terça-feira, 2 de outubro de 2018

Stendhal - O Vermelho e o Negro: Uma Noite (XI)

Livro I

A verdade, a áspera verdade. 
Danton 


Capítulo XI


UMA NOITE


Yet Julia´s very coldness still was kind, 
And tremulously gentle her small hand 
Withdrew itself from his, but left behind, 
A little pressure, thrilling, and so bland 
And slight, so very slight, that to the mind. 
Twas but a doubt.

DON JUAN, C. I, est. 71













ERA PRECISO, NO ENTANTO, ir a Verrières. Ao sair do presbitério, um feliz acaso fez Julien encontrar o sr. Valenod, a quem se apressou a contar o aumento de seus honorários.
De volta a Vergy, Julien só desceu ao jardim quando era noite fechada. Sua alma estava fatigada do grande número de emoções fortes que a haviam agitado durante o dia. Que direi a elas? indagava com inquietude, pensando nas damas. Estava longe de perceber que sua alma estava precisamente ao nível das pequenas circunstân​cias que ocupam geralmente todo o interesse das mulheres. Com frequência Julien era ininteligível para a sra. Derville e mesmo para sua amiga, e, por sua vez, compreendia só pela metade o que elas lhe di​ziam. Tal era o efeito da for​ça e, se ouso falar assim, da grandeza dos movimentos de paixão que agitavam a alma desse jovem ambicioso. Nesse indivíduo singular, quase todos os dias eram de tempestade.
Ao entrar no jardim, naquela noite, Julien estava disposto a ocupar-se das ideias das belas primas. Elas o aguardavam com impaciência. Ele tomou seu lugar de costume ao lado da sra. de Rênal. A escuridão era profunda. Quis pegar uma mão branca que há muito via perto dele, apoiada sobre o encosto de uma cadeira. Houve uma pequena hesitação, mas ela acabou sendo retirada de uma forma que denotava irritação. Julien estava disposto a aceitar aquilo e a continuar alegremente a conversa, quando ouviu que o sr. de Rênal se aproximava.
Julien tinha ainda nos ouvidos as palavras grosseiras da manhã. Não seria, pensou, uma forma de zombar desse indivíduo tão cumulado de todas as vantagens da fortuna, pegar a mão de sua mulher, precisamente em sua presença? Sim, eu o farei, eu, a quem ele demonstrou tanto desprezo.
A partir desse momento, a tranquilidade, tão pouco natural ao caráter de Julien, desapareceu prontamente; ele desejou com ansiedade, e sem poder pensar noutra coisa, que a sra. de Rênal consentisse em ceder-lhe a mão.
O sr. de Rênal falava de política com cólera: dois ou três industriais de Verrières tornavam-se decididamente mais ricos do que ele e queriam fazer-lhe oposição nas eleições. A sra. Derville o escutava. Julien, irritado com essas palavras, aproximou sua cadeira da da sra. de Rênal. A escuridão ocultava todos os movimentos. Ousou pôr a mão muito perto do braço encantador que o vestido deixava descoberto. Ficou perturbado e, incapaz de pensar, aproximou a face desse braço encantador, ousando nele aplicar seus lábios.
A sra. de Rênal estremeceu. Seu marido estava a quatro passos, ela apressou-se a dar a mão a Julien, ao mesmo tempo que o repelia um pouco. Enquanto o sr. de Rênal prosseguia com suas injúrias contra os indivíduos reles e os jacobinos que enriqueciam, Julien cobria a mão que lhe fora cedida com beijos apaixonados ou, pelo menos, que assim pareciam à sra. de Rênal. No entanto, a pobre mulher tivera a prova, nessa jornada fatal, de que o homem que ela adorava, sem confessar a si mesma, amava outra! Durante toda a ausência de Julien, fora atormentada por uma infelicidade extrema, que a fizera refletir.
Quê! Eu estaria amando, ela pensava, eu, uma mulher casada, estaria apaixonada? Mas nunca senti por meu marido essa loucura sombria, que me impede de afastar meu pensamento de Julien. E, no fundo, ele é apenas um menino cheio de respeito por mim. Essa loucura será passageira. Que importa a meu marido os sentimentos que posso ter por esse jovem? O sr. de Rênal se aborreceria com as conversas que tenho com Julien, sobre coisas da imaginação. Ele só pensa em negócios. Não estou tirando nada dele para dar a Julien.
Nenhuma hipocrisia vinha alterar a pureza dessa alma ingênua, extraviada por uma paixão que jamais sentira. Ela se enganava, mas sem o saber, e no entanto um instinto de virtude estava horrorizado. Tais eram os combates que a agitavam quando Julien apareceu no jardim. Ouviu sua voz e quase no mesmo instante viu-o sentar-se a seu lado. Sentiu a alma como que enlevada por essa feli​cidade encantadora que há quinze dias a surpreendia ainda mais do que a seduzia. Tudo era imprevisto para ela. Contudo, depois de alguns instantes, disse a si mesma: então basta a presença de Julien para apagar todos os seus erros? Ficou assustada; foi nesse momento que retirou a mão.
Os beijos cheios de paixão, e como nunca os recebera, fizeram-na de repente esquecer que ele talvez amasse outra mulher. Em breve, ele não teve mais culpa aos olhos dela. A cessação da dor pungente, filha da suspeita, a presença de uma felicidade que ela nem sequer sonhara, causaram-lhe transpor​tes de amor e de louca alegria. Essa noite foi encantadora para todos, exce​to para o prefeito de Verrières, que não conseguia esquecer seus industriais enriquecidos. Julien não pensava mais em sua negra ambição, nem em seus projetos tão difíceis de executar. Pela primeira vez na vida era arrastado pelo poder da beleza. Perdido num devaneio vago e doce, tão estranho a seu caráter, pressionando suavemente aquela mão que lhe agradava como perfeitamente bela, escutava, meio distraído, o movimento das folhas de tília agitadas pela brisa da noite e os cães do moinho do Doubs que latiam ao longe.
Mas essa emoção era um prazer e não uma paixão. Ao voltar a seu quarto, ele só pensou numa felicidade, a de retomar seu livro favorito; aos vinte anos, a ideia do mundo e de nele produzir um efeito prevalece sobre qualquer outra coisa. Contudo, logo deixou o livro. À força de pensar nas vitórias de Napoleão, ele vira algo de novo na sua. Sim, ganhei uma batalha, disse a si mesmo, mas é preciso tirar proveito disso, é preciso esmagar o orgulho desse fidalgo enquanto bate em retirada. Eis aí Napoleão puro. É preciso que eu peça uma dispensa de três dias para ir visitar meu amigo Fouqué. Se ele recusar, torno a colocá-lo contra a parede, e ele cederá.
A sra. de Rênal não conseguia dormir. Parecia-lhe não ter vivido até aquele momento. Não conseguia afastar seu pensamento da felicidade de sentir Julien cobrir sua mão de beijos apaixonados.
De repente, a terrível palavra, adúltera, surgiu-lhe. Tudo o que a mais vil devassidão pode imprimir de repul​sivo à ideia do amor dos sentidos apresentou-se à sua imaginação. Essas ideias queriam macular a imagem terna e divina que ela fazia de Julien e da felicidade de amá-lo. O futuro aparecia-lhe em cores terríveis. Via-se desprezível.

