sábado, 25 de fevereiro de 2023

Edgar Allan Poe - Contos: Os Crimes da Rua Morgue (02)

Edgar Allan Poe - Contos


Os Crimes da Rua Morgue
Título original: The Murders in the Rue Morgue 
Publicado em 1841


continuando...

Uma noite em que passávamos numa rua longa e suja, na vizinhança do Palais Roy al, mergulhados nos nossos próprios pensamentos, pelo menos aparentemente, e depois de estarmos quase um quarto de hora sem pronunciar uma palavra, de repente Dupin proferiu estas palavras:

— É um rapaz bem pequeno, na verdade, e onde ele estaria melhor era no teatro de Variedades.

— Sem dúvida alguma — repliquei sem pensar, tão absorvido estava, na singular maneira como as palavras do observador se adaptavam ao meu próprio sonho.

Um instante depois, ao cair em mim, o meu espanto foi profundo.

— Dupin — disse eu muito gravemente — isso ultrapassa o meu raciocínio. Confesso-lhe sem rodeios que estou estupefato e acredito dificilmente nas minhas faculdades. Como conseguiu adivinhar o que eu pensava a...?

Mas parei, para me assegurar de que ele tinha adivinhado o meu pensamento.

— A respeito de Chantilly? — disse. — Para que havia de se interromper? Vi que refletia nesse momento que a estatura dele não era a indicada para a tragédia.

Era precisamente o assunto das minhas reflexões. Chantilly era o ex-sapateiro da Rua de Saint-Denis que tinha a paixão pelo teatro e havia tentado o papel de Xerxes na tragédia de Crebillon. As suas pretensões eram irrisórias e todos troçavam dele.

— Diga-me, pelo amor de Deus, o método — se existe método — pelo qual foi ajudado e pôde penetrar na minha mente!

Na realidade, eu estava ainda mais espantado do que queria confessar.

— Foi o vendedor de fruta — respondeu o meu amigo — que o levou à conclusão de que o sapateiro não tinha estatura para representar Xerxes e todos os papéis deste género.

— O vendedor de fruta? Desconcerta-me! Eu não conheço nenhum vendedor de fruta.

— O homem que foi de encontro a nós quando entrámos na rua, há talvez um quarto de hora.

Recordei então que, efetivamente, um vendedor de fruta, que trazia à cabeça um grande cesto de maçãs, um desastrado, tinha-me deitado quase ao chão quando nós passávamos na Rua C..., na artéria principal onde estávamos então. Mas que relação tinha com Chantilly? Era-me impossível compreender. Não havia uma parcela mínima de imposturice no meu amigo Dupin.

— Vou explicar isso — disse — e, para que possa compreender nitidamente, vamos primeiro retomar a série das suas reflexões desde o momento de que falo até ao do encontro com o vendedor de fruta em questão. Os elos principais da corrente seguem assim: Chantilly, Órion, o doutor Nichols, Epicuro, a estereotomia, os pavimentos, o vendedor de fruta.

Há poucas pessoas que se não tenham divertido, num dado momento da sua vida, a reavivar o curso das suas ideias e a procurar por alguma via que o seu espírito chegue a certas conclusões. Muitas vezes esta ocupação é cheia de interesse e aquele que a experimenta pela primeira vez fica admirado com a incoerência e a distância entre o ponto de partida e o de chegada.
Imaginem, pois, o meu espanto, quando ouvi o meu francês falar como o tinha feito, pelo que fui constrangido a reconhecer que tinha dito a pura verdade.
Ele prosseguiu:

— Falávamos nós de cavalos — se a minha memória me não atraiçoa — precisamente antes de sairmos da Rua C... Fora o nosso último assunto de conversa. Quando passávamos nesta rua, um vendedor de fruta, com um cesto enorme à cabeça, passou precipitadamente à nossa frente, e atirou-o para cima do cascalho amontoado num sítio em que a rua estava em reparação. Você pôs o pé em cima de uma pedra oscilante; escorregou e esfolou ligeiramente o tornozelo: pareceu-me um pouco vexado, resmungão. Murmurou algumas palavras; virou-se para observar o monte de pedras e continuou a caminhar calado, para eu não reparar em tudo que fazia, mas para mim a observação tornou-se, de há muito, quase uma necessidade.

