quarta-feira, 28 de setembro de 2022

Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Sexto - Javert / I — Princípio de repouso

Victor Hugo - Os Miseráveis


Primeira Parte - Fantine

Livro Sexto — Javert



I — Princípio de repouso  


Madelaine mandou transportar Fantine para a enfermaria que estabelecera na sua própria casa e confiou-a aos cuidados das duas irmãs de caridade, que trataram imediatamente de a deitar. Sobreviera-lhe uma febre ardente, de modo que passou parte da noite a delirar e a falar em voz alta. Por fim, adormeceu.
Quando no dia seguinte, por volta do meio-dia acordou, ouviu o sussurro de uma respiração muito próximo do leito, desviou o cortinado e deu com os olhos em Madelaine, de pé e olhando para o que quer que fosse que lhe ficava em frente Naquele olhar lia-se a piedade, a aflição e a súplica; Fantine seguiu lhe a direção e viu que se dirigia para um crucifixo pregado na parede.
Madelaine estava transfigurado aos olhos de Fantine. Afigurava-se vê-lo rodeado de luz e absorvido numa oração. Contemplou-o durante muito tempo sem o interromper, até que por fim disse-lhe timidamente:

— Que está aí a fazer?

Havia uma hora que Madelaine ali estava, esperando que Fantine acordasse. Pegou-lhe na mão, tomou-lhe o pulso e respondeu:

— Como está?

— Muito bem, dormi bastante e creio que estou melhor. Isto não há de ser nada.

Madelaine continuou, respondendo à pergunta que ela primeiro lhe fizera, como se ainda a ouvisse:

— Eu orava ao mártir que está no céu. 
— e acrescentou no seu pensamento: «Pela mártir que está na terra».

Madelaine, que levara a noite e a manhã a colher informações, já sabia tudo, conhecia a história de Fantine nos seus mais pungentes pormenores. Continuou, pois:

— Pobre mãe, o que tem sofrido! Mas não se lastime agora, porque tem o dote dos escolhidos da mão de Deus. É assim que os homens fazem anjos. Mas não é por culpa deles; não sabem consegui-lo de outro modo. Esse inferno de que saiu é a primeira forma do céu. Era indispensável começar assim.

E suspirou profundamente. Fantine, porém, sorria-lhe, com esse sorriso sublime a que faltavam dois dentes.

Naquela mesma noite, Javert escreveu uma carta que foi pessoalmente entregar na administração do correio de Montreuil-sur-mer no dia seguinte pela manhã. Era para Paris e ia dirigida ao senhor Chafoouillet, secretário do senhor prefeito da polícia. Como o caso passado na repartição de polícia se havia divulgado, tanto os empregados do correio, como outras pessoas que viram a carta antes de seguir o seu destino e reconheceram a letra de Javert, julgaram que era a sua demissão o que ele enviava.
Madelaine apressou-se a escrever aos Thenardier, aos quais Fantine devia cento e vinte francos e a quem ele remeteu trezentos, dizendo-lhes que se pagassem daquela quantia e trouxessem logo a criança a Montreuil-sur-mer, onde sua mãe doente a reclamava.
Os Thenardier ficaram deslumbrados.

— Com a fortuna! — exclamou o estalajadeiro, dirigindo-se à mulher.

— Não devemos entregar a pequena, parece-me que vai ser uma mina. Eu já sei o que isto é: foi algum papalvo que se agradou da mãe.

A sua resposta foi uma conta de quinhentos e tantos francos. Nesta conta figuravam, deitando a mais de trezentos francos, duas verbas incontestáveis: uma de um médico e outra de um boticário, os quais tinham sido, respectivamente, assistente e fornecedor dos remédios em duas longas doenças de Azelma e Eponine. Cosette nunca estivera doente. Bastava portanto uma substituição de nomes para o negócio ser perfeito.
Thenardier escreveu no fim da carta: Recebi por conta trezentos francos.
Madelaine enviou imediatamente mais trezentos francos, recomendando que não se demorassem em mandar Cosette.

— Pois sim! Agora é que não a devemos largar!

