quarta-feira, 26 de setembro de 2018

O Segundo Sexo - 26. Fatos e Mitos: muitas vezes, ela esgota-se na luta

Simone de Beauvoir



26. Fatos e Mitos


Segunda Parte
História

CAPITULO I


IV


"muitas vezes, ela esgota-se na luta"




NO SÉCULO XVIII, a liberdade e a independência da mulher aumentam ainda. Os costumes em princípio permanecem severos: a jovem recebe apenas uma educação sumária; é casada ou encerrada num convento sem que a consultem. A burguesia, classe em ascensão e cuja existência se consolida, impõe à esposa uma moral rigorosa. Em compensação, a decomposição da nobreza outorga às mulheres as maiores licenças e a alta burguesia, por sua vez, é contaminada por tais exemplos; nem os conventos nem o lar conjugal conseguem conter a mulher. Digamos mais uma vez que para a maioria delas essa liberdade permanece negativa e abstrata: elas se restringem a procurar o prazer. Mas as que são ambiciosas e inteligentes criam possibilidades de ação para si mesmas. A vida dos salões toma novo impulso. Conhece-se bastante o papel desempenhado por Mme Geoffrin, Mme du Deffand, Mlle de Lespinasse, Mme d'Épinay, Mme de Tencin; protetoras, inspiradoras, as mulheres constituem o público predileto do escritor. Interessam-se pessoalmente pela literatura, pela filosofia, pelas ciências. Tal como Mme du Châtelet têm elas seus laboratórios de física e de química, fazem experiências, dissecam; intervém mais ativamente do que nunca na vida política: Luís XV é governado sucessivamente por Mme de Prie, Mme de Mailly, Mme de Châteauneuf, Mme de Pompadour, Mme du Barry. Não há, por assim dizer, ministro que não tenha sua egéria, a ponto de Montesquieu considerar que na França tudo se faz pelas mulheres; elas constituem, diz ele, "um novo Estado dentro do Estado"; e Collé escreve às vésperas de 1789: "Conseguiram tal ascendência sobre os franceses, de tal modo os subjugaram que eles só pensam e sentem de acordo com elas". Ao lado das mulheres da sociedade, há também as atrizes e as mulheres galantes que gozam de grande renome: Sophie Arnould, Julie Talma, Adrienne Lecouvreur.

Assim, através de todo o Antigo Regime, o campo cultural é o mais acessível às mulheres que tentam afirmar-se. Nenhuma entretanto atingiu as alturas de um Dante, de um Shakespeare, o que se explica pela mediocridade geral de sua condição. A cultura sempre foi o apanágio de uma elite feminina, não da massa; e da massa foi que saíram muitas vezes os gênios masculinos. As próprias privilegiadas encontravam em derredor obstáculos que lhes barravam o acesso aos altos picos. Nada detinha o arroubo de uma Santa Teresa, de uma Catarina da Rússia, mas mil circunstâncias ligavam-se contra a mulher escritora. No seu livrinho A room of one's own, Virgínia Woolf divertiu-se com inventar o destino de uma suposta irmã de Shakespeare; enquanto ele aprendia no colégio um pouco de latim, de gramática, de lógica, ela teria permanecido no lar numa completa ignorância; enquanto ele caçava, corria os campos, dormia com as mulheres da vizinhança, ela teria remendado trapos sob o olhar dos pais; se ela tivesse partido como ele, ousadamente, à procura de melhor sorte em Londres, não conseguiria tornar-se uma atriz ganhando livremente a vida: ou teria sido levada de volta à família que a casaria à força, ou seduzida, abandonada, desonrada, ter-se-ia matado de desespero. Pode-se também imaginá-la transformando-se numa alegre prostituta, uma Moll Flanders como a pintou Daniel Defoë: de jeito algum teria dirigido um elenco e escrito dramas. Na Inglaterra, observa V. Woolf, as mulheres escritoras sempre suscitaram hostilidade. O Dr. Johnson comparava-as "a um cão andando sobre as patas traseiras; não está certo mas é espantoso". Os artistas preocupam-se mais do que os outros com a opinião de outrem; desta dependera as mulheres estreitamente: concebe-se que força é necessária a uma mulher artista, tão-somente para não dar importância a essa opinião; muitas vezes, ela esgota-se na luta. No fim do século XVII, Lady Winhilsea, nobre e sem filhos, tenta a aventura de escrever; certos trechos de sua obra mostram que tinha uma natureza sensível e poética; mas consumiu-se no ódio, na cólera e no medo:



Ai de mim! Uma mulher que se vale da pena
É considerada uma criatura tão presunçosa
Que não tem nenhum meio de se redimir de seu crime
(1).


