Victor Hugo - Os Miseráveis
Primeira Parte - Fantine
Livro Terceiro — Em 1817
I — O ano de 1817
1817 é o ano que Luís XVIII, com certo aprumo régio, não destituído inteiramente de altivez, denominava o vigésimo segundo ano do seu reinado. Foi o ano em que o senhor Bruguière de Sorsun se tornou célebre, em que todas as lojas de cabeleireiro foram pintadas de azul com flores de lis, esperando novamente o uso dos pós e o regresso da ave real.
Era o inocente tempo em que o conde de Lynch se apresentava todos os domingos, como tesoureiro, no seu banco de Saint-Germain-des-Prés, com o seu trajo de par de França, a sua fita vermelha e o seu grande nariz, aquele aspecto de majestade particular ao homem que praticou uma ação célebre.
A ação célebre praticada por Lynch consistia, sendo maire de Bordéus, em 12 de Março de 1814, em ter entregado a cidade demasiadamente cedo ao duque de Angoulême, do que lhe proveio a sua nomeação de par. Em 1817, a moda inventara para os rapazinhos de quatro a seis anos uns enormes bonés de couro fingindo marroquim, quase à maneira de barretes de esquimós, debaixo dos quais as pobres crianças desapareciam totalmente. O exército francês usava uniformes brancos à austríaca; os regimentos chamavam-se legiões e, em lugar de números, traziam os nomes dos departamentos Napoleão estava em Santa Helena, e como a Inglaterra lhe não dava pano verde, mandava virar os casacos do avesso Em 1817, cantava Pellegrini e dançava Bigottini; reinava Potier e Odry ainda não exisa. Madame Saqui sucedia a Torioso Havia ainda prussianos em França O senhor Delalot era um homem notável. A sua legitimidade acabava de se consolidar, cortando a mão e em seguida a cabeça a Pleignier, a Carbonneau e a Tolleron.
O príncipe de Talleyrand, camarista-mor, e o abade Luís, apontado para ministro das finanças, encaravam-se, rindo com o riso de dois arúspices; ambos no dia 14 de Julho de 1790, haviam celebrado a missa da federação no Campo de Marte; Talleyrand oficiando-a como bispo, Luís como diácono. Em 1817, nos passeios laterais desse mesmo Campo de Marte, viam-se grossos cilindros de madeira, lançados por terra, expostos à chuva e apodrecendo no meio da erva, pintados de azul e ainda com vestígios de águias e abelhas, que tinham sido douradas. Eram as colunas que dois anos antes tinham servido para sustentar o estrado do imperador no Campo de Maio. Aqui e além divisavam-se-lhe manchas negras causadas pelas balas do acampamento dos austríacos situado próximo a Gros-Caillou. Duas ou três destas colunas haviam desaparecido nas fogueiras desses acampamentos e servido para aquecer as enormes mãos dos Kaiserliks.
Nesse ano de 1817, duas coisas eram populares: o Voltaire-Trouquet e as caixas de rapé à cartista A emoção parisiense mais recente era o crime de Dautun, que lançara a cabeça do irmão ao tanque da Praça das Flores. No ministério da marinha principiava a reinar inquietação por não haver notícias da fatal fragata Medusa, que devia cobrir de vergonha Chautnareix e de glória Géricault. O coronel Selves partia para o Egipto, onde devia tornar-se Solimão-Pachá. O palácio das termas, na rua de La Harpe, servia de oficina a um tanoeiro. Na plataforma do torreão octógono do palácio de Cluny, via-se ainda a barraquinha de tábuas que servira de observatório a Messier, astrônomo da marinha no reinado de Luís XVI. A duquesa de Duras lia a três ou quatro amigos íntimos, no seu toucador mobilado com XX estofados de cetim azul celeste, o manuscrito de Ourika, ainda inédito.