« Os seus olhos fixaram-se no chão, vigiando com uma espécie de irritação os buracos e os sulcos da calçada (de forma que eu via bem que pensava sempre nas pedras) até que atingimos a pequena passagem que se chama a passagem Lamartine, onde se acabou de experimentar a calçada de madeira, um sistema de blocos unidos e solidamente ligados. Aqui a sua fisionomia alegrou-se, e vi os seus lábios mexerem-se e adivinhei, sem ficar com dúvidas, a palavra estereotomia, um termo aplicado muito pretensiosamente a este género de calcetamento.
« Eu sabia que não podia dizer esta palavra sem ser induzido a pensar nos átomos e nas teorias de Epicuro. E, como na discussão que nós tivemos a esse respeito, ainda não há muito tempo, fiz notar que as vagas conjeturas do ilustre grego tinham sido confirmadas singularmente, sem que ninguém prestasse atenção às últimas teorias sobre as nebulosas e as recentes descobertas cosmogónicas, senti que não poderia impedir os seus olhos de se virarem para a grande nebulosa de Órion, o que certamente esperava. Você não falhou e fiquei então certo de ter seguido rigorosamente o curso do seu pensamento. Ora neste amargo dito espirituoso sobre Chantilly, que apareceu ontem no le Musée, o redator, ao fazer alusões incivis na modificação do nome do sapateiro quando calçou o coturno, citava um verso latino do qual nós temos falado muitas vezes. Quero falar do verso: Perdidit anliquum littera prima sonum. Dissera eu já que tinha traído Órion, que se escrevia primitivamente Urion, e por causa de uma certa mordacidade misturada nesta discussão estava certo de que a não tinha esquecido. Era evidente que daí em diante não pudesse deixar de associar as duas ideias de Órion e de Chantilly. Esta associação via-se pelo style do sorriso que se desenhava nos seus lábios. Você pensava na imolação do pobre sapateiro. Até aí caminhara curvado, mais então vi-o endireitar-se a toda a sua altura. Estava bem certo de que pensava na pequena estatura de Chantilly. Foi nesse momento que interrompi as suas reflexões para lhe fazer notar que esse Chantilly era um pobre aborto e que ele estaria melhor no teatro de Variedades.»
Algum tempo depois deste “assunto de conversa”, ao percorrermos a edição da noite da Gazette des Tribunaux, eis que os parágrafos seguintes despertaram a nossa atenção:


DUPLO ASSASSÍNIO DOS MAIS SINGULARES. — Esta manhã, pelas três horas, os habitantes do bairro Saint-Roch foram despertados por uma série de gritos assustadores que pareciam vir do quarto andar de uma casa da Rua Morgue ocupada apenas pela senhora L’Espanaye e sua filha Camila L’Espanay e. Depois de alguma demora causada pelos esforços infrutíferos para se abrir a bem, a enorme porta foi forçada com uma alavanca e oito ou dez vizinhos entraram acompanhados por dois polícias.
Entretanto, os gritos cessaram. Mas, no momento em que toda a gente chegava ao primeiro andar, distinguiram-se duas vozes fortes, talvez mais, que pareciam discutir violentamente e que vinham da parte superior da casa. Quando chegaram ao segundo patamar, o barulho tinha terminado e tudo estava perfeitamente calmo. Os vizinhos passaram de um quarto para o outro. Ao chegarem à vasta divisão situada nas traseiras do quarto andar, e da qual se forçou a porta que estava fechada à chave por dentro, eles encontraram um espetáculo que emocionou todos os assistentes com um terror não menor do que o seu espanto.
O quarto estava na mais estranha desordem, os móveis quebrados e espalhados em todos os sentidos. Não havia senão uma cama, os colchões tinham sido arrancados e lançados para o meio da casa. Numa cadeira, encontrou-se uma navalha cheia de sangue; na lareira, três grandes molhos de cabelos grisalhos que pareciam ter sido arrancados violentamente pela raiz. No soalho estavam caídos quatro napoleões, um brinco com um topázio cravado, três grandes colheres de prata, e dois sacos contendo cerca de quatro mil francos de ouro. Num canto, as gavetas da cómoda estavam abertas e deviam ter sido pilhadas, sem dúvida, se bem que se encontrassem nelas vários artigos intactos. Um cofrezinho de ferro foi encontrado sobre as roupas da cama (não em cima da cama); estava também aberto, com a chave na fechadura. Continha apenas algumas cartas antigas e outros papéis sem importância.
Não se encontrou nenhum vestígio da senhora L’Espanaye, mas havia uma grande quantidade de fuligem na casa. Fez-se uma busca na chaminé e — horrível coisa para descrever! — tiraram de lá o corpo da menina, com a cabeça para baixo: tinha sido introduzido à força e empurrado pela estreita abertura, até a uma distância bastante considerável. O corpo estava ainda quente. Ao examiná-lo, descobriram-se numerosas escoriações ocasionadas, sem dúvida, pela violência com que fora introduzido e que fora preciso empregar para o retirar. A cara tinha alguns arranhões grandes, e a garganta estava marcada com equimoses negras e profundas marcas de unhas, como se a morte tivesse sido provocada por estrangulamento.
Depois de um exame minucioso a cada divisão da casa, que não trouxe nenhuma nova descoberta, os vizinhos passaram para um patiozinho calcetado situado nas traseiras da casa. Jazia ali o cadáver da senhora idosa, com a garganta tão perfeitamente cortada que, ao tentar erguê-la, a cabeça soltou-se do tronco. O corpo, bem como a cabeça, estavam terrivelmente mutilados e esta a tal ponto que lhe restava apenas uma aparência humana. Todo este caso permanece num mistério e até agora não se descobriu, que se saiba, o menor pormenor elucidativo.


