quinta-feira, 22 de dezembro de 2022

Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Sétimo - O processo de Champmathieu / II — Perspicácia de mestre Scaufflaire

Victor Hugo - Os Miseráveis


Primeira Parte - Fantine

Livro Sétimo — O processo de Champmathieu


II — Perspicácia de mestre Scaufflaire


Em seguida, Madelaine saiu da administração e dirigiu-se ao extremo da cidade, a casa de um flamengo chamado Scaufflaire, nome que depois de afrancesado ficou sendo Scaufflaire, que alugava cavalos e carruagens 
O caminho mais curto para ir a casa deste Scaufflaire, era tomar por uma rua pouco frequentada, onde ficava o presbitério da freguesia em que Madelaine habitava, e cujo abade, segundo se dizia, era um homem digno, respeitável e de bom conselho. No momento em que Madelaine chegou em frente do (presbitério, ia a passar na rua uma única pessoa, a qual reparou no seguinte: O maire, depois de ter passado para lá da residência paroquial, parou, esteve imóvel durante algum tempo, voltou depois para trás e caminhou de novo até ao presbitério; em seguida, levando a mão à argola de ferro que havia na porta, levantou-a, suspendendo logo o movimento, permaneceu por um instante pensativo e, passados alguns segundos, em vez de deixar cair de repente a argola, pô-la brandamente em descanso e continuou o seu caminho, com uma certa pressa que antes não parecia levar. 
Madelaine encontrou em casa mestre Scaufflaire, ocupado em consertar uns arreios. 

— Mestre Scaufflaire — perguntou ele —, tem algum cavalo que seja bom? 

— Senhor maire — disse o flamengo —, todos os meus cavalos são bons. O que entende o senhor por um bom cavalo? 

— Entendo que é um bom cavalo o que pode andar vinte léguas num dia. 

— Diabo! Vinte léguas! 

— Sim. 

— Atrelado a um cabriolet? 

— Sim. 

— E quanto tempo descansará ele depois? 

— Em caso de necessidade, deve poder continuar no outro dia. 

— Para fazer outra vez a mesma caminhada? 

— Sim. 

— Diabo! Diabo! E são vinte léguas? 

Madelaine tirou do bolso o papel em que tomara os apontamentos e mostrou-os ao flamengo. Eram os números 5, 6, 8 1/2. 

— Bem vê — disse ele. — Soma dezenove e meia, que é o mesmo que dizer vinte léguas. 

— Senhor maire — tornou o flamengo — tenho com que o servir. Já deve ter visto passar algumas vezes o meu cavalo branco; é um animal pequeno, do Bas-Bolognais, mas muito fogoso. Quiseram primeiro fazê-lo cavalo de sela, mas ninguém foi capaz de o montar que não fosse para o chão. Julgaram-no vicioso e não sabiam o que haviam de fazer dele Foi então que o comprei e meti-o logo ao cabriolet. Era o que ele queria, tornou-se manso como um cordeiro e ligeiro como o vento. Cada um tem a sua ambição. Lá para sela é que ele não estava disposto. Puxar a um carro, quanto quiserem; levar alguém em cima, isso é que não. 

— E será capaz de fazer a jornada? 

— Andará as vinte léguas, sempre a galope e em menos de oito horas. Mas vou dizer-lhe as condições. 

— Queira dizer. 

— Em primeiro lugar, dar-lhe-á uma hora de descanso a meio caminho; comerá a ração, mas estará alguém ao pé dele, para evitar que o moço da estalagem lhe roube a aveia, porque tenho notado muitas vezes que nas estalagens é quase sempre a aveia mais bebida pelos moços do que comida pelos cavalos. 

— Tomar-se-á sentido nisso. 

— Em segundo lugar, o... cabriolet é para o senhor maire

— É. 

— O senhor maire sabe guiá-lo? 

— Sei. 

— Nesse caso, o senhor maire viajará só e sem bagagem, para não sobrecarregar o cavalo. 

— Está combinado. 

— Mas não levando ninguém consigo, será obrigado a dar-se ao incómodo de vigiar por si mesmo a ração. 

— Não tenho dúvida nisso. 

— Dar-me-á trinta francos por dia, incluindo os de descanso, nem menos um real, ficando o sustento do animal por conta do senhor maire

Madelaine tirou três napoleões da bolsa e pô-los sobre a mesa. 

— Aqui estão dois dias adiantados. 

— Além do que já disse, um cabriolet seria demasiadamente pesado e fatigaria o cavalo em tão grande extensão. Era preciso que o senhor maire acedesse a fazer a jornada num pequeno tilbury que aí tenho. 

— Não vejo nisso inconveniente. 

— É muito ligeiro, mas descoberto. 

— Isso para mim é indiferente. 

— Mas o senhor maire já reflectiu que estamos no Inverno? 

Madelaine não respondeu e o flamengo continuou: 

— Que faz muito frio? Que pode chover? 

Madelaine ergueu a cabeça e disse: 

— O cavalo e o tilbury que estejam amanhã, às quatro horas e meia da madrugada, à porta da minha casa. 