 (1) Hélas! une femme qui prend Ia plume 
      Est considérée comme une créature si présomptueuse 
      Qu'elle n'a aucun moyen de racheter son crime!



Quase toda a sua obra é consagrada a indignar-se contra a condição das mulheres. O caso da Duquesa de Newcastle é análogo; grande dama, ela também suscita escândalo porque escreve. "As mulheres vivem como baratas ou corujas, morrem como vermes", diz colérica. Insultada, ridicularizada, teve que se encerrar em sua propriedade; e apesar de um temperamento generoso, semilouca, desde então só produziu extravagantes elucubrações. É somente no século XVIII que uma burguesa, Mrs. Aphra Behn, tendo ficado viúva, passa a viver da pena como um homem; outras lhe seguiram o exemplo; mas mesmo no século XIX elas eram obrigadas a se esconder; não tinham sequer um quarto próprio, isto é, não gozavam dessa independência material que é uma das condições necessárias à liberdade interior. 

Viu-se que, em virtude do desenvolvimento da vida mundana e de sua estreita ligação com a vida intelectual, a situação das francesas foi um pouco mais favorável. Entretanto, a opinião é em grande parte hostil às bas-bleus. Durante o Renascimento, as damas nobres e as mulheres de espírito suscitam um movimento em favor de seu sexo; as doutrinas platônicas importadas na Itália espiritualizam o amor e a mulher. Bom número de letrados empenha-se em defendê-las. Aparecem a Nef des Dames vertueuses, o Chevalier des Dames etc. Erasmo, em o Pequeno Senado, dá a palavra a Cornélia que expõe com cerimônia as queixas de seu sexo. "Os homens são tiranos. . . Tratam-nos como brinquedos. . . fazem de nós suas lavadeiras e cozinheiras." Exige que se permita às mulheres instruírem-se. Cornélia Agripa, em uma obra que foi muito célebre, Declamação da Nobreza e da Excelência do Sexo Feminino, esforça-se por mostrar a superioridade feminina. Retorna aos velhos argumentos cabalísticos. Eva quer dizer Vida; e Adão, Terra. Criada depois do homem, a mulher é mais acabada. Ela nasceu no paraíso, ele fora. Quando ela cai na água flutua, o homem afunda. É feita com uma costela de Adão e não de terra. Seus mênstruos curam todas as doenças. Eva, ignorante, apenas errou. Adão foi quem pecou; por isso, Deus fez-se homem; e, depois da ressurreição, foi a mulheres que apareceu. Agripa declara, em seguida, que as mulheres são mais virtuosas do que os homens. Enumera as "límpidas mulheres" de que o sexo pode orgulhar-se, o que constitui também um lugar-comum dessas apologias. Finalmente, faz um requisitório contra a tirania masculina: "Agindo contra quaisquer direitos, violentando impunemente a igualdade natural, a tirania do homem privou a mulher da liberdade que recebeu ao nascer". No entanto, ela engendra os filhos, é tão inteligente quanto o homem e até mais sutil; é escandaloso que lhe restrinjam as atividades, "o que se faz, sem dúvida, não por ordem de Deus, não por necessidade nem razão, mas pela força do costume, pela educação, pelo trabalho, e principalmente pela violência e a opressão". Não reclama, por certo, a igualdade dos sexos, mas quer que se trate a mulher com respeito. A obra alcançou imenso êxito, como Le Fort inexpugnable, outra apologia da mulher, bem como La Parfaite Amye, de Héroét, impregnado de misticismo platônico. Em um curioso livro que anuncia a doutrina de Saint-Simon, Postei proclama a vinda de uma nova Eva, mãe regeneradora da espécie humana; acredita mesmo tê-la encontrado; morreu, talvez se tenha reencarnado nele. Com mais moderação Margarida de Valois, em seu Docte et subtil discours, proclama que há na mulher algo divino. Mas o escritor que melhor serviu a causa de seu sexo foi Margarida de Navarra, propondo, contra a licença de costumes, um ideal de misticismo sentimental e de castidade sem pudicícia, tentando conciliar o casamento ao amor, para honra e felicidade das mulheres. Bem entendido, os adversários das mulheres não se entregam. Entre outros, encontram-se em ha controverse des sexes masculins et féminins, que responde a Agripa, os velhos argumentos da Idade Média. Rabelais diverte-se no Tiers Livre em satirizar o casamento, reatando a tradição de Mathieu e Deschamps. Entretanto, são as mulheres que na feliz abadia de Thélème fazem a lei. O antifeminismo assume nova feição violenta em 1617 com L'alphabet de l'imperfection des femmes, de Jacques Olivier; via-se, na capa, uma gravura representando uma mulher com mãos de harpia, coberta com as plumas da luxúria, montada sobre patas de galinha, porque é, como a galinha, má dona de casa: sob cada uma das letras do alfabeto inscrevia-se um de seus defeitos. Era, mais uma vez, um eclesiástico que reavivava a velha querela; Mlle de Gournay retorquiu com Légalité des homme et des femmes. Nessas alturas, toda uma literatura libertina, Parnasses et cabinets satyriques, ataca os costumes das mulheres, enquanto, para as desmoralizar, os devotos citam São Paulo, os Padres da Igreja, o Eclesiastes. A mulher fornecia também um tema inesgotável às sátiras de Mathurin Régnier e seus amigos. No outro campo, os apologistas retomam os argumentos de Agripa e os comentam, cada qual mais enfaticamente do que os outros. O Padre Du Boscq em L'Honnête Femme exige que seja permitida a instrução às mulheres. L'Astrée e toda uma literatura galante celebram os méritos femininos em rondós, sonetos, elegias etc. 

