singularidade é alguma coisa de contingente que pode sempre ser substituída por outra singularidade. No fundo do reinado erótico, não se trata deste marido e sim de um marido em geral, de filhos em geral. Não é na sensibilidade mas sim no universal que assentam essas relações da mulher. A distinção entre a vida ética da mulher e a vida ética do homem consiste exatamente no fato de que a mulher, em sua distinção pela singularidade e em seu prazer, permanece imediatamente universal e estranha à singularidade do desejo. Ao contrário, no homem, esses dois lados separam-se um do outro e como o homem possui como cidadão a força consciente de si e a universalidade, adquire o direito do desejo preservando ao mesmo tempo sua liberdade em relação a esse desejo. Assim, se a essa relação da mulher se mistura a singularidade, seu caráter ético não é puro; mas na medida em que esse caráter ético assim é, a singularidade é indiferente e a mulher é privada do reconhecimento de si, como este si em um outro.
Equivale isso a dizer que não se trata absolutamente para a mulher de basear em sua singularidade relações com um esposo de eleição, mas sim de justificar em sua generalidade o exercício de suas funções femininas; ela só deve conhecer o prazer de uma forma específica e não individualizada; disso resultam duas consequências essenciais tocantes a seu destino erótico: primeiramente não tem ela direito a nenhuma atividade sexual fora do casamento; o comércio carnal tornando-se uma instituição para ambos os esposos, desejo e prazer são ultrapassados no sentido do interesse social; mas o homem, transcendendo-se para o universal como trabalhador e cidadão, pode gozar antes das núpcias e à margem da vida conjugai prazeres contingentes: encontra em todo caso sua salvação por outros caminhos; ao passo que, num mundo em que a mulher é essencialmente definida como fêmea, é necessário que seja integralmente justificada enquanto fêmea. Por outro lado, vimos que a ligação do geral e do singular é biologicamente diferente no macho e na fêmea: cumprindo sua tarefa específica de esposo e reprodutor, o primeiro encontra certamente seu prazer [1] ; ao contrário, há muitas vezes na mulher distinção entre a função genital e a volúpia. Embora pretendendo dar à vida erótica uma dignidade ética, o casamento, em verdade, propõe-se suprimi-la.
[1] Naturalmente o adágio "um buraco é sempre um buraco" é grosseiramente humorístico; o homem procura alguma coisa mais do que o prazer bruto; entretanto, a prosperidade de certas casas de tolerância basta para provar que o homem pode encontrar satisfação com qualquer mulher.
Essa frustração sexual da mulher foi deliberadamente aceita pelos homens; vimos que eles se apoiavam num naturalismo otimista para resignar-se aos sofrimentos dela: é seu quinhão; a maldição bíblica confirma-os nessa opinião cômoda. As dores da gravidez — esse pesado sacrifício exigido da mulher em troca de um rápido e incerto prazer — chegaram a ser o tema de muitas chalaças. "Cinco minutos de prazer, nove meses de desgraça.. . Entra mais facilmente do que sai." Esse contraste divertiu-os amiúde. Entra nessa filosofia algo de sádico: muitos homens se alegram com a miséria feminina e não aceitam a ideia de que se queira atenuá-la [2] . Compreende-se, portanto, que os homens não tenham tido nenhum escrúpulo em denegar a sua companheira a felicidade sexual; pareceu-lhes até vantajoso recusar-lhe, com a autonomia do prazer, as tentações do desejo [3].
[2] Há quem sustente, por exemplo, que as dores do parto são necessárias ao desabrochar do instinto materno: cervas que pariram sob o efeito de um anestésico ter-se-iam desinteressado dos filhotes. Os fatos alegados permanecem muito vagos; e a mulher não é, em todo caso, uma cerva. A verdade é que certos homens se escandalizam com que se aleguem os encargos da maternidade.
