sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 6 (f) ... Habilmente

Capítulo 6


continuando para o fim...


Habilmente, rapidamente, dirigiu pela alameda curva entre álamos e carvalhos, pela grama do parque, cujo declive era tão suave que se fosse água teria se espalhado pela praia como uma lisa maré verde. Plantados aqui e ali havia grupos solenes de faias e carvalhos. Os veados caminhavam entre as árvores, um branco como a neve, outro com a cabeça de lado, pois alguma cerca de arame tinha prendido os seus chifres. Tudo isso, as árvores, os veados, a grama, ela observava com a maior satisfação, como se sua mente tivesse se tornado um líquido que fluísse ao redor das coisas e as envolvesse completamente. No minuto seguinte parou no pátio, onde por tantas centenas de anos chegara a cavalo ou de carruagem de três parelhas, com homens cavalgando à frente, ou vindo atrás; onde plumas tinham balançado, tochas brilhado, e as mesmas árvores floridas que agora deixam as folhas caírem tinham sacudido suas flores. Ela agora estava sozinha. As folhas de outono estavam caindo. O porteiro abriu os grandes portões. “Bom dia, Jaime”, disse ela, “há coisas no carro. Pode trazê-las?”, palavras sem beleza, interesse ou significado em si mesmas, é certo, mas agora tão repletas de significado que caíam como nozes maduras de uma árvore e provavam que, quando a pele enrugada do comum é recheada de significado, satisfaz surpreendentemente os sentidos. Isto era verdadeiro agora em relação a cada movimento e ação, por mais costumeiros que fossem; de modo que ver Orlando trocar a saia por um par de calças de bombazina e uma jaqueta de couro — o que fez em menos de três minutos — era ficar encantado com a beleza do movimento, como se Madame Lopokova estivesse demonstrando sua melhor arte. Então dirigiu-se para a sala de jantar, onde os velhos amigos Dryden, Pope, Swift, Addison olharam-na a princípio gravemente, como que dizendo: “Eis quem ganhou o prêmio!” Mas, quando refletiram que se tratava de duzentos guinéus, balançaram a cabeça aprovando. Duzentos guinéus, pareciam dizer; duzentos guinéus não são para se desprezar. Ela cortou uma fatia de pão e de presunto, juntou-as e começou a comer passeando pela sala para lá e para cá, e assim abandonou as boas maneiras em um segundo, sem perceber. Depois de cinco ou seis voltas, esvaziou um copo de vinho tinto espanhol e, enchendo outro que levava na mão, atravessou o longo corredor e uma dúzia de salas e assim começou a perambular pela casa, escoltada por galgos e spaniels que escolheu para acompanhá-la. 
Isso também era parte de sua rotina diária. Chegar em casa e deixar sua avó sem um beijo era como voltar e deixar a casa sem percorrê-la. Imaginava que os quartos se iluminavam quando ela entrava; que se agitavam abriam os olhos, como se tivessem dormido durante a sua ausência. Imaginava também que centenas e milhares de vezes ela os tinha visto e que nunca pareciam duas vezes os mesmos, como se uma vida tão longa quanto a deles tivesse acumulado milhares de modos que mudavam com inverno e verão, com tempo claro e sombrio, com a sua própria sorte e com os temperamentos das pessoas que os visitavam. Eram sempre polidos com estranhos, mas um pouco enfastiados; com ela eram inteiramente francos e à vontade. E por que não? Eles se conheciam por quase quatro séculos, agora. Não tinham nada a esconder. Ela conhecia suas tristezas e alegrias. Conhecia a idade de cada parte deles e seus pequenos segredos — uma gaveta secreta, um armário disfarçado ou algum defeito talvez, como um pedaço remendado ou acrescentado depois. Eles também a conheciam em todos os seus modos e transformações. Ela não tinha nada a esconder deles; estivera lá como menino e como mulher, chorando e dançando, pensativa e alegre. No banco desta janela escrevera os primeiros versos; naquela capela casara. Seria enterrada ali, refletiu, ajoelhando-se no parapeito da janela, no longo corredor, e bebericando o vinho espanhol. Embora não pudesse imaginar, o corpo de leopardo heráldico estaria formando poças amarelas no chão, no dia em que a enterrassem entre os seus antepassados. Ela, que não acreditava em nenhuma imortalidade, não podia deixar de sentir que sua alma estaria indo e vindo para sempre com os vermelhos dos painéis e os verdes dos sofás. Pois o aposento — acabava de entrar no quarto de dormir do embaixador — brilhava como uma concha que, tendo ficado séculos no fundo do mar, fora recoberta e pintada pela água, com um milhão de cores; era rosa e amarela, verde e cor de areia. Era frágil como uma concha, tão iridescente e tão vazio. Nenhum embaixador dormiria ali outra vez. Ah!, mas ela sabia onde o coração da casa ainda batia. Gentilmente abrindo a porta, permaneceu na soleira de modo que (imaginava) o aposento não pudesse vê-la e contemplou a tapeçaria que se levantava e caía com a eterna e suave brisa que nunca deixava de agitá-la. O caçador ainda cavalgava; Dafne ainda voava. O coração ainda batia, pensou, embora muito fraco, embora muito distante, o frágil, indomável coração do imenso edifício. 
