quinta-feira, 30 de março de 2023

Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Sétimo - O processo de Champmathieu / IV — Formas de sofrimento durante o sono

Victor Hugo - Os Miseráveis


Primeira Parte - Fantine

Livro Sétimo — O processo de Champmathieu


IV — Formas de sofrimento durante o sono


Três horas da manhã acabavam de soar, havendo cinco que daquele modo passeava quase sem interrupção, quando se deixou cair numa cadeira.Adormeceu e teve um sonho, sonho que, como a maior parte deles, não tinha ligação com a situação em que ele se encontrava, senão pelo que quer que era de funesto e pungente, que lhe causou grande impressão. De tal modo o feriu aquele pesadelo, que escreveu mais tarde, e é esta uma das coisas que deixou escritas por sua própria mão. Julgamo-nos no dever de o transcrever aqui textualmente. Qualquer que ele seja, seria incompleta a história desta noite se o omitíssemos. É a sombria aventura de uma alma doente.
Ei-lo, pois. No sobrescrito, achamos escritas estas palavras: O sonho que eu tive naquela noite.


Encontrava-me numa grande e triste campina, sem erva nem vegetação, parecendo-me que não era nem dia nem noite. Andava a passear com meu irmão, o irmão dos meus anos da infância, esse irmão, em quem, devo dizê-lo, nunca penso, e do qual já quase me não lembro.
Conversávamos, interrompidos às vezes por uma outra pessoa que passava, falando de uma vizinha que tivemos noutro tempo, a qual trabalhava sempre com a janela aberta, desde que morava na rua, e, ao mesmo tempo que conversávamos, sentíamos frio proveniente daquela janela aberta. Não se via uma só árvore em toda a extensão da campina.
Nisto passou perto de nós um homem, cor de cinza, completamente nu, montado num cavalo cor de terra. Este homem não tinha cabelos; via-se-lhe o crânio, e nele as ramificações azuladas das veias. Trazia na mão uma varinha flexível como um vime e pesada como ferro. Este cavaleiro passou por nós e não nos disse nada. Meu irmão disse-me: «Tomemos pelo carreiro».
Havia ali um carreiro em que se não via um pé de tojo, nem um bocado de musgo. Era tudo cor de terra, mesmo o céu.
Ao cabo de alguns passos dados, como ninguém me respondia, quando eu falava, olhei e vi que meu irmão já não ia a meu lado. Entrei então numa aldeia que avistei, lembrando-me que devia ser ali Romainville (porque havia de ser Romainville? 1 ).
A primeira rua em que entrei estava deserta. Entrei noutra. Por detrás do ângulo formado pelas duas ruas estava um homem de pé, encostado à parede.
Perguntei a este homem: «Que terra é esta? Onde estou eu?» O homem não me respondeu. Vi a porta duma casa aberta e entrei. O primeiro quarto estava deserto: entrei no segundo. Por detrás da porta deste quarto, estava outro homem em pé, encostado à parede. Perguntei ao homem: «De quem é esta casa? Onde estou eu?» O homem não deu resposta. A casa tinha um jardim. Passei para o jardim, que também estava deserto.
Por detrás da primeira árvore encontrei ainda um homem em pé. Perguntei-lhe: «Que jardim é este? Onde estou eu?» O homem não respondeu. Percorri a aldeia e conheci que era uma cidade. Todas as ruas estavam desertas e todas as portas abertas. Não passava pelas ruas, não se encontrava nas casas, não passeava no jardim, um único vivente; mas atrás de cada ângulo do muro, atrás de cada porta e de cada árvore estava um homem, de pé, e que não falava. Não se via senão um por cada vez, mas todos eles me viam passar.
Saí da cidade e comecei a percorrer os campos. Passado algum tempo, voltei-me, e vi atrás de mim grande multidão. Reconheci todos os homens que tinha visto na cidade. Tinham umas cabeças extraordinárias; pareciam não se apressar, e contudo andavam mais do que eu. Os seus passos não produziam o mínimo ruído. Num momento fui alcançado e rodeado por aquela multidão. Os rostos dos homens que a compunham eram cor de terra.
Então, o primeiro que vira quando entrei na cidade e a quem fizera a primeira pergunta, dirigiu-me a palavra, dizendo-me: «Aonde vai? Porventura não sabe que está morto há muito tempo?»
Abri a boca para responder e vi que não tinha ninguém ao pé de mim.



Madelaine acordou. Estava gelado.
As vidraças da sacada aberta volteavam nos gonzos ao sabor de um vento frio como a aragem da manhã. Apagara-se o lume e a vela estava quase toda gasta. Era ainda noite fechada.
Levantou-se e encaminhou-se para a janela. No céu continuava a não se ver uma só estrela. Ao chegar à janela, de onde se avistava o pátio da casa e a rua, ressoou-lhe de súbito aos ouvidos um ruído seco e duro, que lhe fez baixar os olhos para o chão, e viu em baixo duas estrelas vermelhas, cujos raios se alongavam e encolhiam extravagantemente no meio das sombras.
Como tivesse ainda o pensamento meio submerso na neblina dos sonhos, disse consigo:

— Não as há no céu porque estão agora na terra.

Entretanto, dissipou-se esta perturbação, e um segundo ruído semelhante ao primeiro acabou de o despertar; olhou e reconheceu que as duas estrelas eram as lanternas dum veículo. Era um tilbury puxado por um cavalo branco e pequeno. O ruído que ouvira era produzido pelas ferraduras do cavalo batendo na calçada.
«Que carruagem é esta?» pensou ele. «Quem será tão cedo?»
Neste momento bateram brandamente à porta do quarto. Madelaine estremeceu dos pés à cabeça e gritou com voz terrível:

— Quem está aí?

— Sou eu, senhor maire — responderam de fora.

Madelaine reconheceu a voz da velha porteira.

— Que deseja? — tornou ele.

— Senhor maire, são quase cinco horas da manhã.

— Que tenho eu com isso?

— É que já ali está o cabriolet.

— Qual cabriolet?

— O tilbury.

— Qual tilbury?

— O senhor maire não mandou vir um tilbury?

— Não — disse ele.

— O cocheiro diz que vem procurar o senhor maire.

— Qual cocheiro?

— O do mestre Scaufflaire.

— Scaufflaire?

Este nome produziu-lhe um estremecimento, como o que lhe produziria o cair dum raio. Se a velhota o visse naquele momento ficaria espantada.
Seguiu-se prolongado silêncio. Madelaine examinava com ar estúpido a chama da vela, tirando do pavio bocadinhos de cera derretida, e rolando-os entre os dedos. A porteira continuava a esperar. Ouvindo tudo tão silencioso, arriscou-se a erguer a voz:

— Senhor maire, o que hei-de dizer ao cocheiro?

— Diga-lhe que já desço.


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1 — Este parêntesis é do próprio punho de Jean Valjean.
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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.

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Os Miseráveis: Fantine, Livro Sétimo -   IV — Formas de sofrimento durante o sono


Victor Hugo

OS MISERÁVEIS

Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira (1851-1888)


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