[3] Ainda em nossos dias a pretensão da mulher ao prazer suscita cóleras masculinas; a este propósito o opúsculo do Dr. Grémillon, La Verité sur l'Orgasme vénérien de la Femme é um documento espantoso. O prefácio nos previne de que o autor, herói da guerra 14-18, que salvou a vida de cinquenta e quatro prisioneiros alemães, é um homem da mais alta moralidade. Atacando violentamente a obra de Stekel sobre a mulher fria, declara entre outras coisas: "A mulher normal, a boa poedeira não tem orgasmo venéreo. Numerosas são as mães (e as melhores) que nunca experimentaram o espasmo mirífico... As zonas erógenas, o mais das vezes latentes, não são naturais e sim artificiais. Orgulham-se com sua aquisição mas são estigmas de decadência . . . Diga-se tudo isso ao homem do prazer, ele não o levará em consideração. Ele quer que sua companheira de turpitude tenha um orgasmo venéreo e ela o terá. Se não existe, será criado. A mulher moderna quer que a façam vibrar. Nós lhe respondemos: Senhora, não temos tempo e isso nos é proibido pela higiene!. . . O criador das zonas erógenas trabalha contra si próprio: cria insaciáveis. A meretriz pode, sem cansaço, esgotar numerosos maridos... a "zoneada" torna-se uma nova mulher com um novo estado de espírito, por vezes uma mulher terrível capaz de ir até o crime. . . Não haveria neurose nem psicose se se estivesse persuadido de que fazer amor é um ato tão indiferente como o de comer, urinar, defecar, dormir..."
É o que exprime Montaigne com um cinismo delicioso:
"É por isso uma espécie de incesto empregar nesse parentesco venerável e sagrado os esforços e as extravagâncias da licença amorosa; é preciso, diz Aristóteles, "tocar prudente e austeramente na mulher, de medo de que, excitando-a demasiado lascivamente, o prazer a faça perder a cabeça... " Não sei de casamentos que malogram mais depressa e se perturbem do que os que são ditados pela beleza e os desejos amorosos: exigem bases mais sólidas e constantes, e cuidados; uma brilhante alegria não dá certo. . . Um bom casamento, se é que os há, recusa a companhia e a condição do amor" (L. III, cap. V) E diz também (L. I, cap. XXX): "Os próprios prazeres que têm com suas mulheres são reprovados se não observam neles alguma moderação; e que há razão para cair em licença e dissolução como em coisa ilegítima. Esses entusiasmos desavergonhados que a chama primeira nos sugere nesse ato, são não apenas indecentes como também prejudicialmente empregados com nossas mulheres. Que pelo menos aprendam a impudência de outra maneira. Para nossas necessidades já se acham bastante despertadas.. . O casamento é uma ligação religiosa e piedosa; eis por que o prazer que dele se tira deve ser um prazer contido, sério e acrescido de alguma austeridade; deve ser uma volúpia absolutamente prudente e conscienciosa".
Efetivamente, se o marido desperta a sensualidade feminina, ele a desperta em sua generalidade posto que não foi escolhido particularmente; ele predispõe a esposa a procurar o prazer em outros braços; acariciar demasiado bem uma mulher, diz ainda Montaigne, é "cagar no cesto para colocá-lo sobre a própria cabeça". Ele reconhece de resto com boa-fé, que a prudência masculina coloca a mulher numa situação bastante ingrata.
As mulheres não estão inteiramente erradas quando recusam as regras de vida introduzidas no mundo; tanto mais quanto são os homens que as fizeram sem elas. Há naturalmente dissensões e disputas entre elas e nós. Tratamo-nas inconsideradamente porque depois de sabermos que são de longe mais capazes e mais ardentes no amor do que nós . . . fomos dar-lhes a continência como quinhão peculiar e sob penas terríveis e extremas. . . Queremo-las sadias, vigorosas, bem tratadas e nutridas e castas ao mesmo tempo, isto é, quentes e frias; pois o casamento que dizemos ter por fim impedi-las de se consumirem em chamas, traz-lhes bem pouco alívio, de acordo com nossos costumes.
Proudhon tem menos escrúpulos: afastar o amor do casamento é, a seu ver, conforme à "justiça":
O amor deve ser afogado na justiça . . . toda conversação amorosa, mesmo entre noivos, ou entre esposos, é inconveniente, destruidora do respeito doméstico, do amor ao trabalho e da prática do dever social. . . (uma vez realizado o ato do amor) devemos afastá-lo como o pastor que, depois de ter feito coalhar o leite, retira-lhe o soro.
Entretanto, durante o século XIX, as concepções da burguesia modificaram-se um pouco; ela esforçava-se ardentemente por defender e sustentar o casamento; por outro lado, os progressos do individualismo impediam que se pudesse abafar muito simplesmente as reivindicações femininistas; Saint-Simon, Fourier, George Sand e todos os românticos tinham proclamado demasiado violentamente o direito ao amor. Admitiu-se o problema de integrar no casamento os sentimentos individuais que até então tinham sido tranquilamente excluídos dele. Foi quando se inventou a noção equívoca de "amor conjugai", fruto milagroso do casamento de conveniência tradicional. Balzac exprime em todas as suas inconsequências as ideias da burguesia conservadora. Ele reconhece que, em princípio, casamento e amor nada têm a ver um com outro, mas repugna-lhe assimilar uma instituição respeitável a um simples negócio em que a mulher é tratada como coisa; e chega assim às incoerências desconcertantes da Physiologie du Mariage, em que lemos:
O casamento pode ser considerado política, civil e moralmente como uma lei, como um contrato, como uma instituição... O casamento deve pois ser o objeto do respeito geral. A sociedade não pode considerar senão essas sumidades que para ela dominam a questão conjugal.
