sexta-feira, 10 de fevereiro de 2023

Chico Buarque - Ópera do Malandro / Segundo Ato - Cena 2 (2b)

 Ópera do malandro



Chico Buarque 
 

Ópera do malandro
americanismo: da pirataria à modernização autoritária (e o que se pode seguir)
 

"A multidão vai estar é seduzida" — Teresinha Fernandes de Duran


SEGUNDO ATO

CENA 2


A orquestra ataca a introdução em ritmo de foxtrot; as mulheres vão cantar calçando as suas meias.
As putas cantam "Ai, se Eles Me Pegam Agora".


Ai, se mamãe me pega agora
De anágua e de combinação
Será que ela me leva embora
Ou não
Será que vai ficar sentida
Será que vai me dar razão
Chorar sua vida vivida
Em vão
Será que faz mil caras feias
Será que vai passar carão
Será que calça as minhas meias
E sai deslizando
Pelo salão
Eu quero que mamãe me veja
Pintando a boca em coração
Será que vai morrer de inveja
Ou não
Ai, se o papai me pega agora
Abrindo o último botão
Será que ele me leva embora
Ou não
Será que fica enfurecido
Será que vai me dar razão
Chorar o seu tempo vivido
Em vão Será que ele me trata a tapa
E me sapeca um pescoção
Ou abre um cabaré na Lapa
E aí me contrata
Como atração
Será que me põe de castigo
Será que ele me estende a mão
Será que o pai dança comigo
Ou não


Max executa um solo de sapateado; em seguida elas retomam a canção.


Será que me põe de castigo
Será que ele me estende a mão
Será que o pai dança comigo
Ou não






Max recomeça a sapatear; estrondo na porta; entra Vitória, seguida de Chaves e seus policiais; as putas recuam, amedrontadas, enquanto Max continua sapateando.


VITÓRIA
Ah, é? Sabe o que é que vocês são? São umas meretrizes! E estão multadas em sessenta por cento dos vencimentos! Inspetor Chaves, prenda esse homem!


Max segue sapateando; quando Vitória aponta em sua direção, aproveita para puxá-la pela mão e fazê-la dançar uns passos involuntários; Chaves tenta interromper a dança mas só o consegue dando um tiro no chão.


MAX
Que é isso? Faroeste? Empresta aqui. (Pega o revólver de Chaves e o examina) Ah, eu logo vi. Isto é uma raridade, Roy Rogers, quer vender? Um colt! Mas, vem cá, é com esta peça que a polícia carioca pretende proteger a sociedade? Não, Tigreza, assim você me deixa encabulado. . .

VITÓRIA
Tira o revólver dele, tira!

MAX
Pode ficar com o trabuco, minha senhora. Olha aqui, Chaves, eu tenho um presentinho pra você. . . (Tira uma pistola do bolso do paletó)

VITÓRIA
Eu atiro! Eu atiro! Cadê o gatilho?

MAX
Esta é uma mauser, inspetor. Cuidado que é automática.

VITÓRIA
As algemas! Amarra esse monstro!

Chaves acena para os policiais que algemam Max.

MAX
Só queria dizer uma coisa, inspetor. Eu e as meninas...

VITÓRIA
Meninas, cadê os cartazes?

Uma a uma, hesitantemente, elas vão levantando os cartazes.
MAX
Nós conversamos sobre essa palhaçada de desfile. . .

VITÓRIA
Que passeata mais espetaculosa! Já tinha visto os cartazes, inspetor?

Entram os capangas de Max empunhando novos cartazes

MAX
Que é que é isso, macacada? Por acaso vocês também embarcaram nessa bosta de passeata?

BEN
Nós e a cambada toda que tava coçando saco lá no cais do porto.

MAX
Espera aí, gente, vocês são os meus amigos. . .

JOHNNY
Amigos... Tua mulher botou todo mundo no olho da rua.

BEN
Disse que a gente tava sem know-how...