O número seguinte trazia estes pormenores complementares:


O DRAMA DA RUA MORGUE. — Um bom número de indivíduos foram interrogados a respeito deste terrível e extraordinário acontecimento, mas nada transpirou que possa esclarecer um pouco o caso. Transcrevemos as seguintes declarações obtidas:
Pauline Dubourg, lavadeira, depôs que conhecia as vítimas e que lhes lavava a roupa há já três anos. A senhora de idade e a filha pareciam dar-se bem — muito afetuosas uma para a outra. Eram de boas pagas. Ela não pôde dizer nada relativo ao seu género de vida e aos seus meios de existência. Ela crê que a senhora L’Espanaye devia viver com bem-estar. Esta senhora passava por ter dinheiro amealhado. Ela nunca encontrara qualquer pessoa na casa, quando ia entregar ou buscar a roupa. Era certo que essas senhoras não tinham nenhuma criada ao seu serviço. Parecia-lhe que não havia móveis em nenhuma parte de casa exceto no quarto andar
Pierre Moreau, vendedor de tabaco, depôs que fornecia a senhora L’Espanaye e vendia-lhe pequenas quantidades de tabaco, algumas vezes em pó. Ele nasceu no bairro e morou sempre lá. A defunta e a filha ocupavam há mais de seis anos a casa onde encontraram os cadáveres. De início, fora habitada por um joalheiro que subalugou os apartamentos superiores a diferentes pessoas. A casa pertencia à senhora L’Espanay e. Ela mostrou-se muito descontente com o seu locatário, que estragava a casa, motivo por que ela foi habitar a sua própria casa, recusando alugar uma única parte. A bondosa senhora era ainda nova. A testemunha viu a filha cinco ou seis vezes no decorrer desses seis anos. As duas levavam uma vida excessivamente retirada e tinham fama de ter alguma coisa de seu. Ele ouviu dizer aos vizinhos que a senhora L’Espanay e levava vida livre, mas não acreditou. Ele nunca vira alguém transpor a porta, exceto a senhora idosa e a filha, um moço de recados uma ou duas vezes, e o médico oito ou dez.
Outras pessoas diferentes da vizinhança depuseram no mesmo sentido. Não se citou ninguém como frequentador da casa. Não sabiam se a senhora e a filha tinham parentes vivos.
As persianas das janelas da frente abriam-se raramente. As de trás estavam sempre fechadas, exceto as da divisão grande das traseiras do quarto andar. A casa era bastante boa e não muito velha.
Isidore Muset, policia, depôs que fora chamado, por volta das três horas da manhã, e que encontrara na porta da entrada vinte ou trinta pessoas, que se esforçaram por penetrar na casa. Que forçaram a porta com uma baioneta e não com uma alavanca e não tiveram grande dificuldade em abri-la, porque ela era de dois batentes e não estava fechada nem em cima, nem em baixo. Os gritos continuaram até que a porta foi metida dentro, depois acabaram de repente. Dir-seiam os gritos de uma ou de várias pessoas tomadas pelas mais intensas dores; gritos altos e muito prolongados — nada de gritos fracos nem precipitados. A testemunha subiu a escada. Quando chegou ao primeiro patamar ouviu duas vozes: uma era aguda, a outra, muito mais aguda, uma voz muito estranha. Distinguiu algumas palavras da primeira, era a de um francês. Estava convencido que não era uma voz de mulher. Pôde distinguir as palavras “sagrado” e “diabo”. A voz aguda era a de um estrangeiro. Ele não sabe precisamente se era voz de homem ou de mulher. Não pôde adivinhar o que ela dizia mas presume que falava espanhol. Esta testemunha reparou no estado do quarto e dos cadáveres nos mesmos termos que referimos ontem.