Em sua maioria, os homens só têm em vista, no seu casamento, a reprodução, a propriedade do filho; mas nem a reprodução nem a propriedade, nem o filho constituem a felicidade. O crescite et multiplicamini não implica amor. Pedir a uma moça, que vimos quatorze vezes em quinze dias, amor por determinação da lei, do rei e da justiça e um absurdo digno da maioria dos predestinados.
Isso é tão preciso quanto a teoria hegeliana. Mas Balzac acrescenta sem nenhuma transição:
O amor é a concordância da necessidade com o sentimento e a felicidade no casamento resulta de um entendimento perfeito das almas entre os esposos. Disso decorre que, para ser feliz, um homem é obrigado a se ater a certas regras de honra e de delicadeza. Depois de se ter valido da lei social que consagra a necessidade, deve obedecer às leis secretas da natureza que fazem eclodir os sentimentos. Se põe sua felicidade em ser amado, é preciso que ame sinceramente: nada resiste a uma paixão verdadeira. Mas ser apaixonado é desejar sempre. Pode-se desejar sempre a própria mulher?
— Sim.
O Segundo Sexo - 01. Fatos e Mitos: que é uma mulher?
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo I - Infância (9)
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo I - Infância (8)
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo I - Infância (7)
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo I - Infância (6)
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo I - Infância (5)
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo I - Infância (4)
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo I - Infância (3)
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo I - Infância (2)
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo I - Infância (1)
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo II - A Moça (1)
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo II - A Moça (2)
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo II - A Moça (3)
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo II - A Moça (4)
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo II - A Moça (5)
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo II - A Moça (6)
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo II - A Moça (7)
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo III - A Iniciação Sexual (1)
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo III - A Iniciação Sexual (2)
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo III - A Iniciação Sexual (3)
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo III - A Iniciação Sexual (4)
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo III - A Iniciação Sexual (5)
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo III - A Iniciação Sexual (6)
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo IV - A Lésbica (1)
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo IV - A Lésbica (2)
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo IV - A Lésbica (3)
O Segundo Sexo - 02. Situação: Capítulo I - A Mulher Casada (1)
As mulheres de nossos dias estão prestes a destruir o mito do "eterno feminino": a donzela ingênua, a virgem profissional, a mulher que valoriza o preço do coquetismo, a caçadora de maridos, a mãe absorvente, a fragilidade erguida como escudo contra a agressão masculina. Elas começam a afirmar sua independência ante o homem; não sem dificuldades e angústias porque, educadas por mulheres num gineceu socialmente admitido, seu destino normal seria o casamento que as transformaria em objeto da supremacia masculina.
Neste volume complementar de O SEGUNDO SEXO, Simone de Beauvoir, constatando a realidade ainda imediata do prestígio viril, estuda cuidadosamente o destino tradicional da mulher, as circunstâncias do aprendizado de sua condição feminina, o estreito universo em que está encerrada e as evasões que, dentro dele, lhe são permitidas. Somente depois de feito o balanço dessa pesada herança do passado, poderá a mulher forjar um outro futuro, uma outra sociedade em que o ganha--pão, a segurança econômica, o prestígio ou desprestígio social nada tenham a ver com o comércio sexual. É a proposta de uma libertação necessária não só para a mulher como para o homem. Porque este, por uma verdadeira dialética de senhor e servo, é corroído pela preocupação de se mostrar macho, importante, superior, desperdiça tempo e forcas para temer e seduzir as mulheres, obstinando-se nas mistificações destinadas a manter a mulher acorrentada.
Os dois sexos são vítimas ao mesmo tempo do outro e de si. Perpetuar-se-á o inglório duelo em que se empenham enquanto homens e mulheres não se reconhecerem como semelhantes, enquanto persistir o mito do "eterno feminino". Libertada a mulher, libertar-se-á também o homem da opressão que para ela forjou; e entre dois adversários enfrentando-se em sua pura liberdade, fácil será encontrar um acordo.
O SEGUNDO SEXO, de Simone de Beauvoir, é obra indispensável a todo o ser humano que, dentro da condição feminina ou masculina, queira afirmar-se autêntico nesta época de transição de costumes e sentimentos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário