segunda-feira, 15 de abril de 2019

Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Segundo - A Queda I — No fim de um dia de marcha

Victor Hugo - Os Miseráveis


Primeira Parte - Fantine

Livro Segundo - A Queda



I — 
No fim de um dia de marcha



Num dos primeiros dias do mês de Outubro de 1815, uma hora antes do pôr-do-Sol, entrou na cidade de Digne um homem que viajava apé. Os raros habitantes que a essa hora se encontravam às janelas ou às portas de suas casas, observavam o viajante com uma espécie de inquietação. Seria, na verdade, difícil encontrar viandante de aspecto mais miserável. 

Era um homem ainda no vigor da idade, de estatura mediana e robusto. Poderia ter, quando muito, quarenta e seis ou quarenta e oito anos. Escondia-lhe parte do rosto, crestado pelo sol e a escorrer em suor, um boné de pala de couro A camisa, de linho grosseiro e amarelado, apertada no pescoço por uma pequena âncora de prata, deixava-lhe a descoberto o peito cabeludo; trajava calças de com azul, muito velhas, coçadas, brancas num joelho e rotas no outro, uma esfarrapada blusa parda, tendo num dos cotovelos um remendo de pano verde, cosido com cordel. Servia-lhe de gravata um lenço torcido, enrolado em volta do pescoço. Calçava sapatos forrados, sem meias, e trazia às costas uma volumosa mochila de soldado, em bom estado e muito apertada, e na mão um enorme cajado nodoso. Afora isto, trazia a barba crescida, os cabelos eram raros e eriçados, mas parecia não terem sido cortados havia muito tempo. 

O suor, o calor, a poeira, a viagem a pé, acrescentavam ainda uma estranha sordidez a este conjunto de andrajos. 

Ninguém o conhecia. Era evidentemente um forasteiro. De onde viria? Do Meio Dia; talvez da beira-mar, pois entrava em Digne pela mesma rua onde, sete meses antes, tinham visto passar Napoleão, ao ir de Cannes para Paris. A julgar pelo cansaço de que dava mostras, aquele homem devia ter caminhado todo o dia. Algumas mulheres do antigo bairro situado à entrada da cidade tinham-no visto parar ao pé das árvores do boulevard Gassendi e beber água na fonte que fica na extremidade do passeio. Grande devia ser a sua sede, pois que, dali a cem passos, alguns rapazes, que foram atrás dele, viram-no beber novamente na fonte da praça do Mercado. 

Chegando à esquina da rua de Poichevert, tomou à esquerda e principiou a caminhar em direção à mairie, para onde entrou. Um quarto de hora depois, tornou a sair. À porta estava sentado um gendarme, no mesmo banco de pedra a que o general Dronot subira no dia 4 de Março, para ler à multidão assustada de Digne a proclamação datada do golfo Juan. O desconhecido tirou o boné e cumprimentou humildemente o gendarme

Em vez de corresponder ao cumprimento, o soldado examinou-o com atenção e, depois de o seguir algum tempo com a vista, entrou na mairie

Havia então em Digne uma excelente estalagem, intitulada A Cruz de Coíbas, cujo proprietário era um tal Jacquin Labarre, homem de muita consideração na cidade, devido ao seu parentesco com outro Labarre, antigo soldado do regimento dos Guias e dono da estalagem dos Três Delfins, em Grenoble, a respeito da qual, por ocasião do desembarque do imperador, tinham corrido na terra numerosos boatos. Contava-se que, em Janeiro desse ano, o general Bertrand, disfarçado em carreteiro, fora ali repetidas vezes, distribuindo, por essa ocasião, a soldados e civis, a uns a condecoração da Legião de Honra, a outros dinheiro às mãos cheias. A realidade é que, na sua chegada a Grenoble, o imperador recusara ir para o palácio da prefeitura e agradecera ao maire, dizendo: 

— Vou para casa de um honrado camarada meu conhecido. 

E foi hospedar-se na estalagem dos Três Delfins. Esta glória do Labarre dos Três Delfins refletia-se a vinte e cinco léguas de distância sobre o Labarre da Cruz de Coíbas. Costumavam dizer na cidade, quando falavam dele: 

— O primo do de Grenoble. 

O desconhecido dirigiu-se, pois, para a estalagem que era a melhor da localidade, e entrou na cozinha, que dava imediatamente para a rua. Os fogões estavam todos acesos. No meio da cozinha, destacava-se a figura do estalajadeiro, que, exercendo conjuntamente as funções de cozinheiro, corria de um lado para o outro, atarefado nos aprestos de excelente jantar destinado aos carreteiros, que se ouviam conversar e rir com grande estrépito na sala próxima. Além dos coelhos e perdizes, cozinhados de diferentes maneiras, estavam também a ser preparadas duas grandes carpas da lagoa de Lauzet e uma truta da lagoa de Alloz. 

O dono da estalagem sentindo abrir a porta e entrar mais um freguês, perguntou, sem tirar os olhos do que estava a fazer: 

— Que deseja o senhor? 

— Comer e dormir — respondeu o desconhecido. 

— Nada mais fácil — tornou o estalajadeiro. E, voltando-se para o recém-chegado, examinou-o dos pés à cabeça e acrescentou: — Pagando! 

O homem tirou da algibeira da blusa uma bolsa e respondeu: 

— Eu tenho dinheiro. 

— Nesse caso, estou às suas ordens. 

O homem tornou a guardar a bolsa, tirou a mochila, encostou-a à porta e foi sentar-se num mocho, junto ao lume, sem largar da mão o cajado. As noites de Outubro em Digne são muito frias. 

Entretanto, o estalajadeiro, andando de um lado para o outro, não deixava de observar o recém-chegado. 

— A que horas se janta? 

— Daqui a pouco — respondeu o estalajadeiro. 

Enquanto o desconhecido se aquecia, de costas voltadas para o digno estalajadeiro Jacquin Labarre, este tirou um lápis da algibeira, rasgou um bocado de um jornal, já antigo, que estava em cima de uma mesa ao pé da janela, escreveu uma ou duas linhas, dobrou-o e, sem o fechar, entregou-o a um rapazinho, que parecia servir-lhe, ao mesmo tempo, de ajudante de cozinha e moço de recados, disse-lhe algumas palavras ao ouvido e o rapaz partiu a correr em direção à mairie

O desconhecido, que não reparara em nada disto, tornou a perguntar: 

— O jantar ainda levará muito tempo? 

— Não tarda — respondeu o estalajadeiro. 

Decorridos alguns minutos, voltou o rapazito. O estalajadeiro desdobrou rapidamente um papel que ele lhe trouxe, como quem esperava uma resposta, pareceu ler com atenção, em seguida abanou a cabeça e ficou um momento pensativo. Por fim, encaminhou-se para o viajante, que parecia embrenhado em fundas reflexões e disse-lhe: 

— Senhor, não posso recolhê-lo. 

— Por quê? — perguntou o homem, levantando-se. — Tem receio de que eu não pague? Se quer, pago adiantado. Já viu que tenho dinheiro. 

— Não se trata disso. 

— Mas então de que se trata? 

— O senhor tem dinheiro. 

— Tenho, bem viu. 

— E eu não tenho quarto para lhe dar. 

— Vou para a cavalariça — replicou tranquilamente o desconhecido. 

— Não pode ser. 

— Por quê? 

— Porque é pequena para os cavalos que lá estão. 

— Então dê-me qualquer canto do palheiro; basta-me um feixe de palha. Veremos isso depois de jantar. 

— Mas eu não lhe posso dar de jantar. 

Esta declaração, feita em tom comedido, mas com firmeza, pareceu muito grave ao desconhecido, que exclamou: 

— Então não quer dar-me de comer? Caminhei desde o nascer do sol, estou morto de fome e de cansaço, depois de uma jornada de doze léguas; prontifico-me a pagar e não hei-de comer? 

— Não tenho nada para lhe dar — respondeu o estalajadeiro. 

O homem soltou uma gargalhada e, voltando-se para o lado dos fogões, exclamou: 

— Não tem nada? E aquilo que ali está? 

— Está tudo reservado. 

— Para quem? 

— Para os senhores carreteiros. 

— Quantos são eles? 

— Doze. 

— Mas a comida que ali está chega para vinte. 

— Eles querem tudo e já o pagaram adiantadamente. 

O desconhecido tornou a sentar-se e disse, sem erguer a voz: 

— Estou numa estalagem e tenho fome, portanto não saio daqui! 

O estalajadeiro aproximou-se dele e disse-lhe num tom de voz que o fez estremecer: 

— O melhor que tem a fazer é ir-se embora! 

O forasteiro, que estava inclinado para o lume a aconchegar as brasas com a ponta do cajado, voltou-se de repente; porém, o estalajadeiro, sem lhe dar tempo a falar, olhou-o fixamente e disse-lhe em voz baixa: 

— Vamos, nada de gastar palavras sem necessidade. Quer que lhe diga quem é? Chama-se Jean Valjean. Quando o vi entrar, desconfiei e mandei perguntar à mairie quem era você. Aqui está a resposta que me deram. Sabe ler? 

Ao mesmo tempo que dizia isto, o estalajadeiro apresentou ao desconhecido o papel que o rapaz lhe trouxera. O homem percorreu-o rapidamente com a vista e o estalajadeiro, após uma pausa, continuou: 

— Eu tenho por costume ser delicado para toda a gente. Por isso, peço-lhe novamente que se vá embora! 

O forasteiro curvou a cabeça, pegou na mochila que tinha posto no chão e saiu da estalagem. 

Encontrando-se na rua, caminhou ao acaso, cosendo-se com as casas, como um homem humilhado e triste. Não olhou para trás uma só vez. Se o tivesse feito, teria visto o estalajadeiro da Cruz de Coíbas no limiar da porta, rodeado por todos os hóspedes que se encontravam na estalagem e das pessoas que passavam na rua naquele momento, falando com vivacidade e apontando-o com o dedo; e, pelos olhares de desconfiança e susto daquele grupo, adivinharia que dentro de pouco tempo a sua chegada seria o assunto de todas as conversas na cidade. 

Porém, ele não viu nada disto. Quem vai profundamente alheado na sua dor, não olha para trás, porque tem a certeza de ser acompanhado pela má sorte que o persegue. Caminhou assim durante algum tempo, embrenhando-se em ruas que não conhecia, esquecendo a própria fadiga, como sucede sempre àqueles a quem a tristeza domina. 

De repente, sentiu o aguilhão da fome. Como a noite se aproximasse, circunvagou a vista em torno de si a ver se descobria um albergue onde encontrasse pousada. A melhor estalagem estava-lhe vedada; o que procurava agora era uma humilde taberna ou algum pobre casebre. Divisou então uma luz ao fim da rua, e à claridade incerta do crepúsculo, notou vagamente um ramo de pinheiro pendurado de uma vara de ferro. Encaminhou-se para lá. Era, com efeito, uma taberna, na rua de Chaffaut. 

O forasteiro parou um momento à porta, examinou pela vidraça o interior da taberna, alumiada por um candeeiro colocado em cima da mesa e por uma grande fogueira que ardia na chaminé, e viu alguns homens a beber e o taberneiro a aquecer-se ao lume, cuja chama fazia ferver uma panela de ferro pendurada num gancho. 

Duas portas dão entrada para esta taberna, que é ao mesmo tempo uma espécie de estalagem. Uma deita para a rua, outra para um pequeno pátio que serve de estrumeira. 

O viajante não ousou entrar pela porta da rua. Entrou para o pátio, tornou a parar, e, levantando timidamente o fecho, abriu a porta e entrou na taberna. 

— Quem está aí? — perguntou o dono da casa. 

— Um homem que quer comer e dormir. 

— Com efeito, aqui há comida e dormida. 

O homem entrou. Todos os que se encontravam a beber se voltaram. De um lado iluminava-o o clarão do candeeiro, do outro o reflexo da fogueira. Enquanto ele se deteve a desatar a mochila, os outros puseram-se a examiná-lo. 

— Temos aqui lume, camarada — disse-lhe o taberneiro —, venha aquecer-se. A ceia, como vê, já ferve.

O homem obedeceu. Foi sentar-se junto da chaminé, estendendo para a fogueira os pés magoados de andar e respirando o apetitoso cheiro que se exalava da panela. O seu rosto, oculto em parte pela pala do boné, tomou uma vaga aparência de satisfação, a par do pungente aspecto que dá o hábito do sofrimento. 

Tinha, contudo, um perfil firme, enérgico e triste. A sua fisionomia era singularmente composta; à primeira vista parecia humilde, mas analisada detidamente parecia severa. Os olhos brilhavam-lhe sob as sobrancelhas como o fogo sob a cinza. 

Um dos homens que estavam sentados à mesa era um peixeiro, o qual, antes de vir para a taberna da rua de Chaffaut, tinha ido deixar o cavalo na estalagem de Labarre. Quisera o acaso que ele, nesse mesmo dia pela manhã, encontrasse um desconhecido de mau aspecto, caminhando entre Brás d’Asse e... (Não nos lembra o nome. Creio que Escoublon). Ora, encontrando-o, o homem, que parecia vir já muito cansado, pedira-lhe que o deixasse ir um bocado a cavalo, ao que o peixeiro não respondeu, apressando o passo.
    
O mesmo peixeiro fazia parte, meia hora antes, do grupo que rodeava Jacquin Labarre, e ele próprio contara o desagradável encontro que vera pela manhã, a quantos se encontravam na Cruz de Coíbas. Assim, pois, mesmo do lugar em que estava, fez um sinal imperceptível ao taberneiro, que se acercou dele, trocando ambos algumas palavras em voz baixa.



Continua...




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Enquanto existir nas leis e nos costumes uma organização social que cria infernos artificiais no seio da civilização, juntando ao destino, divino por natureza, um fatalismo que provém dos homens; enquanto não forem resolvidos os três problemas fundamentais a degradação do homem pela pobreza, o aviltamento da mulher pela fome, a atrofia da criança pelas trevas; enquanto, em certas classes, continuar a asfixia social ou, por outras palavras e sob um ponto de vista mais claro, enquanto houver no mundo ignorância e miséria, não serão de todo inúteis os livros desta natureza. 

Hauteville House, 1862



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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.


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