Os próprios êxitos alcançados pelas mulheres provocam novos ataques; as Preciosas irritaram a opinião; aplaudem-se as Prêcieuses ridicules e um pouco mais tarde as Femmes savantes. Não é que Molière seja inimigo das mulheres: ataca vivamente os casamentos impostos, reivindica para as jovens o direito à liberdade sentimental e para a esposa o respeito e a independência. Bossuet, ao contrário, não as poupa em seus sermões. A primeira mulher, prega ele, "não passava de uma parcela de Adão e de uma espécie de diminutivo. Proporcionalmente, o mesmo ocorria com o espírito dela". A sátira de Boileau contra as mulheres é apenas um exercício de retórica mas suscita uma série de defesas: Pradon, Regnard, Perrault respondem com exaltação. La Bruyère, Saint-Évremond mostram-se favoráveis às mulheres. O feminista mais decidido da época é Poulain de la Barre, que publica em 1673 uma obra de inspiração cartesiana, De 1'égalité des deuxs sexes. Considera que os homens, sendo os mais fortes, por toda parte favorecem o próprio sexo e que as mulheres aceitam por hábito essa dependência. Nunca tiveram suas possibilidades, nem liberdade nem instrução. Não se poderia, pois, julgá-las pelo que fizeram no passado. Nada indica que sejam inferiores ao homem. A anatomia revela diferenças, mas nenhuma constitui um privilégio para o homem. E Poulain de la Barre conclui reclamando uma sólida instrução para as mulheres. Fontenelle escreve para elas o Traité de la Pluralité des Mondes. E se Fénelon, acompanhando Mme de Maintenon e o Abade Fleury, mostra-se em seu programa de educação muito tímido, o universitário jansenista Rollin deseja, ao contrário, que as mulheres realizem estudos sérios. 

