Simone de Beauvoir
32. Fatos e Mitos
Segunda Parte
História
CAPITULO I
V
" Com saias, que quer que se faça? "
NUMA VISÃO DE CONJUNTO dessa história vemos ressaltarem várias conclusões. E primeiramente esta: toda a história das mulheres foi feita pelos homens. Assim como na América do Norte não há problema negro e sim um problema branco (Myrdall, American dilemma); assim como "o anti-semitismo não é um problema judeu; é nosso problema" (J.-P. Sartre, Réflexions sur Ia Ouestion juive), o problema da mulher sempre foi um problema de homens. Viu-se por que razões tiveram eles, no ponto de partida, a força física juntamente com o prestígio moral; criaram valores, costumes, religiões; nunca as mulheres lhes disputaram esse império. Algumas isoladas —• Safo, Christine de Pisan, Mary Wallonescraft, Olympe de Gouges — protestaram contra a dureza de seu destino; ocorreram, por vezes, manifestações coletivas: mas as matronas romanas, ligando-se contra a lei Ápia ou as sufragistas anglo-saxônias, só conseguiram exercer uma pressão porque os homens estavam dispostos a aceitá-la. Eles é que sempre tiveram a sorte da mulher nas mãos; dela não decidiram em função do interesse feminino; para seus próprios projetos, seus temores, suas necessidades foi que atentaram. Se adoraram a deusa-mãe foi porque a Natureza os amedrontava; logo que o instrumento de bronze lhes permitiu enfrentá-la, instituíram o patriarcado; foi o conflito entre a família e o Estado que então definiu o estatuto da mulher; foi a atitude do cristão em face de Deus, do mundo e da própria carne que se refletiu na condição que lhe determinaram; a querela que se chamou na Idade Média "querela das mulheres" foi realizada entre clérigos e leigos a propósito do casamento e do celibato; é o regime social fundado na propriedade privada que acarretou a tutela da mulher casada, e a revolução técnica realizada pelos homens que libertou as mulheres de hoje. Foi a evolução da ética masculina que trouxe a redução de numerosas famílias pelo birth-control e libertou parcialmente a mulher das servidões da maternidade. O próprio feminismo nunca foi um movimento autônomo: foi, em parte, um instrumento nas mãos dos políticos e, em parte, um epifenômeno refletindo um drama social mais profundo. Nunca as mulheres constituíram uma casta separada: em verdade nunca elas procuraram desempenhar um papel na história enquanto sexo. As doutrinas que reclamam o advento da mulher enquanto carne, vida, imanência, enquanto Outro, são ideologias masculinas que não exprimem de modo algum as reivindicações femininas. A maioria das mulheres aceita resignadamente a sorte sem tentar nenhuma ação; as que buscaram mudá-la não pretenderam encerrar-se em sua singularidade, nem fazê-la triunfar, mas sim sobrepujá-la. Quando intervieram no desenrolar dos acontecimentos, fizeram-no de acordo com os homens e dentro das perspectivas masculinas.
Essa intervenção, em conjunto, foi secundária e episódica. As classes em que as mulheres gozavam de certa autonomia econômica e participavam da produção eram as classes oprimidas e, como trabalhadoras, eram as mulheres mais escravas ainda do que os trabalhadores. Nas classes dirigentes as mulheres eram parasitas e, como tais, submetidas às leis masculinas: em ambos os casos, a ação era-lhes quase impossível. Os direitos e os costumes nem sempre coincidiam: e, entre eles, o equilíbrio se estabelecia de maneira que a mulher nunca fosse concretamente livre. Na antiga república romana as condições econômicas dão, à matrona, poderes concretos, mas ela não tem nenhuma independência legal. O mesmo ocorre amiúde nas civilizações camponesas e na pequena burguesia comerciante: senhora e serva dentro de casa, a mulher é socialmente uma menor. Inversamente, nas épocas em que a sociedade se desagrega, a mulher se emancipa; mas, deixando de ser vassala do homem, perde seu feudo; tem uma liberdade exclusivamente negativa que só se traduz pela licenciosidade e pela dissipação: assim é durante a decadência romana, o Renascimento, o século XVIII e o Diretório. Ou ela consegue encontrar emprego, mas é então escravizada, ou se liberta e não tem o que fazer de si mesma. B notável, ademais, que a mulher casada tenha tido seu lugar na sociedade, mas sem gozar de nenhum direito, ao passo que a celibatária, honesta ou prostituta, tinha todas as capacidades do homem. Mas até o século atual sempre se achou mais ou menos excluída da vida social. Dessa oposição dos direitos aos costumes resultou, entre outros, este curioso paradoxo: o amor livre não é proibido pela lei, enquanto o adultério é um delito; muitas vezes, entretanto, a jovem que "erra" é desonrada, ao passo que a má conduta da mulher casada é considerada com indulgência: numerosas