— Está combinado, senhor maire — respondeu Scaufflaire. 

Depois, raspando com a unha do polegar uma nódoa que havia na mesa, continuou com o ar de indiferença que os flamengos sabem tão bem aliar à finura de que são dotados. 

— Mas, agora me lembro. O senhor maire não me disse qual é o seu destino. Aonde vai? 

Mestre Scaufflaire desde o principio da conversa que não pensava noutra coisa, mas não sabia porque não ousara ainda fazer esta pergunta. 

— O cavalo tem as pernas dianteiras boas? — perguntou Madelaine. 

— Tem, sim, senhor maire, mas sempre é bom sofreá-lo alguma coisa nas descidas. Há muitas descidas até aonde vai? 

— Não se esqueça de que deve estar à minha porta às quatro horas e meia em ponto — respondeu Madelaine, saindo logo em seguida. 

O flamengo ficou com «cara de asno», como ele próprio disse algum tempo depois. O maire tinha saído havia dois ou três minutos, quando a porta se tornou a abrir, dando-lhe entrada novamente. Tinha ainda o mesmo ar impassível e preocupado. 

— Senhor Scaufflaire —, disse ele —, em quanto avalia o cavalo e o tilbury que me aluga, conduzindo um ao outro? 

— Um arrastando o outro, senhor maire? — disse o flamengo, soltando uma gargalhada. 

— Pois seja assim. E então? 

— O senhor maire quer comprar-mos? 

— Não, mas quero garantir-lhos para o que possa acontecer. Quando eu voltar restituir-me-á o dinheiro. Vamos, em quanto avalia o tilbury e o cavalo? 

— Em quinhentos francos 

— Aqui os tem. 

Madelaine pousou uma nota em cima da mesa e saiu, mas desta vez não tornou a entrar. Mestre Scaufflaire lastimou profundamente não ter pedido mil francos, porque cavalo e tilbury não valiam juntos, cem escudos. O flamengo chamou a mulher, contou-lhe o fato e logo ambos celebraram conselho. 

— Aonde irá o senhor maire? 

— Vai a Paris — disse a mulher. 

— Não creio — respondeu o marido. 

O flamengo pegou no papel em que Madelaine traçara os algarismos e que ele por esquecimento deixara em cima do fogão e pôs-se a estudá-lo. 

— Cinco, seis, oito e meia? Isto deve marcar as mudas da posta. 

— Em seguida voltou-se para a mulher. 

— Já sei. 

— O quê? 

— Olha: daqui a Hesdin são cinco léguas, de Hesdin a Saint-Pol, são seis, e dali a Arras oito e meia. Vai a Arras. 

Madelaine, entretanto, tinha ido para casa. Voltando da de Scaufflaire, tomara pelo caminho mais comprido, como se a porta do presbitério fosse uma tentação que ele quisesse evitar. Subira para o seu quarto e fechara a porta, o que não tinha nada de extraordinário, porque gostava de se deitar cedo Todavia, a porteira da fábrica, que era ao mesmo tempo a única criada de Madelaine, observou que a luz que ele tinha acesa se apagara às oito horas e meia e disse-o ao caixeiro quando este entrou, acrescentando: 

— O senhor maire está doente? Pareceu-me notar-lhe um ar tão esquisito! 

O caixeiro, que habitava um quarto situado exatamente por baixo do de Madelaine, não prestando atenção às palavras da porteira, deitou-se e adormeceu. Seria porém, meia-noite, quando acordou sobressaltado; ouvira através do sono um ruído por cima da sua cabeça e pôs-se à escuta. Era um som de passos que iam e vinham, como se alguém andasse a passear no quarto de cima. Escutou mais atentamente e reconheceu o andar de Madelaine. Isto pareceu-lhe estranho, porque de ordinário não se ouvia ruído de espécie alguma no quarto do maire antes da hora em que ele costumava levantar-se. 
Um momento depois, o caixeiro ouviu o quer que fosse que se parecia com o abrir e fechar de um armário; em seguida, o arrastar de um móvel e, após alguns instantes de silêncio, recomeçarem os passos. 
Completamente desperto, sentou-se na cama, olhou para a janela e viu através das vidraças, na parede fronteira, o revérbero avermelhado de uma janela alumiada. Pela direção do reflexo, não podia ser senão a janela do quarto de Madelaine. O reflexo era trémulo como se proviesse de uma fogueira e não de uma luz. A sombra dos caixilhos envidraçados não se desenhava na parede, o que era sinal de que a janela estava aberta de par em par. Com o frio que fazia era de causar admiração aquela janela aberta. O caixeiro tornou a adormecer, mas daí a uma ou duas horas acordou novamente. Por cima da sua cabeça continuavam a ouvir-se os mesmos passos, lentos e regulares, e na parede fronteira desenhava-se ainda o reflexo da luz, agora porém mais pálida e serena como o reflexo de uma lâmpada ou de uma vela. 
A janela conservava-se do mesmo modo aberta. Eis o que se passava no quarto de Madelaine. 


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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.

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Victor Hugo

OS MISERÁVEIS

Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira (1851-1888)


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