Victor Hugo - Os Miseráveis
Primeira Parte - Fantine
Livro Sétimo — O processo de Champmathieu
II — Perspicácia de mestre Scaufflaire
O caminho mais curto para ir a casa deste Scaufflaire, era tomar por uma rua pouco
frequentada, onde ficava o presbitério da freguesia em que Madelaine habitava, e cujo
abade, segundo se dizia, era um homem digno, respeitável e de bom conselho. No
momento em que Madelaine chegou em frente do (presbitério, ia a passar na rua uma
única pessoa, a qual reparou no seguinte: O maire, depois de ter passado para lá da
residência paroquial, parou, esteve imóvel durante algum tempo, voltou depois para trás
e caminhou de novo até ao presbitério; em seguida, levando a mão à argola de ferro que
havia na porta, levantou-a, suspendendo logo o movimento, permaneceu por um
instante pensativo e, passados alguns segundos, em vez de deixar cair de repente a
argola, pô-la brandamente em descanso e continuou o seu caminho, com uma certa
pressa que antes não parecia levar.
Madelaine encontrou em casa mestre Scaufflaire, ocupado em consertar uns arreios.
— Mestre Scaufflaire — perguntou ele —, tem algum cavalo que seja bom?
— Senhor maire — disse o flamengo —, todos os meus cavalos são bons. O que
entende o senhor por um bom cavalo?
— Entendo que é um bom cavalo o que pode andar vinte léguas num dia.
— Diabo! Vinte léguas!
— Sim.
— Atrelado a um cabriolet?
— Sim.
— E quanto tempo descansará ele depois?
— Em caso de necessidade, deve poder continuar no outro dia.
— Para fazer outra vez a mesma caminhada?
— Sim.
— Diabo! Diabo! E são vinte léguas?
Madelaine tirou do bolso o papel em que tomara os apontamentos e mostrou-os ao
flamengo. Eram os números 5, 6, 8 1/2.
— Bem vê — disse ele. — Soma dezenove e meia, que é o mesmo que dizer vinte
léguas.
— Senhor maire — tornou o flamengo — tenho com que o servir. Já deve ter visto
passar algumas vezes o meu cavalo branco; é um animal pequeno, do Bas-Bolognais, mas
muito fogoso. Quiseram primeiro fazê-lo cavalo de sela, mas ninguém foi capaz de o
montar que não fosse para o chão. Julgaram-no vicioso e não sabiam o que haviam de
fazer dele Foi então que o comprei e meti-o logo ao cabriolet. Era o que ele queria,
tornou-se manso como um cordeiro e ligeiro como o vento. Cada um tem a sua ambição.
Lá para sela é que ele não estava disposto. Puxar a um carro, quanto quiserem; levar
alguém em cima, isso é que não.
— E será capaz de fazer a jornada?
— Andará as vinte léguas, sempre a galope e em menos de oito horas. Mas vou dizer-lhe as condições.
— Queira dizer.
— Em primeiro lugar, dar-lhe-á uma hora de descanso a meio caminho; comerá a
ração, mas estará alguém ao pé dele, para evitar que o moço da estalagem lhe roube a
aveia, porque tenho notado muitas vezes que nas estalagens é quase sempre a aveia
mais bebida pelos moços do que comida pelos cavalos.
— Tomar-se-á sentido nisso.
— Em segundo lugar, o... cabriolet é para o senhor maire?
— É.
— O senhor maire sabe guiá-lo?
— Sei.
— Nesse caso, o senhor maire viajará só e sem bagagem, para não sobrecarregar o
cavalo.
— Está combinado.
— Mas não levando ninguém consigo, será obrigado a dar-se ao incómodo de vigiar
por si mesmo a ração.
— Não tenho dúvida nisso.
— Dar-me-á trinta francos por dia, incluindo os de descanso, nem menos um real,
ficando o sustento do animal por conta do senhor maire.
Madelaine tirou três napoleões da bolsa e pô-los sobre a mesa.
— Aqui estão dois dias adiantados.
— Além do que já disse, um cabriolet seria demasiadamente pesado e fatigaria o
cavalo em tão grande extensão. Era preciso que o senhor maire acedesse a fazer
a jornada num pequeno tilbury que aí tenho.
— Não vejo nisso inconveniente.
— É muito ligeiro, mas descoberto.
— Isso para mim é indiferente.
— Mas o senhor maire já reflectiu que estamos no Inverno?
Madelaine não respondeu e o flamengo continuou:
— Que faz muito frio? Que pode chover?
Madelaine ergueu a cabeça e disse:
— O cavalo e o tilbury que estejam amanhã, às quatro horas e meia da madrugada, à
porta da minha casa.
— Está combinado, senhor maire — respondeu Scaufflaire.
Depois, raspando com a
unha do polegar uma nódoa que havia na mesa, continuou com o ar de indiferença que
os flamengos sabem tão bem aliar à finura de que são dotados.
— Mas, agora me
lembro. O senhor maire não me disse qual é o seu destino. Aonde vai?
Mestre Scaufflaire desde o principio da conversa que não pensava noutra coisa, mas
não sabia porque não ousara ainda fazer esta pergunta.
— O cavalo tem as pernas dianteiras boas? — perguntou Madelaine.
— Tem, sim, senhor maire, mas sempre é bom sofreá-lo alguma coisa nas descidas. Há
muitas descidas até aonde vai?