jovens, do século XVIII aos nossos dias, casavam-se para poder ter amantes livremente. Com esse engenhoso sistema, a grande maioria das mulheres é estreitamente controlada: são necessárias circunstâncias excepcionais para que entre essas duas séries de limitações, abstratas ou concretas, uma personalidade feminina consiga afirmar-se. As mulheres que realizaram obras comparáveis às dos homens são as que a força das instituições sociais exaltaram além de toda diferenciação sexual. Isabel, a Católica, Isabel da Inglaterra, Catarina da Rússia, não eram nem mulher nem homem: eram soberanas. É de observar que, uma vez abolida socialmente, sua feminilidade não mais tenha constituído uma inferioridade: a proporção de rainhas que realizaram grandes governos é infinitamente superior à dos grandes reis. A religião opera a mesma transformação: Catarina de Siena, Santa Teresa, são almas santas acima de qualquer condição fisiológica; suas vidas seculares e suas vidas místicas, suas ações e seus escritos situam-se em um nível que poucos homens alcançaram. Tem-se o direito de pensar que, se outras mulheres malograram em marcar profundamente o mundo, foi porque se acharam confinadas em sua condição. Quase que só puderam intervir de maneira negativa ou oblíqua. Judite, Charlotte Corday, Vera Zassulitch matam; as mulheres da Fronda conspiram. Durante a Revolução, durante a Comuna, mulheres lutam ao lado dos homens contra a ordem estabelecida; a uma liberdade sem direitos, sem poder, é permitido retesar-se na recusa e na revolta, ao passo que lhe é proibido participar de uma construção positiva; quando muito conseguirá ela imiscuir-se por atalhos e desvios nos empreendimentos masculinos. Aspásia, Mme de Maintenon, a Princesa Des Ursins foram conselheiras acatadas; contudo foi preciso que consentissem em ouvi-las. Os homens exageram, de bom grado, o alcance dessas influências quando querem convencer a mulher de que lhe cabe a melhor parte; na realidade, as vozes femininas calam-se no ponto em que principiam as ações concretas; foi-lhes possível suscitar guerras mas não sugerir a tática de uma batalha; e quase que só orientaram a política na medida em que esta se reduzia à intriga: as alavancas de comando do mundo nunca estiveram nas mãos das mulheres; não influíram nas técnicas nem na economia, não fizeram nem desfizeram Estados, não descobriram mundos. Por causa delas, muitos acontecimentos ocorreram, mas elas foram muito mais pretextos do que agentes. O suicídio de Lucrécia só tem valor simbólico. O martírio é permitido ao oprimido; durante as perseguições dos cristãos, após as derrotas sociais ou nacionais, mulheres desempenharam esse papel de testemunhas; mas um mártir nunca mudou a face do mundo. As próprias manifestações e iniciativas femininas só se valorizaram quando uma decisão masculina as prolongou eficientemente. As norte-americanas reunidas em torno de Mrs. Beecher-Stowe sublevam violentamente a opinião pública contra a escravidão, mas as verdadeiras causas da Guerra da Secessão não foram de ordem sentimental. A "Jornada das Mulheres", de 8 de março de 1917, talvez tenha precipitado a Revolução Russa: não passou entretanto de um sinal. Em sua maioria, as heroínas femininas são de uma espécie barroca: aventureiras, originais menos notáveis pela importância de suas ações do que pela singularidade de seus destinos; assim, se compararmos Joana d'Arc, Mme Roland, Flora Tristan com Richelieu, Danton, Lênine, vemos que a grandeza delas é principalmente subjetiva: são figuras exemplares mais do que agentes históricos. O grande homem jorra da massa e é levado pelas circunstâncias: a massa das mulheres acha-se à margem da história e as circunstâncias são para cada uma delas um obstáculo e não um trampolim. Para mudar a face do mundo é preciso estar sòlidamente ancorado nele; mas as mulheres sòlidamente enraigadas na sociedade são as que a esta se submetem. A não ser quando designadas para a ação por direito divino — e nesse caso mostraram-se tão capazes quanto os homens — a ambiciosa, a heroína são monstros estranhos. É somente depois que as mulheres começam a sentir-se à vontade nesta terra que se vê uma Rosa Luxemburgo, uma Mme Curie. Elas demonstram brilhantemente que não foi a inferioridade feminina que determinou sua insignificância histórica: sua insignificância histórica foi que as votou à inferioridade (1).
(1) Cumpre observar que em Paris, sobre cerca de mil estátuas (excetuando-se as rainhas que por razões de ordem puramente arquitetural cercam o Luxemburgo, somente dez foram erguidas a mulheres. Três são consagradas a Joana d'Arc. As demais são de Mme de Ségur, George Sand, Sarah Bernhardt, Mme Boucicaut e a Baronesa de Hirsch, Maria Deraismes, Rosa Bonheur.