Foi um momento de horror; sua alma chegava a terras desconhecidas. Na véspera, sentira uma felicidade inusitada; agora via-se de repente mergulhada numa infelicidade atroz. Ainda não havia experimentado tais sofrimentos, eles perturbaram sua razão. Por um instante, pensou em confessar ao marido que temia estar amando Julien. Seria um meio de desabafar. Felizmente, encontrou na memória um preceito dado outrora por sua tia, às vésperas do casamento, sobre o perigo das confidências feitas a um marido, que afinal é um senhor. No excesso de sua dor, ela torcia as mãos.
Era arrastada irrefletidamente por imagens contraditó​rias e dolorosas. Ora temia não ser amada, ora a horrível ideia do crime a torturava como se no dia seguinte devesse ser exposta no pelourinho, na praça pública de Verrières, com um cartaz explicando seu adultério à populaça.
A sra. de Rênal não tinha nenhuma experiência da vida; mesmo plenamente desperta e no exercício de toda a sua razão, não teria percebido nenhum intervalo entre ser culpada aos olhos de Deus e ver-se atacada em público pelas demonstrações mais ruidosas do desprezo geral.
Quando a ideia pavorosa do adultério, e de toda a ignomínia que, em sua opinião, esse crime acarreta, dava-lhe algum repouso, e punha-se a pensar na doçura de viver inocentemente com Julien, como antes, ela deparava com a ideia horrível de que Julien amava outra mulher. Ainda via sua palidez quando temera perder o retrato dela, ou de comprometê-la se o vissem. Pela primeira vez surpreendera o temor nessa fisionomia tão tranquila e tão nobre. Ele nunca se mostrara comovido da mesma forma por ela ou por seus filhos. Esse acréscimo de sofrimento atingiu o máximo de infelicidade que a alma humana pode suportar. Sem querer, a sra. de Rênal lançou gritos que despertaram sua camareira. De repente, viu aparecer junto à sua cama a claridade de uma lâmpada e reconheceu Elisa.