Entretanto, Fantine não melhorava e continuava a permanecer na enfermaria.
As irmãs de caridade só com repugnância é que a princípio aceitaram e trataram «daquela mulher perdida». Quem tem visto os baixos-relevos de Reims, lembra-se da intumescência do lábio inferior das virgens castas olhando para as mulheres impudicas. Este antigo desprezo das vestais pelas mulheres da vida fácil é um dos mais profundos instintos da dignidade feminina; sentiram-no as irmãs, com o acréscimo de intensidade que lhes dá a religião. Fantine desarmou-as, porém, em poucos dias, com as suas palavras cheias de doçura e humildade e com aquele enternecimento a que se não pode vedar o coração em presença de uma mulher que é mãe.
Um dia, as irmãs ouviram-na dizer, no meio do delírio da febre:

— Tenho sido uma pecadora, mas se chegar a ter comigo a minha filha, é porque Deus me perdoou. Enquanto estive na má vida, não quis Cosette na minha companhia, porque não poderia suportar o espanto triste dos seus belos olhos. Contudo, foi por ela que eu me fiz má, e é talvez por isso que Deus me perdoou. Sentirei a bênção do Senhor quando ela aqui estiver vendo a sua inocência, sentir-me-ei melhor. Ela não sabe nada. É um anjo, minhas irmãs. Naquela idade, ainda se conservam as asas.

Madelaine ia vê-la duas vezes por dia, e ela perguntava-lhe sempre:

— Quando verei a minha Cosette?

— Talvez amanhã — respondia-lhe ele. — Deve chegar de um momento para o outro.

E o rosto pálido da mãe resplandecia.

— Que felicidade eu vou ter! — dizia ela.

Fantine não se restabelecia, pelo contrário, o seu estado agravava-se de semana para semana. Aquele punhado de neve aplicado sobre a pele nua, entre as duas omoplatas, determinara uma súbita supressão de transpiração, em virtude da qual veio a declarar-se com a maior violência a doença que ela havia muitos anos como que chocava dentro de si. Começavam então a seguir-se as belas indicações de Laeinnec no estudo e tratamento das doenças de peito. O médico observou Fantine e abanara a cabeça.
Madelaine perguntou ao clínico:

— Então?

— Ela não tem uma filha a quem deseja ver? — inquiriu o médico.

— Tem.

— Nesse caso apresse-se em a mandar buscar.

Madelaine sentiu um estremecimento.

— O que disse o médico? — perguntou-lhe Fantine.

Madelaine respondeu, esforçando-se por sorrir:

— Disse que lhe mandasse buscar a sua filha, porque bastaria isso para lhe dar saúde.

— E tem razão! — replicou ela. — Mas que interesse têm os Thenardier para se demorarem tanto em a trazer? Não pode tardar. Vejo finalmente a felicidade perto de mim.

Entretanto, os Thenardier não largavam a pequena, dando para isso uma série de péssimas razões. Cosette andava um pouco adoentada, para se expor ao risco de fazer a jornada no Inverno. E, além disso, havia ainda umas dividazitas importunas na terra, cujas contas andava a ajuntar, etc., etc.

— Mandarei alguém buscar Cosette — disse Madelaine — e, se for preciso, irei eu mesmo.

Sob a indicação de Fantine, escreveu a seguinte carta, fazendo-a depois assinar:

Senhor Thenardier:
Queira ter a bondade de entregar Cosette ao portador desta carta.
As pequenas dívidas de que fala ser-lhe-ão todas pagas.
Sou com a maior consideração Fantine.

Entretanto, sobreveio um grave incidente. Por mais que lidemos para modelar com a perfeição que nos é possível essa misteriosa massa de granito de que a nossa vida é feita, jamais chegamos a fazer-lhe desaparecer o véu negro, nela impresso pela mão do destino.


___________________



Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.


_________________________

Leia também:

Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine. Livro Primeiro - I — O abade Myriel
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Segundo - I — No fim de um dia de marcha
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Terceiro -  I — O ano de 1817
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Quarto -    I  Confiar é por vezes abandonar
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Sexto   - Javerte       — I
_________________



Victor Hugo

OS MISERÁVEIS

Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira (1851-1888)

Nenhum comentário:

Postar um comentário