PHILLIP
Enquanto você pagou eu fui cem por cento. Agora quem tá pagando é o Duran! E ele prometeu outros biscates pra turma.

Chaves gesticula para os policiais que empurram Max para fora, seguidos de Vitória.

SHIRLEY
Que feio, gente! Isso é traição.

DORINHA
Olha quem fala. . .

JUSSARA Você deixa de besteira, ô, Shirley Paquete! Desde quando tem feio e tem bonito pra fodido? Tem certo? Tem errado? Os homens inventaram um jeito batata de regular a máquina do fodido. O corpo do fodido tá desarranjado dum jeito que sente com a cabeça, pensa com a barriga e caga pelo coração.

Entra Dóris Pelanca, toda molhada e desgrenhada.

DÓRIS
Ei, gente... Sou eu, a Dóris. . . Dóris Pelanca...

SHIRLEY
Dóris! O que é que houve, mulher?

DÓRIS
Tô com fome... (Estende-se numa poltrona).

DORINHA
Aí não, Dóris, que você molha tudo! Shirley, vê lá um prato de sopa pra ela. (Levanta Dóris, senta-a no chão) Foi polícia?

DÓRIS
Não, foram uns moços, cinco. Eu disse cinquenta mil-réis. Não tá caro, certo? Dava dez por cabeça. Eles começaram a rir. Abati pra vinte e cinco. Aí então é que eles se cagaram de rir. . . E foi pela gargalhada deles que eu descobri que já não podia ser considerada uma puta. Era pedinte, era meleca, era um molambo. Me bateram na cara, me chutaram a bunda e me jogaram no canal do Mangue... Bem feito!

SHIRLEY
A sopa, Dóris.

FICHINHA
É de letrinha.

DORINHA
É a vida, mulher. Quando eu sair daqui, acho que me escondo, me meto num asilo de louco, me visto de preto, me enveneno, faço tudo menos putear. . . É a vida, mulher.

JUSSARA
É a vida o cacete, Dorinha. É o safado do Duran que fez isso com ela!

DORINHA
Foi o Duran que te tirou da cadeia, Jussara!

JUSSARA
Foda-se o Duran!

DÓRIS
Não fala assim do patrão, menina. Benze a boca e agradece aos céus que ele te dá emprego e tudo... Sabe que ele convidou meio Mangue pra desfilar com vocês amanhã no estádio? E ainda paga vinte mil-réis. Vou eu, vai a Bete Minete, a Telma Sanfona, a Nona Titica, a Chica Morcega, a Nega Saliva, a Diva Baiana, vai lá todo o time das veteranas.

JUSSARA
Que bela merda!

FICHINHA
Olha, o Max pode até ser bom de cama. Mas, no fundo no fundo, patrão, feitor e domador de circo é tudo a mesma coisa.

GENERAL
Tudo a mesma coisa. Duran, Max e o escambau, no fim eles acabam se entendendo. E nós, ó!

JOHNNY
Feito a mulher do Max. Deu emprego e ajuda de custo prum monte de pessoal, o tal do sangue novo. E pra gente aqui do sangue estragado, sabe o que ela disse?

BEN
Disse que a gente tava sem know-how.

JUSSARA
Te digo mais. Eu mesma, numa outra encarnação, no dia em que eu for patrão, ah. . . Sai de baixo!


Viola caipira ataca introdução.
Todos cantam "Se Eu Fosse o Teu Patrão".