Henrique Duval, um vizinho, e ourives de profissão, declarou que fazia parte do grupo dos que entraram primeiro na casa. Confirma totalmente o testemunho de Muset. Assim que se introduziram na casa, fecharam a porta para impedir a passagem à gente que se comprimia consideravelmente apesar de ser de madrugada. A voz aguda, a acreditar na testemunha, era a de um italiano. De certeza absoluta que não era uma voz francesa. Ele não sabia bem ao certo se era voz de mulher; no entanto poderia bem sê-lo. A testemunha não está familiarizada com a língua italiana: não pôde distinguir as palavras, mas está convencida, pelo sotaque, que o indivíduo que falava era um italiano. A testemunha conhecia a senhora L’Espanaye e a sua filha. Frequentemente conversara com elas. Era certo que a voz aguda não era de nenhuma das vítimas.
Odenheimer, dono de um restaurante, ofereceu-se para testemunhar. Não fala francês e interrogaram-no por meio de um intérprete. É natural de Amsterdão. Passava em frente da casa no momento dos gritos. Estes eram prolongados, muito agudos e muito aterrorizantes — gritos aflitivos, que duraram alguns minutos. Odenheimer é um dos que penetraram na casa. Confirma o testemunho precedente, com exceção de um só ponto. Está convencido de que a voz aguda era a de um homem — de um francês — e não pôde distinguir as palavras pronunciadas. Falava alto e num tom desigual — e exprimia o medo e a cólera. A voz era áspera, mais áspera do que aguda. Não se lhe pode chamar precisamente aguda. A voz grossa disse várias vezes: “Maldito”, “diabo” — e uma vez: “Meu Deus!”
Jules Mignaud, banqueiro, da casa Mignaud e filho, rua Deloraine. É o filho mais velho dos Mignaud. A senhora L’Espanaye tinha uma pequena fortuna. Ele abrira-lhe uma conta no seu banco oito anos antes, na primavera. Ela depositou muitas vezes, no banco, pequenas quantias. Nunca lhe entregara nenhum dinheiro até ao terceiro dia anterior à sua morte, em que ela foi pedir-lhe pessoalmente uma quantia de quatro mil francos. Esta soma foi-lhe paga em luíses de ouro e um empregado encarregou-se de lha levar a casa.
Adolphe Lebon, empregado dos Mignaud e filho, depôs que, no dia em questão, perto do meio-dia, acompanhou a senhora L’Espanaye a sua casa, com quatro mil francos em dois sacos. Quando a porta se abriu, a menina L’Espanaye apareceu e tirou-lhe das mãos um dos sacos enquanto que a senhora idosa o aliviava do outro. Ele cumprimentou-as e foi-se embora. Não viu ninguém nesse momento na rua. É uma rua suspeita, muito solitária.
William Bird, alfaiate, informou que é um dos que se introduziram na casa. É inglês. Viveu dois anos em Paris. Ouviu as vozes que discutiam. A voz rude era a de um francês. Pôde distinguir algumas palavras mas não se recorda delas. Ouviu distintamente “maldito” e “meu Deus”. Ouvia-se nesse momento um barulho como de várias pessoas que lutavam — o ruído de uma luta e de objetos que se partem. A voz aguda era forte, mais forte do que rude. Ele estava convencido de que a voz não era de um inglês. Parecia-lhe a de um alemão; talvez mesmo uma voz de mulher. A testemunha não sabe alemão.
Quatro das testemunhas acima mencionadas foram ouvidas de novo e afirmaram que a porta do quarto onde foi encontrado o corpo da menina L’Espanay e achava-se fechada por dentro quando chegaram lá. Estava tudo em perfeito silêncio; nem gemidos, nem barulho de nenhuma espécie. Depois de se ter forçado a porta não viram ninguém. As janelas do quarto das traseiras e da frente estavam fechadas por dentro. A porta que ligava o quarto da frente ao corredor estava fechada à chave e esta por dentro; uma pequena divisão para a frente da casa, no quarto andar, à entrada do corredor, encontrava-se aberta. Esta divisão estava cheia de madeira velha, uma cama, malas, etc. Desarrumaram-na cuidadosamente e inspecionaram esses objetos. Inspecionaram a chaminé. A casa é de quatro andares, com sótão. Um alçapão, que dá para o telhado, estava pregado e não parecia ter sido aberto há já uns anos. As testemunhas variam sobre a duração do tempo decorrido entre o momento em que se ouviram as vozes que discutiam e o de forçar a porta do quarto. Alguns avaliam-no demasiado breve, dois ou três minutos — outros, cinco minutos. A porta não se abriu senão com grande custo.