Os antifeministas extraem da história dois argumentos contraditórios: lº) as mulheres jamais criaram algo de grande; 2º) a situação da mulher jamais impediu o aparecimento de grandes possibilidades femininas. Tais afirmações são eivadas de má-fé; os êxitos de algumas privilegiadas não compensam nem desculpam o rebaixamento sistemático do nível coletivo; e o fato de serem esses êxitos raros e limitados prova precisamente que as circunstâncias lhes são desfavoráveis. Como o sustentaram Christine de Pisan, Poulain de la Barre, Condorcet, Stuart Mill, Stendhal, a mulher nunca teve suas possibilidades em nenhum terreno. Eis por que reclamam elas hoje, em grande número, novo estatuto; e, mais uma vez, sua reivindicação não consiste em serem exaltadas em sua feminilidade: elas querem que em si próprias, como no resto da humanidade, a transcendência supere a imanência; elas querem que lhes sejam concedidos, enfim, os direitos abstratos e as possibilidades concretas, sem a conjugação dos quais a liberdade não passa de mistificação (2).
(2) Neste ponto também os antifeministas argumentam com um equívoco. Ora considerando nula a liberdade abstrata, exaltam-se acerca do grande papel concreto que a mulher escravizada pode desempenhar neste mundo: o que ela reclama, portanto? Ora fingem ignorar o fato de que a licença negativa não abre nenhuma possibilidade concreta e censuram as mulheres abstratamente libertas por não terem dado provas de sua capacidade.
Antes de tudo, os encargos do casamento permanecem muito mais pesados para a mulher do que para o homem. Já vimos que as servidões da maternidade foram reduzidas pelo emprego — confessado ou clandestino — do birth-control; mas essa prática não é universalmente difundida, nem rigorosamente aplicada. Sendo o aborto oficialmente proibido, muitas mulheres comprometem a saúde com medidas abortivas não controladas ou sucumbem sob o número de filhos. O cuidado dos filhos e do lar é ainda quase inteiramente suportado pela mulher. Na França, particularmente, a tradição antifeminista é tão tenaz que um homem acreditaria diminuir-se se participasse de tarefas outrora reservadas às mulheres. Disso resulta que a mulher pode mais dificilmente do que o homem conciliar a vida familiar com o papel de trabalhadora. No caso em que tal esforço é exigido dela pela sociedade, sua existência faz-se muito mais penosa que a do marido.
continua...
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O SEGUNDO SEXO
SIMONE DE BEAUVOIR
Entendendo o eterno feminino como um homólogo da alma negra, epítetos que representam o desejo da casta dominadora de manter em "seu lugar", isto é, no lugar de vassalagem que escolheu para eles, mulher e negro, Simone de Beauvoir, despojada de qualquer preconceito, elaborou um dos mais lúcidos e interessantes estudos sobre a condição feminina. Para ela a opressão se expressa nos elogios às virtudes do bom negro, de alma inconsciente, infantil e alegre, do negro resignado, como na louvação da mulher realmente mulher, isto é, frívola, pueril, irresponsável, submetida ao homem.
Todavia, não esquece Simone de Beauvoir que a mulher é escrava de sua própria situação: não tem passado, não tem história, nem religião própria. Um negro fanático pode desejar uma humanidade inteiramente negra, destruindo o resto com uma explosão atômica. Mas a mulher mesmo em sonho não pode exterminar os homens. O laço que a une a seus opressores não é comparável a nenhum outro. A divisão dos sexos é, com efeito, um dado biológico e não um momento da história humana.
Assim, à luz da moral existencialista, da luta pela liberdade individual, Simone de Beauvoir, em O Segundo Sexo, agora em 4.a edição no Brasil, considera os meios de um ser humano se realizar dentro da condição feminina. Revela os caminhos que lhe são abertos, a independência, a superação das circunstâncias que restringem a sua liberdade.
4.a EDIÇÃO - 1970
Tradução
SÉRGIO MILLIET
Capa
FERNANDO LEMOS
DIFUSÃO EUROPÉIA DO LIVRO
Título do original:
LE DEUXIÊME SEXE
LES FAITS ET LES MYTHES
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Segundo Sexo é um livro escrito por Simone de Beauvoir, publicado em 1949 e uma das obras mais celebradas e importantes para o movimento feminista. O pensamento de Beauvoir analisa a situação da mulher na sociedade.
No Brasil, foi publicado em dois volumes. “Fatos e mitos” é o volume 1, e faz uma reflexão sobre mitos e fatos que condicionam a situação da mulher na sociedade. “A experiência vivida” é o volume 2, e analisa a condição feminina nas esferas sexual, psicológica, social e política.
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O Segundo Sexo - 33. Fatos e Mitos: seu ser-para-os-homens é sua condição concreta