– É a você que ele ama?, exclamou em seu desvario.

A camareira, espantada com a terrível agitação na qual surpreendia a patroa, felizmente não deu atenção a essas palavras singulares. A sra. de Rênal percebeu sua imprudência: “Estou com febre”, disse, “e acho que delirei um pouco, fique comigo”. Inteiramente desperta pela necessidade de controlar-se, sentiu-se menos infeliz; a razão retomou o domínio que o estado de sono leve lhe tirara. Para livrar-se do olhar fixo da camareira, ordenou-lhe que lesse o jornal, e foi ao ruído monótono da voz da moça, lendo um longo artigo do La Quotidienne, que a sra. de Rênal tomou a resolução virtuosa de tratar Julien com uma frieza perfeita quando tornasse a vê-lo.


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ADVERTÊNCIA DO EDITOR
Esta obra estava prestes a ser publicada quando os grandes acontecimentos de julho [de 1830] vieram dar a todos os espíritos uma direção pouco favorável aos jogos da imaginação. Temos motivos para acreditar que as páginas seguintes foram escritas em 1827.


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Henri-Marie Beyle, mais conhecido como Stendhal (Grenoble, 23 de janeiro de 1783 — Paris, 23 de março de 1842) foi um escritor francês reputado pela fineza na análise dos sentimentos de seus personagens e por seu estilo deliberadamente seco.

Órfão de mãe desde 1789, criou-se entre seu pai e sua tia. Rejeitou as virtudes monárquicas e religiosas que lhe inculcaram e expressou cedo a vontade de fugir de sua cidade natal. Abertamente republicano, acolheu com entusiasmo a execução do rei e celebrou inclusive a breve detenção de seu pai. A partir de 1796 foi aluno da Escola central de Grenoble e em 1799 conseguiu o primeiro prêmio de matemática. Viajou a Paris para ingressar na Escola Politécnica, mas adoeceu e não pôde se apresentar à prova de acesso. Graças a Pierre Daru, um parente longínquo que se converteria em seu protetor, começou a trabalhar no ministério de Guerra.