ELES
Eu te adivinhava
E te cobiçava
E te arrematava em leilão
Te ferrava a boca, morena
Se eu fosse o teu patrão
Ai, eu te tratava Como uma escrava
Ai, eu não te dava perdão
Te rasgava a roupa, morena
Se eu fosse o teu patrão
Eu te encarcerava
Te acorrentava
Te atava ao pé do fogão
Não te dava sopa, morena
Se eu fosse o teu patrão
Eu te encurralava Te dominava
Te violava no chão
Te deixava rota, morena
Se eu fosse o teu patrão
Quando tu quebrava
E tu desmontava
E tu não prestava mais não
Eu comprava outra morena
Se eu fosse o teu patrão

ELAS
Pois eu te pagava direito
Soldo de cidadão
Punha uma medalha em teu peito
Se eu fosse o teu patrão
O tempo passava sereno
E sem reclamação
Tu nem reparava, moreno
Na tua maldição
E tu só pegava veneno
Beijando a minha mão
Ódio te brotava, moreno
Ódio do teu irmão
Teu filho pegava gangrena
Raiva, peste e sezão
Cólera na tua morena
E tu não chiava não
Eu te dava café pequeno
E manteiga no pão
Depois te afagava, moreno
Como se afaga um cão
Eu sempre te dava esperança
Dum futuro hão
Tu me idolatrava, criança
Se eu fosse o teu patrão





 

continua pág 97 ...

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NOTA 

O texto da "Ópera do Malandro" ê baseado na "Ópera dos Mendigos" (1728), de John Gay, e na "Ópera dos Três Vinténs" (1928), de Bertolt Brecht e Kurt Weill. O trabalho partiu de uma análise dessas duas peças conduzida por Luís Antônio Martinez Corrêa e que contou com a colaboração de Maurício Sette, Marieta Severo, Rita Murtinho, Carlos Gregório e, posteriormente, Maurício Arraes. A  equipe também cooperou na realização do texto final através de leituras, críticas e sugestões. Nessa etapa do trabalho, muito nos valeram os filmes "Ópera dos Três Vinténs", de Pabst, e "Getúlio Vargas", de Ana Carolina, os estudos de Bernard Dort ("O Teatro e Sua Realidade"), as memórias de Madame Satã, bem como a amizade e o testemunho de Grande Otelo. Contamos ainda com a orientação do prof. Manoel Maurício de Albuquerque para uma melhor percepção dos diferentes momentos históricos em que se passam as três "óperas". E o prof. Luiz Werneck Vianna contribuiu com observações muito esclarecedoras. Esta peça é dedicada à lembrança de Paulo Pontes. 

Chico Buarque Rio, junho de 1978


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Leia também:

Chico Buarque - Ópera do Malandro (prefácio e nota)
Chico Buarque - Ópera do Malandro (introdução)
Chico Buarque - Ópera do Malandro / Primeiro Ato - Cena 1 (1a)
Chico Buarque - Ópera do Malandro / Primeiro Ato - Cena 1 (1b)
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Chico Buarque - Ópera do Malandro / Segundo Ato - Cena 1
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Chico Buarque - foi musicando o poema "Morte e Vida Severina", de João Cabral de Mello Neto, encenado pelo grupo universitário TUCA, que Chico Buarque se revelou como compositor, dois anos antes do sucesso de "A Banda", "Roda Viva", sua primeira peça, teve uma carreira tumultuada: estreou no Rio, em 1967, com um sucesso que desgostou a muita gente; em São Paulo, os atores foram espancados durante o espetáculo e, em Porto Alegre, sequestraram a atriz Elizabeth Gasper. A peça acabou proibida pela censura.
Chico só voltou ao teatro em 1972. OU melhor: tentou voltar.. Depois de muito tempo e dinheiro gastos com ensaios e produção, "Calabar - O Elogio da Traição", teve sua encenação vetada. E a censura foi além: proibiu a imprensa de fazer qualquer referência à obra, aos autores e até ao próprio Calabar. Mas, transcrita em livro, a peça esgotou-se rapidamente.
No ano seguinte, outro sucesso de venda: "Fazendo Modelo - Uma Novela Pecuária". E, em 1975, apesar de inúmeros cortes, "Gota d'Água" chegou aos palcos de Rio e São Paulo, onde ficou por dois anos. Agora, aí está a "Ópera do Malandro", que estreou no Rio  a 26 de julho de 1978, e que é mais uma prova do gênio de Chico Buarque de Hollanda.


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