Agora, chamando os cachorros, passou pela galeria cujo chão era coberto com troncos de carvalhos serrados. Filas de cadeiras, com os veludos desbotados, estavam encostadas à parede, com braços abertos para Elizabeth, para Jaime, para Shakespeare, talvez, para Cecil, que nunca vinham. Essa visão entristeceu-a. Desamarrou a corda que as cercava. Sentou na cadeira da rainha; abriu um livro manuscrito que estava sobre a mesa de Lady Betty; revolveu com os dedos as velhas pétalas de rosas; escovou o cabelo curto com a escova de prata do rei Jaime, sacudiu-se para cima e para baixo na cama dele (mas nenhum rei dormiria lá novamente, apesar dos lençóis novos de Luísa) e comprimiu o rosto contra a gasta colcha prateada que a cobria. Mas por toda parte havia pequenos sacos de alfazema para afastar as traças e avisos impressos “favor não tocar”, que, embora ela mesma tivesse colocado, pareciam censurá-la, A casa não era mais inteiramente sua, suspirou. Pertencia agora ao tempo; à história; estava fora do contato e do controle dos vivos. Ali nunca mais se derramaria cerveja, pensou (estava no quarto onde ficara o velho Nick Greene), nem se fariam buracos de queimadura no carpete. Nunca mais duzentos criados viriam correndo e gritando pelos corredores, com panelas quentes e com grandes galhos para as grandes lareiras. Nunca mais se prepararia cerveja preta, nem se fariam velas, nem se moldariam selas, nem se talhariam pedras nas oficinas do lado de fora da casa. Martelos e malhos estavam agora silenciosos. Cadeiras e camas estavam vazias; jarros de ouro e prata trancados em vitrines. As grandes asas do silêncio abanavam para cima e para baixo na casa vazia. 
Assim sentou-se na extremidade da galeria com os cachorros deitados à sua volta, na poltrona dura da rainha Elizabeth. A galeria se estendia ao longe, até um ponto onde a luz quase falhava. Era como um túnel enterrado profundamente no passado. Enquanto passeava os olhos, podia ver gente rindo e conversando; grandes homens que conhecera; Dryden, Swift e Pope; e estadistas em colóquio; e amantes flertando nos bancos das janelas; e gente comendo e bebendo em longas mesas; e a fumaça da lenha volteando sobre suas cabeças e fazendo-os espirrar e tossir. Ainda mais longe viu grupos de esplêndidos dançarinos formados para a quadrilha. Uma música aflautada, frágil, mas apesar de tudo imponente, começou a tocar. Um órgão retumbou. Um caixão foi trazido para a capela. Um cortejo de casamento saía dali. Homens armados com capacetes partiam para a guerra. Traziam estandartes de Floddene Poitiers, e penduravam-nos na parede. Assim a extensa galeria ficou repleta; e ainda perscrutando adiante, pensou distinguir bem no fundo, além dos elisabetanos, dos Tudors, alguém mais velho, mais distante, mais sombrio, uma figura encapotada, monástica, austera, um monge, segurando um livro entre as mãos, murmurando... 
Como um trovão, o relógio de pé bateu quatro horas. Nunca um terremoto demoliu assim uma cidade inteira. A galeria e todos os seus ocupantes foram reduzidos a pó. Seu próprio rosto, que estivera escuro e sombrio enquanto olhava, iluminou-se com uma explosão de pólvora. Nessa mesma luz tudo que a cercava mostrava-se com extrema nitidez. Viu duas moscas girando e observou o brilho azul de seus corpos; viu um nó na madeira onde estava o seu pé e o tremor da orelha de um de seus cachorros. Ao mesmo tempo ouviu um galho quebrando no jardim, uma ovelha balindo no parque, um grito agudo pela janela. Seu próprio corpo tremeu e vibrou como se tivesse ficado despida de repente, numa forte geada. No entanto, ao contrário do que fizera quando o relógio batera dez horas em Londres, permaneceu completamente serena (porque agora ela era una e íntegra e apresentava, talvez, uma superfície maior para o choque do tempo). Levantou-se, mas sem precipitação, chamou os cachorros e desceu a escada com firmeza mas com grande agilidade de movimentos e foi para o jardim. Aqui as sombras das plantas eram miraculosamente diversificadas. Observou grão por grão da terra dos canteiros, como se tivesse um microscópio nos olhos. Viu o emaranhado dos ramos de cada árvore. Cada folha de grama era diferente, e cada nervura, e cada pétala. Viu Stubbs, o jardineiro, vindo pela alameda, e era visível cada botão de suas polainas; viu Betty e Prince, os