Enviado pelo exército como ajudante do general Michaud, em 1800 descobriu a Itália, país que tomou como sua pátria de escolha. Desenganado da vida militar, abandonou o exército em 1801. Entre os salões e teatros parisienses, sempre apaixonado de uma mulher diferente, começou (sem sucesso) a cultivar ambições literárias. Em precária situação econômica, Daru lhe conseguiu um novo posto como intendente militar em Brunswick, destino em que permaneceu entre 1806 e 1808. Admirador incondicional de Napoleão, exerceu diversos cargos oficiais e participou nas campanhas imperiais. Em 1814, após queda do corso, se exilou na Itália, fixou sua residência em Milão e efetuou várias viagens pela península italiana. Publicou seus primeiros livros de crítica de arte sob o pseudônimo de L. A. C. Bombet, e em 1817 apareceu Roma, Nápoles e Florença, um ensaio mais original, onde mistura a crítica com recordações pessoais, no que utilizou por primeira vez o pseudônimo de Stendhal. O governo austríaco lhe acusou de apoiar o movimento independentista italiano, pelo que abandonou Milão em 1821, passou por Londres e se instalou de novo em Paris, quando terminou a perseguição aos aliados de Napoleão.

"Dandy" afamado, frequentava os salões de maneira assídua, enquanto sobrevivia com os rendimentos obtidos com as suas colaborações em algumas revistas literárias inglesas. Em 1822 publicou Sobre o amor, ensaio baseado em boa parte nas suas próprias experiências e no qual exprimia ideias bastante avançadas; destaca a sua teoria da cristalização, processo pelo que o espírito, adaptando a realidade aos seus desejos, cobre de perfeições o objeto do desejo.

Estabeleceu o seu renome de escritor graças à Vida de Rossini e às duas partes de seu Racine e Shakespeare, autêntico manifesto do romantismo. Depois de uma relação sentimental com a atriz Clémentine Curial, que durou até 1826, empreendeu novas viagens ao Reino Unido e Itália e redigiu a sua primeira novela, Armance. Em 1828, sem dinheiro nem sucesso literário, solicitou um posto na Biblioteca Real, que não lhe foi concedido; afundado numa péssima situação económica, a morte do conde de Daru, no ano seguinte, afetou-o particularmente. Superou este período difícil graças aos cargos de cônsul que obteve primeiro em Trieste e mais tarde em Civitavecchia, enquanto se entregava sem reservas à literatura.

Em 1830 aparece sua primeira obra-prima: O Vermelho e o Negro, uma crónica analítica da sociedade francesa na época da Restauração, na qual Stendhal representou as ambições da sua época e as contradições da emergente sociedade de classes, destacando sobretudo a análise psicológica das personagens e o estilo direto e objetivo da narração. Em 1839 publicou A Cartuxa de Parma, muito mais novelesca do que a sua obra anterior, que escreveu em apenas dois meses e que por sua espontaneidade constitui uma confissão poética extraordinariamente sincera, ainda que só tivesse recebido o elogio de Honoré de Balzac.

Ambas são novelas de aprendizagem e partilham rasgos românticos e realistas; nelas aparece um novo tipo de herói, tipicamente moderno, caracterizado pelo seu isolamento da sociedade e o seu confronto com as suas convenções e ideais, no que muito possivelmente se reflete em parte a personalidade do próprio Stendhal.

Outra importante obra de Stendhal é Napoleão, na qual o escritor narra momentos importantes da vida do grande general Bonaparte. Como o próprio Stendhal descreve no início deste livro, havia na época (1837) uma carência de registos referentes ao período da carreira militar de Napoleão, sobretudo a sua atuação nas várias batalhas na Itália. Dessa forma, e também porque Stendhal era um admirador incondicional do corso, a obra prioriza a emergência de Bonaparte no cenário militar, entre os anos de 1796 e 1797 nas batalhas italianas. Declarou, certa vez, que não considerava morrer na rua algo indigno e, curiosamente, faleceu de um ataque de apoplexia, na rua, sem concluir a sua última obra, Lamiel, que foi publicada muito depois da sua morte.

O reconhecimento da obra de Stendhal, como ele mesmo previu, só se iniciou cerca de cinquenta anos após sua morte, ocorrida em 1842, na cidade de Paris.

Stendhal - O Vermelho e o Negro: Uma Noite (XI)

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