No Louvre raspavam-se os NN. A ponte de Austerlitz abdicava do seu título e passava a chamar-se ponte do Jardim do Rei, duplo enigma que encobria ao mesmo tempo o Jardim das Plantas e a Ponte de Austerlitz. Luís XVIII, ao mesmo tempo que anotava com a unha em Horácio, os heróis que chegavam a imperadores e os sapateiros que se fazem delfins, tinha dois cuidados que seriamente o preocupavam: Napoleão e Mathurin Bruneau. A Academia Francesa dava para assunto de prémio: «a felicidade filha do estudo». O senhor Ballart era oficialmente eloquente; à sua sombra via-se germinar o futuro delegado geral de Broé, destinado aos sarcasmos de Paulo Luís Courier. Havia um falso Chateaubriand por nome Marchangy, à espera de um falso Marchangy, chamado de Arlincourt. Clara de Alba e Malek-Adel eram reputadas obras-primas, e Madame Cottin era proclamada a primeira entre os escritores da época. O Instituto deixava riscar da sua lista o acadêmico Napoleão Bonaparte. Em virtude de um decreto real, Angoulême era elevada a escola naval, pois sendo o duque de Angoulême almirante, era evidente que a cidade de Angoulême possuía de direito todas as qualidades de um porto de mar, sem o que ficaria abalado o princípio monárquico.
No conselho de ministros discutia-se se se deviam ou não consentir as vinhetas representando volantins, que adornavam os cartazes de Franconi, e que juntavam grupos de garotada nos pontos em que se encontravam afixados. O senhor Paer, autor d a Agnese, ancião de rosto quadrado com uma verruga na face, dirigia os concertos íntimos da marquesa de Sassenaye, na rua de Ville-l’-Évêque. As jovens cantavam o Ermitão de Saint-Avelle, letra de Edmond Géraud. O Anão Amarelo transformava-se em Espelho. O café Lemblin era pelo imperador contra o café Valois, que era pelos Bourbons.
Acabava de casar com uma princesa da Sicília o duque de Berry, já olhado por Louvei do fundo das trevas. Havia um ano que Madame de Stael tinha morrido. Os guardas de corpo pateavam Mademoiselle Mars. Os grandes jornais publicavam-se em formato pequeno. Este tinha sido restringido, mas a liberdade era grande. O Constitucional era constitucional. A Minerva chamava a Chateaubriand Chateaucriant. Este era motivo para que os burgueses rissem muito à custa do grande escritor. Alguns prostituídos jornalistas insultavam, em jornais vendidos, os proscritos de 1815; David não tinha talento, Arnoult não tinha espírito, Carnot era um homem sem probidade, Soult não ganhara uma só batalha; a verdade é que Napoleão deixara de ser o gênio que fora. Ninguém ignora quanto à raro que as cartas dirigidas pelo correio a qualquer exilado lhes cheguem à mão, por isso que a policia tem como rigoroso dever interceptá-las. O fato não é novo; já Descartes, do seu desterro, se queixava disso. Ora, havendo David, num jornal belga, dado mostras de descontentamento por não receber as cartas que lhe escreviam, as folhas realistas achavam o caso digno de riso e aproveitavam a ocasião para ridicularizar e achincalhar o proscrito. Dizer«regicidas» ou «votantes», «inimigos» ou «aliados», «Napoleão» ou «Bonaparte», separava dois homens mais do que um abismo.
Todas as pessoas sensatas concordavam que a era das revoluções fora de uma vez para sempre encerrada por Luís XVIII, cognominado o imortal autor da Carta. No terraplano da Ponte Nova gravava-se a palavra Redivivas no pedestal destinado a receber a estátua de Henrique IV. Na rua Teresa, n.º 4, Piet dava princípio ao seu conciliábulo para consolidação da monarquia Os chefes da direita, diziam nas conjunturas graves: «É preciso escrever a Bacot». Canuel, O’Mahony e de Chappedelaine, esboçavam com tácita aprovação do irmão do rei, o que mais adiante havia de vir a ser a «Conspiração da Borda d’agua».
O Alfinete Negro conspirava igualmente. Delaverderie conferenciava com Trogoff. Decazes, espírito liberal até certo ponto, dominava Chateaubriand, todas as manhãs defronte da janela da sua casa, na rua de S. Domingos, n.º 27, em calças e de chinelas, com um lenço de seda da Índia atado na cabeça povoada de cabelos brancos, os olhos fitos num espelho e um estojo completo de dentista aberto diante de si, ocupava-se em limpar os dentes, que eram magníficos, ditando ao mesmo tempo a Pilorge, seu secretário, a Monarquia segundo a Carta.