cavalos da charrete, e nunca notara tão claramente a estrela branca na testa de Betty, e três pelos mais longos que caíam da cauda de Prince. Lá fora no pátio as velhas paredes cinzentas da casa pareciam uma fotografia recente, arranhada; ouviu o alto-falante condensando no terraço uma música de dança que se ouvia em Viena, na grande Casa de Ópera, de veludo vermelho. Estimulada e excitada pelo momento presente, sentia-se também estranhamente amedrontada, como se cada segundo abrisse uma brecha no golfo do tempo e pudesse trazer consigo algum perigo desconhecido. A tensão era implacável e rigorosa demais para ser suportada sem desconforto. Caminhou mais rapidamente do que desejava, como se suas pernas se movessem sozinhas através do jardim, saindo para o parque. Aqui fez um grande esforço para parar na carpintaria e ficou ali parada, observando Joe Stubbs modelar uma roda de charrete. Estava parada, os olhos fixos na mão dele, quando soou um quarto de hora. Aquilo a atingiu como um meteoro, tão quente que dedos não podem segurar. Viu com desagradável nitidez que o polegar da mão direita de Joe estava sem a unha e no lugar dela havia uma rodela de carne cor-de-rosa. A visão era tão repulsiva que por um momento sentiu que ia desmaiar, mas naquele momento de escuridão, quando suas pálpebras estremeceram, ficou aliviada da pressão do presente. Havia algo estranho na sombra que o tremular de seus olhos esboçou, algo que (como qualquer pessoa pode testar olhando agora para o céu) está sempre fora do presente — daí seu terror, seu caráter indefinível —, algo cujo corpo se hesita em atravessar com um alfinete e chamar de beleza, pois não tem corpo, é como uma sombra sem substância ou qualidade próprias, embora tenha o poder de mudar tudo aquilo a que se soma. Agora, enquanto ela pestanejava em seu desmaio diante da carpintaria, essa sombra saiu furtivamente e, apegando-se às inúmeras visões que tinha presenciado, transformou-as em algo tolerável, compreensível. Sua mente começou a balançar como o mar. Sim, pensava, dando um profundo suspiro de alívio, enquanto voltava da carpintaria para subir a colina, posso começar a viver novamente. Estou à margem da Serpentina, pensou, o barquinho está subindo pelo arco branco de mil mortes. Estou prestes a compreender... 
Estas foram suas palavras, ditas bem claramente, mas não se pode ocultar o fato de que ela agora era uma testemunha muito indiferente à verdade daquilo que estava diante de si e podia facilmente ter confundido um carneiro com uma vaca, ou um velho chamado Smith com um que se chamava Jones, e nada tinha a ver com aquele. Pois a sombra do desmaio causado pelo polegar sem unha escavara-lhe um poço na parte posterior do cérebro (que é o ponto mais distante da visão), onde as coisas habitam numa escuridão tão profunda que raramente sabemos o que são. Agora ela olhava para dentro desse poço ou mar no qual tudo é refletido — e, na verdade, alguns dizem que todas as nossas mais violentas paixões, e a arte, e a religião, são reflexos que vemos no vão escuro da parte posterior da cabeça quando o mundo visível fica obscurecido pelo tempo. Olhava para lá, agora, longa e profundamente, e logo a alameda de samambaias que conduzia à colina, por onde ia caminhando, tornou-se não completamente uma alameda, mas parcialmente a Serpentina; os espinheiros eram parcialmente senhoras e cavalheiros sentados, com estojos de cartões de visitas e bengalas de castão de ouro; os carneiros eram parcialmente casas altas de Mayfair; tudo era parcialmente outra coisa, como se sua mente tivesse se tornado uma floresta, com clareiras se ramificando aqui e ali; as coisas se aproximavam e se afastavam, se misturavam e se separavam e faziam estranhas alianças e combinações, num incessante xadrez de luz e sombra. Ela esqueceu o tempo até que Canute, o galgo, caçou um coelho, e isso lembrou-a de que deviam ser quatro e meia — na verdade eram 23 minutos para as seis — ela esquecera do tempo. 
A alameda de samambaias conduzia com muitas voltas e curvas cada vez mais alto até o carvalho, que ficava no topo. A árvore se tornara maior, mais robusta e mais cheia de nós do que quando ela a conhecera, aí pelo ano de 1588, mas ainda estava no vigor da vida. As pequenas folhas angulosamente recortadas ainda tremulavam densamente em seus ramos. Atirando-se ao chão, sentiu os ossos da árvore alongando-se para um lado e para outro, debaixo de si, como costelas de uma espinha dorsal. Gostava de pensar que cavalgava o dorso do mundo. Gostava de se agarrar a algo firme. Quando se atirou ao chão, um pequeno livro quadrado, encadernado em tecido vermelho, caiu do peito de sua jaqueta de couro — seu poema “O Carvalho”. “Eu deveria