Alfonso Garcia, empregado da agência funerária, que mora na Rua Morgue. Nasceu em Espanha. É um dos que entraram na casa. Não subiu a escada. Tem os nervos muito delicados e teme as consequências de um violento choque nervoso. Ouviu as vozes que discutiam. A voz grossa era a de um francês. Ele não pôde distinguir o que dizia. A voz aguda era a de um inglês, está bem certo disso. A testemunha não sabe inglês, mas depreende pelo sotaque.
Alberto Montani, doceiro, declarou que foi também dos primeiros que subiram a escada. Ouviu a voz em questão. Ela era rouca e de um francês. O indivíduo que falava parecia fazer repreensões. Ele não pôde adivinhar o que dizia a voz aguda. Falava depressa e às sacudidelas, e assemelhava-se à voz de um russo. Confirma em absoluto os testemunhos precedentes. É italiano; confessa que nunca conversou com um russo.
Algumas testemunhas, de novo instadas, confirmam que as chaminés de todas as casas no quarto andar são muito estreitas para dar passagem a um ser humano. Quando falaram da limpeza das chaminés, referiam-se às escovas de forma cilíndrica de que se servem para limpá-las. Fizeram-nas passar de cima para baixo, em todos os tubos da chaminé. Não há nas traseiras nenhuma passagem que tenha podido facilitar a fuga de um assassino enquanto as testemunhas subiam a escada. O corpo da menina L’Espanaye estava solidamente entalado na chaminé, pois que foi preciso, para a retirar, que quatro ou cinco das testemunhas empregassem as suas forças.
Paul Dumas, médico, depôs que foi chamado de manhãzinha para examinar os cadáveres. Permaneciam ambos sobre poças de sangue, na cama do quarto onde tinha sido encontrada a menina L’Espanay e. O corpo da jovem estava muitíssimo pisado e escoriado. Estas particularidades explicam-se pelo facto de a terem introduzido na chaminé. A garganta estava singularmente esfolada. Havia precisamente por baixo do queixo, várias arranhadelas profundas, com uma série de manchas lívidas, resultante evidente da pressão dos dedos. A cara estava terrivelmente pálida e os globos dos olhos saíam das órbitas. A língua achava-se cortada pelo meio. Tinha uma grande pisadura na cavidade do estômago produzida pela pressão de um joelho. Na opinião de M. Dumas a menina L’Espanay e fora estrangulada por um ou por vários indivíduos desconhecidos. O corpo da mãe estava horrivelmente mutilado. Todos os ossos da perna e do braço esquerdo mais ou menos despedaçados; a tíbia esquerda partida em esquírolas, assim como as costelas do mesmo lado. Todo o corpo pisado e descorado. Era impossível explicar-se como semelhantes pancadas tivessem sido dadas. Uma pesada maça de madeira ou uma larga pinça de ferro, uma arma grossa e contundente não teria produzido semelhante resultado, se manejada pelas mãos de um homem excessivamente robusto. Fosse qual fosse a arma, nenhuma mulher poderia ter dado tais pancadas. A cabeça da defunta, quando a testemunha a viu, estava completamente separada do tronco e, como o resto — estranhamente maltratada. A garganta fora, evidentemente, cortada por um instrumento muito afiado, provavelmente por uma navalha.
Alexandre Étienne, cirurgião, foi chamado ao mesmo tempo que M. Dumas para observar os cadáveres; confirma o testemunho e a opinião de M. Dumas.
Ainda que várias pessoas tenham sido interrogadas, não se pôde obter nenhuma outra informação de qualquer valor. Jamais um assassínio tão misterioso, tão intrincado, fora cometido em Paris, se na verdade houve assassínio.
A Polícia está absolutamente desorientada, caso bastante corrente em assuntos desta natureza. E verdadeiramente impossível encontrar um indício deste caso.