A crítica autorizada preferia Lafont a Talma. O senhor de Felatz assinava-se com um A e o senhor Hoffman com um Z Carlos Nodier escrevia Teresa Aubert. O divórcio fora abolido. Os liceus chamavam-se colégios e os colegiais, que traziam na gola uma flor de lis de oiro, sustentavam fortes altercações acerca do rei de Roma. A polícia secreta do castelo denunciava a Sua Alteza Real, Madame, o retrato, por toda a parte exposto, do duque de Orleãs, o qual tinha melhor parecer com o uniforme de coronel-general de hussardos do que o duque de Berry com a farda de coronel-general de dragões, inconveniente gravíssimo. A cidade de Paris mandava dourar de novo à sua custa o zimbório dos Inválidos. Os homens sérios perguntavam uns aos outros o que faria o senhor de Tringuelague em tal ou tal conjuntura. Clausel de Montals divergia em diversos pontos, de Clausel de Coussergues, e o senhor de Salaberry não se sentia satisfeito.
O ator Picard, membro da Academia em que Molière não conseguiu ser admitido, fazia representar Os Dois Felisbertos no teatro do Odeón, em cuja frontaria, apesar dos esforços para arrancar as letras, se lia ainda distintamente: Teatro da Imperatriz. Uns eram a favor, outros contra Cugnet de Montarlot. Fabvier era faccioso, Bavoux revolucionário. O livreiro Pélicier publicava uma edição de Voltaire com o título Obras de Voltaire, da Academia Francesa. «Isto atrai os compradores», dizia o ingênuo editor. Era opinião geral que Carlos Loyson havia de vir a ser o gênio do século; a inveja começava a morder-lhe, indício de glória, e recitava-se a seu respeito este verso:
Até mesmo quando Loyson voa, mostra ter patas.
Como o cardeal Fesch recusava demitir-se, a diocese de Lyon era administrada pelo senhor de Pins, arcebispo de Amasie. Entre a França e a Suíça principiava a questão dos vales de Dappe, por uma memória do capitão Dufour, depois general. Saint-Simon, ainda ignorado, elaborava o seu sublime sonho. Na Academia das Ciências havia um Fourier célebre, que a posteridade esqueceu, e não sei em que águas-furtadas um Fourier obscuro, de que o futuro se recordará. Lord Byron principiava a despontar; uma nota de um poema de Millevoye anunciava-o à França nos seguintes termos: «Um certo lord Byron». David de Angers fazia as primeiras experiências sobre o mármore. O abade Caron falava lisonjeiramente, em pequena reunião de seminaristas, no beco das Feuillantines, de um padre desconhecido chamado Felicidade Roberto, o qual depois veio a ser Lamennais.
No Sena via-se andar fumegando e girando por baixo das janelas das Tulherias, da ponte Real para a ponte Luís XV, fazendo o estrépito de um cão a nadar, uma coisa que para pouco servia, uma espécie de brinquedo, um sonho de inventor, mas um sonho oco, uma utopia, finalmente, um barco a vapor. Os parisienses olhavam com indiferença para semelhante inutilidade. O senhor de Vaublanc, reformador do Instituto, por golpe de Estado, ordem régia e formada, distinto autor de muitos acadêmicos, depois de tantos ter feito, não conseguia chegar a sê-lo. O arrabalde de Saint-Germain e o pavilhão Marsan desejavam para prefeito de polícia o senhor Delavau, por causa da sua devoção. Dupuytren e Récamier travavam-se de razões no anfiteatro da Escola de Medicina e ameaçavam chegar a vias de facto por causa da divindade de Jesus Cristo. Cuvier, com um olho no Génesis e o outro na natureza, esforçava-se por agradar à reação religiosa, pondo os fósseis de acordo com os textos e fazendo que os mastodontes lisonjeassem Moisés.
François de Neufchâteau, louvável cultivador da memória de Parmentier, fazia mil esforços para que pomme de terre (batata) se pronunciasse parmentière e não conseguia. O abade Gregório, antigo bispo, antigo convencional, antigo senador, tinha na polémica realista passado ao estado de infame Gregório. A locução que acabamos de empregar: passar ao estado de, fora denunciada como neologismo por Royer-Collard. Debaixo do terceiro arco da ponte de lena podia-se distinguir ainda, pela sua alvura, a pedra nova com a qual, havia dois anos, fora tapado o buraco da mina praticado por Blucher para fazer ir a ponte pelos ares. A justiça chamava ao seu tribunal um homem que, ao ver entrar o conde de Artois na igreja de Nossa Senhora, exclamara em voz alta: «Com a fortuna! Tenho saudades do tempo em que via entrar, no Bal-Sauvage, Bonaparte e Talma pelo braço um do outro!» Por estas ideias sediciosas foi condenado a seis meses de prisão.