ter trazido uma pá”, refletiu. A terra era tão rasa sobre as raízes que parecia duvidoso que ela pudesse fazer o que queria — enterrar o livro ali. Além disso, os cachorros o desencavariam. A sorte jamais acompanha essas celebrações simbólicas, pensou. Talvez então fosse melhor dispensá-las. Tinha um pequeno discurso na ponta da língua, que pensava pronunciar sobre o livro quando fosse enterrá-lo (era uma cópia da primeira edição, assinada pelo autor e artista). “Enterro isto como um tributo”, ia dizer, “um retorno à terra daquilo que a terra me deu”, mas Senhor!, quando se começa a dizer palavras em voz alta, como elas soam bobas! Recordou-se do velho Greene, subindo numa plataforma, outro dia, comparando-a com Milton (a não ser pela cegueira) e entregando-lhe um cheque de duzentos guinéus. Pensara então no carvalho, aqui, na colina, e se perguntara o que uma coisa tinha a ver com a outra. O que o elogio e a fama têm a ver com a poesia? O que têm a ver sete edições (já chegara a isso) com o valor do livro? Escrever poesia não era uma transação secreta, uma voz respondendo a outra voz? De modo que todo esse palavrório, e elogio, e censura, e encontrar pessoas que admiram, e pessoas que não admiram, não combinam com a coisa em si — uma voz respondendo a outra voz. Que podia haver de mais secreto, pensou, mais lento e semelhante à conversa dos amantes do que a claudicante resposta que dirigira todos esses anos à velha e sussurrante canção dos bosques, e às fazendas, aos cavalos castanhos parados no portão, pescoço contra pescoço, e à ferraria, e à cozinha, e aos campos que tão laboriosamente produzem trigo, nabos, grama, e ao jardim explodindo de íris e lilases? 
De modo que deixou ali o livro, sem enterrá-lo, em desalinho no chão, e contemplou a ampla vista, variada naquela tarde como o fundo do oceano, com o sol iluminando e as sombras escurecendo. Havia uma aldeia com a torre da igreja entre álamos; a cúpula cinzenta de uma mansão, num parque; um facho de luz brilhando numa vidraça; um quintal com espigas de milho amarelas. Os campos eram marcados por agrupamentos de árvores negras, e para além dos campos se estendiam vastas florestas e havia o brilho de um rio e depois novamente colinas. A distância os penhascos de Snowdon quebravam-se, brancos, entre as nuvens; ela via as longínquas colinas escocesas e as selvagens marés que faziam redemoinhos em torno das Hébridas. Escutou o som do canhão, no mar. Não — apenas o vento soprava. Não havia guerra hoje. Drake se fora; Nelson se fora. “E ali”, pensou, deixando os olhos que tinham ficado olhando essas distâncias caírem uma vez mais sobre a terra a seus pés, “um dia foi a minha terra: aquele castelo entre as colinas era meu; e todo este pântano, que vai quase até o mar, era meu.” Aqui a paisagem (deve ter sido algum jogo da luz que empalidecia) se abalou, se ergueu, e deixou deslizar toda essa aglomeração de casas, castelos e florestas por suas encostas cônicas. As montanhas nuas da Turquia estavam diante dela. Era um ardente meio-dia. Olhou diretamente para a encosta tostada. Cabras ceifavam os tufos de areia a seus pés. Uma águia pairava sobre ela. A voz rascante do velho Rustum, o cigano, corvejou em seus ouvidos: “Que são a tua antiguidade e a tua raça e as tuas propriedades, comparadas com isto? Por que precisas de quatrocentos quartos e tampas de prata em todas as tuas travessas, e empregadas domésticas espanando?” 
Nesse momento algum relógio de igreja soou no vale. A paisagem cônica estremeceu e desmoronou. O presente caiu sobre sua cabeça uma vez mais, mas agora que a luz estava esmaecendo, mais suavemente do que antes, sem destacar nenhum detalhe, nenhuma coisa pequena, apenas campos enevoados, chalés com luzes, a massa adormecida de um bosque e uma luz em forma de leque empurrando a escuridão na sua frente ao longo de uma aleia. Não podia dizer se tinham batido nove, dez ou 11 horas. A noite chegara — a noite que ela sempre amara, a noite que é quando os reflexos no poço escuro da mente brilham mais claros do que de dia. Não era necessário desmaiar agora para olhar profundamente a escuridão onde as coisas se moldam e ver no poço da mente, ora Shakespeare, ora uma jovem de calças russas, ora um barco de brinquedo na Serpentina, e depois o próprio Atlântico onde se elevam grandes vagas em torno do cabo Horn. Olhou para a escuridão. Lá estava o brigue de seu marido subindo no topo da onda! Alto, cada vez mais alto, mais alto. O arco branco de mil mortes elevava-se diante dele. Oh, homem arrojado, ridículo, sempre velejando assim inutilmente em redor do cabo Horn, nas garras de uma ventania! Mas o brigue passou pelo arco para o outro lado; estava salvo, finalmente! 