A edição da noite fazia saber que reinava uma agitação permanente no bairro de Saint-Roch, que os lugares tinham sido objeto de um segundo exame, que as testemunhas tinham sido de novo interrogadas, mas tudo isso sem resultado. No entanto, um post scriptum anunciava que Adolphe Lebon, o empregado do banco, fora preso e encarcerado, se bem que nada nos fatos já conhecidos parecesse suficiente para o incriminar.



continua na página 342...

__________________

Edgar Allan Poe (nascido Edgar Poe; Boston, Massachusetts, Estados Unidos, 19 de Janeiro de 1809 — Baltimore, Maryland, Estados Unidos, 7 de Outubro de 1849) foi um autor, poeta, editor e crítico literário estadunidense, integrante do movimento romântico estadunidense. Conhecido por suas histórias que envolvem o mistério e o macabro, Poe foi um dos primeiros escritores americanos de contos e é geralmente considerado o inventor do gênero ficção policial, também recebendo crédito por sua contribuição ao emergente gênero de ficção científica. Ele foi o primeiro escritor americano conhecido por tentar ganhar a vida através da escrita por si só, resultando em uma vida e carreira financeiramente difíceis.
Ele nasceu como Edgar Poe, em Boston, Massachusetts; quando jovem, ficou órfão de mãe, que morreu pouco depois de seu pai abandonar a família. Poe foi acolhido por Francis Allan e o seu marido John Allan, de Richmond, Virginia, mas nunca foi formalmente adotado. Ele frequentou a Universidade da Virgínia por um semestre, passando a maior parte do tempo entre bebidas e mulheres. Nesse período, teve uma séria discussão com seu pai adotivo e fugiu de casa para se alistar nas forças armadas, onde serviu durante dois anos antes de ser dispensado. Depois de falhar como cadete em West Point, deixou a sua família adotiva. Sua carreira começou humildemente com a publicação de uma coleção anônima de poemas, Tamerlane and Other Poems (1827).
Poe mudou seu foco para a prosa e passou os próximos anos trabalhando para revistas e jornais, tornando-se conhecido por seu próprio estilo de crítica literária. Seu trabalho o obrigou a se mudar para diversas cidades, incluindo Baltimore, Filadélfia e Nova Iorque. Em Baltimore, casou-se com Virginia Clemm, sua prima de 13 anos de idade. Em 1845, Poe publicou seu poema The Raven, foi um sucesso instantâneo. Sua esposa morreu de tuberculose dois anos após a publicação. Ele começou a planejar a criação de seu próprio jornal, The Penn (posteriormente renomeado para The Stylus), porém, em 7 de outubro de 1849, aos 40 anos, morreu antes que pudesse ser produzido. A causa de sua morte é desconhecida e foi por diversas vezes atribuída ao álcool, congestão cerebral, cólera, drogas, doenças cardiovasculares, raiva, suicídio, tuberculose entre outros agentes.
Poe e suas obras influenciaram a literatura nos Estados Unidos e ao redor do mundo, bem como em campos especializados, tais como a cosmologia e a criptografia. Poe e seu trabalho aparecem ao longo da cultura popular na literatura, música, filmes e televisão. Várias de suas casas são dedicadas como museus atualmente.


____________________

Edgar Allan Poe
CONTOS
Originalmente publicados entre 1831 e 1849
_____________________

Leia também:

Edgar Allan Poe - Contos: MetzengersteinEdgar Allan Poe - Contos: Silêncio
Edgar Allan Poe - Contos: Um Manuscrito encontrado numa Garrafa
Edgar Allan Poe - Contos: A Entrevista
Edgar Allan Poe - Contos: Berenice (começo)
Edgar Allan Poe - Contos: Morella
Edgar Allan Poe - Contos: O Rei Peste
Edgar Allan Poe - Contos: Um Homem na Lua (01)
Edgar Allan Poe - Contos: A Sombra
Edgar Allan Poe - Contos: Aventuras de Arthur Gordon Pym (Prefácio)
Edgar Allan Poe - Contos: Ligeia (1)
Edgar Allan Poe - Contos: Os Crimes da Rua Morgue (02)


Nenhum comentário:

Postar um comentário