Os traidores mostravam-se descaradamente; os homens que se tinham passado para o inimigo na véspera de uma batalha não escondiam a recompensa e caminhavam impudicamente em pleno dia, no cinismo das riquezas e das dignidades; os desertores de Ligny e de Quatre-Bras, em toda a indecência da sua vil torpeza, ostentavam claramente a sua dedicação à monarquia, esquecendo o que em Inglaterra se encontra escrito na parede interior dos water-closets públicos: Please adjust your dress before leaving [1].
Eis desordenada e confusamente o que sobrenada do ano de 1817, hoje esquecido. A história desdenha quase sempre estas minuciosidades e não pode deixar de o fazer, aliás tornar-se-ia infinita. Todavia, estes pormenores que são apelidados de insignificantes não há nem pequenos factos na humanidade, nem pequenas folhas na vegetação são úteis. É das feições dos anos que se compõe o carácter dos séculos.
[1] — Faça favor de se compor antes de sair.
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Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine I — O abade Myriel
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine II — O abade Myriel torna-se Monsenhor Bem-vindo
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine III — A bom bispo, mau bispado
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine IV — As palavras semelhantes às obras
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine V — Como Monsenhor Bem-vindo poupava as suas batinas
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine VI — Quem guardava a casa do prelado
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine VII — Gravatte, o salteador
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine VIII — Filosofia de sobremesa
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine IX — O caráter do irmão descrito pela irmã
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine X — O bispo em presença de uma luz desconhecida 1
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine X — O bispo em presença de uma luz desconhecida 2
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine XI — Restrição
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine XII — Solidão de Monsenhor Bemvindo
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine XIII — Quais eram as crenças do bispo
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine XIV — O modo de pensar de Monsenhor Bemvindo
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Segundo - A Queda I — No fim de um dia de marcha
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Segundo - A Queda I — No fim de um dia de marcha (2)
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Segundo - A Queda II — A prudência aconselha a sabedoria
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Segundo - A Queda III — Heroísmo da obediência passiva
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Segundo - A Queda, IV — Pormenores sobre as queijeiras de Pontarlier
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Segundo - A Queda, V — Tranquilidade
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Segundo - A Queda, VI — Jean Valjean
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Segundo - A Queda, VII — O interior do desespero
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Segundo - A Queda, VIII — A onda e a sombra
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Segundo - A Queda, IX — Novos agravos
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Segundo - A Queda, X — O hóspede acordado
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Segundo - A Queda, XI — O que ele faz
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Segundo - A Queda, XII — O bispo trabalha
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Segundo - A Queda, XIII — O pequeno Gervásio
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Terceiro - Em 1817, II — Quatro pares
No Louvre raspavam-se os NN. A ponte de Austerlitz abdicava do seu título e passava a chamar-se ponte do Jardim do Rei, duplo enigma que encobria ao mesmo tempo o Jardim das Plantas e a Ponte de Austerlitz. Luís XVIII, ao mesmo tempo que anotava com a unha em Horácio, os heróis que chegavam a imperadores e os sapateiros que se fazem delfins, tinha dois cuidados que seriamente o preocupavam: Napoleão e Mathurin Bruneau. A Academia Francesa dava para assunto de prémio: «a felicidade filha do estudo». O senhor Ballart era oficialmente eloquente; à sua sombra via-se germinar o futuro delegado geral de Broé, destinado aos sarcasmos de Paulo Luís Courier. Havia um falso Chateaubriand por nome Marchangy, à espera de um falso Marchangy, chamado de Arlincourt. Clara de Alba e Malek-Adel eram reputadas obras-primas, e Madame Cottin era proclamada a primeira entre os escritores da época. O Instituto deixava riscar da sua lista o acadêmico Napoleão Bonaparte. Em virtude de um decreto real, Angoulême era elevada a escola naval, pois sendo o duque de Angoulême almirante, era evidente que a cidade de Angoulême possuía de direito todas as qualidades de um porto de mar, sem o que ficaria abalado o princípio monárquico.