— Não se esqueça de que deve estar à minha porta às quatro horas e meia em ponto
— respondeu Madelaine, saindo logo em seguida.
O flamengo ficou com «cara de asno», como ele próprio disse algum tempo depois. O
maire tinha saído havia dois ou três minutos, quando a porta se tornou a abrir, dando-lhe entrada novamente. Tinha ainda o mesmo ar impassível e preocupado.
— Senhor Scaufflaire —, disse ele —, em quanto avalia o cavalo e o tilbury que me
aluga, conduzindo um ao outro?
— Um arrastando o outro, senhor maire? — disse o flamengo, soltando uma
gargalhada.
— Pois seja assim. E então?
— O senhor maire quer comprar-mos?
— Não, mas quero garantir-lhos para o que possa acontecer. Quando eu voltar
restituir-me-á o dinheiro. Vamos, em quanto avalia o tilbury e o cavalo?
— Em quinhentos francos
— Aqui os tem.
Madelaine pousou uma nota em cima da mesa e saiu, mas desta vez não tornou a
entrar.
Mestre Scaufflaire lastimou profundamente não ter pedido mil francos, porque cavalo
e tilbury não valiam juntos, cem escudos.
O flamengo chamou a mulher, contou-lhe o fato e logo ambos celebraram conselho.
— Aonde irá o senhor maire?
— Vai a Paris — disse a mulher.
— Não creio — respondeu o marido.
O flamengo pegou no papel em que Madelaine traçara os algarismos e que ele por
esquecimento deixara em cima do fogão e pôs-se a estudá-lo.
— Cinco, seis, oito e meia? Isto deve marcar as mudas da posta.
— Em seguida voltou-se para a mulher.
— Já sei.
— O quê?
— Olha: daqui a Hesdin são cinco léguas, de Hesdin a Saint-Pol, são seis, e dali a Arras
oito e meia. Vai a Arras.
Madelaine, entretanto, tinha ido para casa. Voltando da de Scaufflaire, tomara pelo
caminho mais comprido, como se a porta do presbitério fosse uma tentação que ele
quisesse evitar. Subira para o seu quarto e fechara a porta, o que não tinha nada de
extraordinário, porque gostava de se deitar cedo Todavia, a porteira da fábrica, que era
ao mesmo tempo a única criada de Madelaine, observou que a luz que ele tinha acesa se
apagara às oito horas e meia e disse-o ao caixeiro quando este entrou, acrescentando:
— O senhor maire está doente? Pareceu-me notar-lhe um ar tão esquisito!
O caixeiro, que habitava um quarto situado exatamente por baixo do de Madelaine,
não prestando atenção às palavras da porteira, deitou-se e adormeceu. Seria porém,
meia-noite, quando acordou sobressaltado; ouvira através do sono um ruído por cima
da sua cabeça e pôs-se à escuta. Era um som de passos que iam e vinham, como se
alguém andasse a passear no quarto de cima. Escutou mais atentamente e reconheceu o
andar de Madelaine. Isto pareceu-lhe estranho, porque de ordinário não se ouvia ruído
de espécie alguma no quarto do maire antes da hora em que ele costumava levantar-se.
Um momento depois, o caixeiro ouviu o quer que fosse que se parecia com o abrir e
fechar de um armário; em seguida, o arrastar de um móvel e, após alguns instantes de
silêncio, recomeçarem os passos.
Completamente desperto, sentou-se na cama, olhou para a janela e viu através das
vidraças, na parede fronteira, o revérbero avermelhado de uma janela alumiada. Pela
direção do reflexo, não podia ser senão a janela do quarto de Madelaine. O reflexo era
trémulo como se proviesse de uma fogueira e não de uma luz. A sombra dos caixilhos
envidraçados não se desenhava na parede, o que era sinal de que a janela estava aberta
de par em par. Com o frio que fazia era de causar admiração aquela janela aberta.
O caixeiro tornou a adormecer, mas daí a uma ou duas horas acordou novamente. Por
cima da sua cabeça continuavam a ouvir-se os mesmos passos, lentos e regulares, e na
parede fronteira desenhava-se ainda o reflexo da luz, agora porém mais pálida e serena
como o reflexo de uma lâmpada ou de uma vela.
A janela conservava-se do mesmo
modo aberta.
Eis o que se passava no quarto de Madelaine.
Os Miseráveis: Fantine. Livro Primeiro - I — O abade Myriel
Os Miseráveis: Fantine, Livro Segundo - I — No fim de um dia de marcha
Os Miseráveis: Fantine, Livro Terceiro - I — O ano de 1817
Os Miseráveis: Fantine, Livro Quarto - I — Confiar é por vezes abandonar
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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.
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Leia também:
Os Miseráveis: Fantine, Livro Segundo - I — No fim de um dia de marcha
Os Miseráveis: Fantine, Livro Terceiro - I — O ano de 1817
Os Miseráveis: Fantine, Livro Quarto - I — Confiar é por vezes abandonar
Os Miseráveis: Fantine, Livro Sétimo - II — Perspicácia de mestre Scaufflaire
Os Miseráveis: Fantine, Livro Sétimo - III —Tempestade num crânio
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Victor Hugo
OS MISERÁVEIS
Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira (1851-1888)
Victor Hugo
OS MISERÁVEIS
Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira (1851-1888)
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