O Século XVIII também se acha dividido. Em 1774, em Amsterdã, o autor da Controverte sur l'âme de la femme declara que "a mulher criada unicamente para o homem deixará de existir no fim do mundo, porque deixará de ser útil ao objeto para o qual foi criado, do que se conclui naturalmente que sua alma não é imortal". De uma maneira um pouco menos radical, Rousseau, que aqui se faz o intérprete da burguesia, destina a mulher ao marido e à maternidade. "Toda a educação da mulher deve ser relativa ao homem. . . A mulher é feita para ceder ao homem e suportar-lhe as injustiças", afirma. Entretanto, o ideal democrático e individualista do século XVIII é favorável às mulheres; elas apresentam-se à maioria dos filósofos como seres humanos iguais aos do sexo forte. Voltaire denuncia a injustiça de sua sorte. Diderot considera que sua inferioridade foi em grande parte, causada pela sociedade. "Mulheres, eu vos lamento!", escreve. Considera que "em todos os costumes, a crueldade das leis civis aliou-se à crueldade da Natureza contra a mulher. São tratadas como seres imbecis". Montesquieu estima, paradoxalmente, que as mulheres deveriam ser subordinadas ao homem na vida do lar mas que tudo as predispõe a uma ação política. "É anti-racional e antinatural que as mulheres sejam donas de casa... não o é que governem um império." Helvetius mostra que é o absurdo da educação que cria a inferioridade da mulher; d'Alembert é da mesma opinião. Na obra de uma mulher, Mme de Ciray, vê-se apontar timidamente um feminismo econômico, mas é só Mercier, em seu Tableau de Paris, que se indigna contra a miséria das operárias e aventa, assim, a questão fundamental do trabalho feminino. Condorcet pretende que as mulheres tenham acesso à vida política. Ele as considera iguais aos homens e as defende contra os clássicos ataques: "Foi dito que as mulheres. . . não tinham propriamente o sentimento da justiça, que obedeciam antes a seus próprios sentimentos do que à sua consciência. . . (Mas) não se trata de sua natureza e sim de sua educação; é a existência social que causa essa diferença". E noutro trecho: "Quanto mais foram as mulheres escravizadas pela lei mais perigoso foi seu império. . . Ele diminuiria se as mulheres tivessem menos interesse em conservá-lo, se ele deixasse de ser, para elas, o único meio de se defender e de escapar à opressão".


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O SEGUNDO SEXO
SIMONE DE BEAUVOIR

Entendendo o eterno feminino como um homólogo da alma negra, epítetos que representam o desejo da casta dominadora de manter em "seu lugar", isto é, no lugar de vassalagem que escolheu para eles, mulher e negro, Simone de Beauvoir, despojada de qualquer preconceito, elaborou um dos mais lúcidos e interessantes estudos sobre a condição feminina. Para ela a opressão se expressa nos elogios às virtudes do bom negro, de alma inconsciente, infantil e alegre, do negro resignado, como na louvação da mulher realmente mulher, isto é, frívola, pueril, irresponsável, submetida ao homem.

Todavia, não esquece Simone de Beauvoir que a mulher é escrava de sua própria situação: não tem passado, não tem história, nem religião própria. Um negro fanático pode desejar uma humanidade inteiramente negra, destruindo o resto com uma explosão atômica. Mas a mulher mesmo em sonho não pode exterminar os homens. O laço que a une a seus opressores não é comparável a nenhum outro. A divisão dos sexos é, com efeito, um dado biológico e não um momento da história humana.

Assim, à luz da moral existencialista, da luta pela liberdade individual, Simone de Beauvoir, em O Segundo Sexo, agora em 4.a edição no Brasil, considera os meios de um ser humano se realizar dentro da condição feminina. Revela os caminhos que lhe são abertos, a independência, a superação das circunstâncias que restringem a sua liberdade.


4.a EDIÇÃO - 1970
Tradução
SÉRGIO MILLIET
Capa
FERNANDO LEMOS
DIFUSÃO EUROPÉIA DO LIVRO
Título do original:
LE DEUXIÊME SEXE
LES FAITS ET LES MYTHES



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Segundo Sexo é um livro escrito por Simone de Beauvoir, publicado em 1949 e uma das obras mais celebradas e importantes para o movimento feminista. O pensamento de Beauvoir analisa a situação da mulher na sociedade.

No Brasil, foi publicado em dois volumes. “Fatos e mitos” é o volume 1, e faz uma reflexão sobre mitos e fatos que condicionam a situação da mulher na sociedade. “A experiência vivida” é o volume 2, e analisa a condição feminina nas esferas sexual, psicológica, social e política.



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