No conselho de ministros discutia-se se se deviam ou não consentir as vinhetas representando volantins, que adornavam os cartazes de Franconi, e que juntavam grupos de garotada nos pontos em que se encontravam afixados. O senhor Paer, autor d a Agnese, ancião de rosto quadrado com uma verruga na face, dirigia os concertos íntimos da marquesa de Sassenaye, na rua de Ville-l’-Évêque. As jovens cantavam o Ermitão de Saint-Avelle, letra de Edmond Géraud. O Anão Amarelo transformava-se em Espelho. O café Lemblin era pelo imperador contra o café Valois, que era pelos Bourbons.
Acabava de casar com uma princesa da Sicília o duque de Berry, já olhado por Louvei do fundo das trevas. Havia um ano que Madame de Stael tinha morrido. Os guardas de corpo pateavam Mademoiselle Mars. Os grandes jornais publicavam-se em formato pequeno. Este tinha sido restringido, mas a liberdade era grande. O Constitucional era constitucional. A Minerva chamava a Chateaubriand Chateaucriant. Este era motivo para que os burgueses rissem muito à custa do grande escritor. Alguns prostituídos jornalistas insultavam, em jornais vendidos, os proscritos de 1815; David não tinha talento, Arnoult não tinha espírito, Carnot era um homem sem probidade, Soult não ganhara uma só batalha; a verdade é que Napoleão deixara de ser o gênio que fora. Ninguém ignora quanto à raro que as cartas dirigidas pelo correio a qualquer exilado lhes cheguem à mão, por isso que a policia tem como rigoroso dever interceptá-las. O fato não é novo; já Descartes, do seu desterro, se queixava disso. Ora, havendo David, num jornal belga, dado mostras de descontentamento por não receber as cartas que lhe escreviam, as folhas realistas achavam o caso digno de riso e aproveitavam a ocasião para ridicularizar e achincalhar o proscrito. Dizer«regicidas» ou «votantes», «inimigos» ou «aliados», «Napoleão» ou «Bonaparte», separava dois homens mais do que um abismo.
Todas as pessoas sensatas concordavam que a era das revoluções fora de uma vez para sempre encerrada por Luís XVIII, cognominado o imortal autor da Carta. No terraplano da Ponte Nova gravava-se a palavra Redivivas no pedestal destinado a receber a estátua de Henrique IV. Na rua Teresa, n.º 4, Piet dava princípio ao seu conciliábulo para consolidação da monarquia Os chefes da direita, diziam nas conjunturas graves: «É preciso escrever a Bacot». Canuel, O’Mahony e de Chappedelaine, esboçavam com tácita aprovação do irmão do rei, o que mais adiante havia de vir a ser a «Conspiração da Borda d’agua».
O Alfinete Negro conspirava igualmente. Delaverderie conferenciava com Trogoff. Decazes, espírito liberal até certo ponto, dominava Chateaubriand, todas as manhãs defronte da janela da sua casa, na rua de S. Domingos, n.º 27, em calças e de chinelas, com um lenço de seda da Índia atado na cabeça povoada de cabelos brancos, os olhos fitos num espelho e um estojo completo de dentista aberto diante de si, ocupava-se em limpar os dentes, que eram magníficos, ditando ao mesmo tempo a Pilorge, seu secretário, a Monarquia segundo a Carta.
A crítica autorizada preferia Lafont a Talma. O senhor de Felatz assinava-se com um A e o senhor Hoffman com um Z Carlos Nodier escrevia Teresa Aubert. O divórcio fora abolido. Os liceus chamavam-se colégios e os colegiais, que traziam na gola uma flor de lis de oiro, sustentavam fortes altercações acerca do rei de Roma. A polícia secreta do castelo denunciava a Sua Alteza Real, Madame, o retrato, por toda a parte exposto, do duque de Orleãs, o qual tinha melhor parecer com o uniforme de coronel-general de hussardos do que o duque de Berry com a farda de coronel-general de dragões, inconveniente gravíssimo. A cidade de Paris mandava dourar de novo à sua custa o zimbório dos Inválidos. Os homens sérios perguntavam uns aos outros o que faria o senhor de Tringuelague em tal ou tal conjuntura. Clausel de Montals divergia em diversos pontos, de Clausel de Coussergues, e o senhor de Salaberry não se sentia satisfeito.