— Êxtase! — gritou —, êxtase! — E então o vento amainou, as águas se acalmaram; e ela viu as ondas se encrespando calmamente ao luar. 

— Marmaduke Bonthrop Shelmerdine! — gritou encostada no carvalho. 

O belo, cintilante nome caiu do céu como uma pena azul-aço. Ela observou-a cair girando e torcendo-se como uma flecha vagarosa que perfura lindamente o ar profundo. Ele estava chegando, como sempre vinha em momentos de calmaria mortal. Quando a onda se encrespava e as folhas manchadas caíam lentamente sobre seus pés nos bosques de outono; quando o leopardo estava quieto; a lua sobre as águas e nada se movia entre o céu e o mar. Então ele chegava. 
Tudo estava calmo agora. Era quase meia-noite. A lua subia lentamente por sobre as planícies. Sua luz fez surgir um castelo fantasma sobre a terra. Lá estava a grande mansão com todas as janelas vestidas de prata. Não havia paredes nem substância. Tudo era fantasmagórico. Tudo estava quieto. Tudo estava iluminado como se para a chegada de uma rainha morta. Olhando para baixo, Orlando viu plumas balançando no pátio, tochas tremulando e sombras se ajoelhando. Uma rainha mais uma vez saía de sua carruagem. 

— A casa está às suas ordens, senhora — gritou em profunda reverência. — Nada mudou. O falecido senhor, meu pai, a conduzirá para dentro. 

Enquanto falava, soou a primeira badalada da meia-noite. A brisa fria do presente varreu-lhe a face com um breve sopro de medo. Olhou ansiosamente para o céu. Estava escuro com nuvens, agora. O vento rugia em seus ouvidos. Mas no rugido do vento ela ouviu o rugir de um aeroplano que se aproximava mais e mais. 

— Aqui! Shel, aqui! — gritou, desnudando o peito para a lua (que agora brilhava) de modo que suas pérolas cintilavam como ovos de uma enorme aranha lunar. O aeroplano rompeu as nuvens e permaneceu sobre sua cabeça. Pairou sobre ela. Suas pérolas arderam como uma labareda fosforescente na escuridão. 

E quando Shelmerdine, agora um belo capitão de marinha, vigoroso, corado e ágil pulou para o chão, por cima de sua cabeça surgiu um pássaro selvagem solitário. 

— É o ganso! — gritou Orlando. — O ganso selvagem... 

E a décima segunda badalada da meia-noite soou; a décima segunda badalada da meia-noite de quinta-feira, 11 de outubro de Mil Novecentos e Vinte e Oito.


fim

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