O ator Picard, membro da Academia em que Molière não conseguiu ser admitido, fazia representar Os Dois Felisbertos no teatro do Odeón, em cuja frontaria, apesar dos esforços para arrancar as letras, se lia ainda distintamente: Teatro da Imperatriz. Uns eram a favor, outros contra Cugnet de Montarlot. Fabvier era faccioso, Bavoux revolucionário. O livreiro Pélicier publicava uma edição de Voltaire com o título Obras de Voltaire, da Academia Francesa. «Isto atrai os compradores», dizia o ingênuo editor. Era opinião geral que Carlos Loyson havia de vir a ser o gênio do século; a inveja começava a morder-lhe, indício de glória, e recitava-se a seu respeito este verso:
Até mesmo quando Loyson voa, mostra ter patas.
Como o cardeal Fesch recusava demitir-se, a diocese de Lyon era administrada pelo senhor de Pins, arcebispo de Amasie. Entre a França e a Suíça principiava a questão dos vales de Dappe, por uma memória do capitão Dufour, depois general. Saint-Simon, ainda ignorado, elaborava o seu sublime sonho. Na Academia das Ciências havia um Fourier célebre, que a posteridade esqueceu, e não sei em que águas-furtadas um Fourier obscuro, de que o futuro se recordará. Lord Byron principiava a despontar; uma nota de um poema de Millevoye anunciava-o à França nos seguintes termos: «Um certo lord Byron». David de Angers fazia as primeiras experiências sobre o mármore. O abade Caron falava lisonjeiramente, em pequena reunião de seminaristas, no beco das Feuillantines, de um padre desconhecido chamado Felicidade Roberto, o qual depois veio a ser Lamennais.
No Sena via-se andar fumegando e girando por baixo das janelas das Tulherias, da ponte Real para a ponte Luís XV, fazendo o estrépito de um cão a nadar, uma coisa que para pouco servia, uma espécie de brinquedo, um sonho de inventor, mas um sonho oco, uma utopia, finalmente, um barco a vapor. Os parisienses olhavam com indiferença para semelhante inutilidade. O senhor de Vaublanc, reformador do Instituto, por golpe de Estado, ordem régia e formada, distinto autor de muitos acadêmicos, depois de tantos ter feito, não conseguia chegar a sê-lo. O arrabalde de Saint-Germain e o pavilhão Marsan desejavam para prefeito de polícia o senhor Delavau, por causa da sua devoção. Dupuytren e Récamier travavam-se de razões no anfiteatro da Escola de Medicina e ameaçavam chegar a vias de facto por causa da divindade de Jesus Cristo. Cuvier, com um olho no Génesis e o outro na natureza, esforçava-se por agradar à reação religiosa, pondo os fósseis de acordo com os textos e fazendo que os mastodontes lisonjeassem Moisés.
François de Neufchâteau, louvável cultivador da memória de Parmentier, fazia mil esforços para que pomme de terre (batata) se pronunciasse parmentière e não conseguia. O abade Gregório, antigo bispo, antigo convencional, antigo senador, tinha na polémica realista passado ao estado de infame Gregório. A locução que acabamos de empregar: passar ao estado de, fora denunciada como neologismo por Royer-Collard. Debaixo do terceiro arco da ponte de lena podia-se distinguir ainda, pela sua alvura, a pedra nova com a qual, havia dois anos, fora tapado o buraco da mina praticado por Blucher para fazer ir a ponte pelos ares. A justiça chamava ao seu tribunal um homem que, ao ver entrar o conde de Artois na igreja de Nossa Senhora, exclamara em voz alta: «Com a fortuna! Tenho saudades do tempo em que via entrar, no Bal-Sauvage, Bonaparte e Talma pelo braço um do outro!» Por estas ideias sediciosas foi condenado a seis meses de prisão.
Os traidores mostravam-se descaradamente; os homens que se tinham passado para o inimigo na véspera de uma batalha não escondiam a recompensa e caminhavam impudicamente em pleno dia, no cinismo das riquezas e das dignidades; os desertores de Ligny e de Quatre-Bras, em toda a indecência da sua vil torpeza, ostentavam claramente a sua dedicação à monarquia, esquecendo o que em Inglaterra se encontra escrito na parede interior dos water-closets públicos: Please adjust your dress before leaving [1].
Eis desordenada e confusamente o que sobrenada do ano de 1817, hoje esquecido. A história desdenha quase sempre estas minuciosidades e não pode deixar de o fazer, aliás tornar-se-ia infinita. Todavia, estes pormenores que são apelidados de insignificantes não há nem pequenos factos na humanidade, nem pequenas folhas na vegetação são úteis. É das feições dos anos que se compõe o carácter dos séculos.
[1] — Faça favor de se compor antes de sair.
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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.
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